"Sentido senhores! Quando o Tribunal Popular cair é a parede mestra da Justiça que ruirá" (Ruy Barbosa).
1. INTRODUÇÃO.
A Lei n.º 11.689/2008 que trata da reforma do procedimento do Tribunal do Júri, traz, em seu bojo, regras que violam diversos princípios constitucionais garantidos no artigo 5º da Constituição Federal, tais como contraditório, igualdade processual, sigilo das votações, soberania dos veredictos do júri, juiz natural, proporcionalidade, a partir da previsão de uma quesitação, nos artigos 482 e 483, que não mais pergunta aos jurados as teses de defesa, mas, simplesmente, se "o jurado absolve o réu?", adotando, parcialmente (?), o sistema guilty or not guilty anglo-saxão.
Como se passará a expor, há uma quebra flagrante dos pilares do Tribunal do Júri, que estão positivados como cláusula pétrea na Constituição de 1988, além de princípios constitucionais do Processo Penal, pondo por terra preceitos fundamentais a partir da nova redação legislativa acerca do Júri, aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República.
Com efeito, os dispositivos impugnados estão assim redigidos:
Seção XIII
Do Questionário e sua Votação
Art. 482. O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido.
Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes.’ (NR)
Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I – a materialidade do fato;
II – a autoria ou participação;
III – se o acusado deve ser absolvido;
IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
§ 1º A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado.
§ 2º Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:
O jurado absolve o acusado?
§ 3º Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre:
I – causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
II – circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
§ 4º Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2º (segundo) ou 3º (terceiro) quesito, conforme o caso.
§ 5º Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito.
§ 6º Havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas.’ (NR)
O Tribunal do Júri é instituição secular, prevista em todas as Constituições Brasileiras, sendo verdadeira garantia individual do cidadão, além de constituir-se em um dos mais claros exemplos de democracia neste país, com participação direta do povo em um Poder de Estado.
A modificação legislativa, atropelando diversos preceitos fundamentais garantidos no artigo 5º da Carta Constitucional, desmonta a instituição do Tribunal Popular, atingindo-a em seu principal pilar nos dispositivos que afirmam sua engrenagem e, igualmente, deixa de dar a efetiva proteção a diversos direitos fundamentais como vida, integridade física e psíquica, segurança, dentre outros.
Como se trata de questão diretamente afeta a preceitos fundamentais da Constituição da República, entre os quais os relativos a princípios constitucionais do Tribunal do Júri e direitos fundamentais dos cidadãos, afigura-se conveniente e oportuno, além de juridicamente cabível, a submissão do caso a exame do Supremo Tribunal Federal, para imediata apreciação, via controle de constitucionalidade concentrado, provocado por AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
2. O JÚRI NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL: A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONFORME A CONSTITUIÇÃO (Verfassungskonforme Auslegung).
O Tribunal do Júri está inserido no texto constitucional como cláusula pétrea, no art. 5º, XXXVIII, tratando-se de preceito de caráter fundamental. Iniludível que qualquer regra infraconstitucional deverá ser interpretada de acordo com a intenção do constituinte de 1988, ao manter a instituição do Júri e afirmando seus princípios mínimos, mas que constituem a força e poder do Tribunal Popular.
Ruy Barbosa ensinava que "É o juiz togado quem aplica a pena, resolvendo as questões puramente jurídicas. Tudo mais depende, sobretudo no campo da aplicação, de preliminares ou prejudiciais que a Constituição confia à soberania do Júri, reflexo da soberania popular, como pioneiro da interpretação evolutiva, progressista, sociológica, do direito livre, do direito-justo, do direito-fim" ("O Júri sob Todos os Aspectos", Ed. Nacional de Direito, Rio de Janeiro, 1950, pág. 18). E, claramente, em 1988, a Constituição manteve o Júri, como garantia fundamental do cidadão, elencando os seus princípios básicos, que afirmam sua independência e soberania, como órgão político, de cidadania.
Os princípios do Júri – plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e competência exclusiva para os julgamentos dos crimes dolosos contra a vida – são intocáveis, frise-se, por força de previsão expressa do constituinte, sendo a força motriz da instituição. Qualquer medida legislativa que venha a arranhar ou querer modificar o Júri em um desses princípios, constituirá, obviamente, violação de mandamento constitucional e, assim, sem a mínima validade no mundo jurídico.
Ainda mais nos dias atuais, em que cada vez mais tem-se como pacífica a necessidade de que qualquer norma infraconstitucional seja interpretada à luz da Constituição.
Veja-se que Ruy Barbosa, pelos idos de 1920, comentando a simples frase da Constituição Federal de 1891 que, sobre o Júri, apenas afirmou "É mantida a instituição do júri", como garantia individual do cidadão, ofereceu a seguinte lição, com total aplicação à questão hoje posta pela Lei n.º 11.689/2008, em clara inconstitucionalidade. Disse o mestre e ilustre jurista:
"Manter é conservar o que está em condições que não lhe alterem a identidade. O legislador, nesta parte, não se limita a assegurar a instituição do júri, à semelhança do que faz em relação a outras garantias liberais: manda respeitá-la na situação que encontrou. Isto é, não contente de lhe afiançar a existência, caracteriza-o, prorrogando a duração da entidade preexistente. Essa cláusula tem, portanto, o duplo valor e uma definição. Resolve continuar as formas tutelares do júri, tais quais as fixara o uso nacional, apoiado no das outras nações" (ob. cit., pág. 63).
Em 1988, além de "manter o Tribunal do Júri" e posicionando-o no texto constitucional no artigo 5º, como garantia e direito fundamental, o constituinte edificou os pilares da estrutura da instituição, inalteráveis. Se não pode ser abolido o júri, não pode também a instituição ser desfigurada, descaracterizada em suas regras fundamentais que estão insculpidas na Constituição, sob pena de tentativa de abolição (querida ou não pelos legisladores, não importa), porém de forma oblíqua. Tal proceder gera, inegavelmente, visível inconstitucionalidade.
Nesse aspecto, deve-se ter em conta que a Constituição é a viga mestra de um Estado Democrático de Direito. A partir de uma nova ordem estipulada pelo poder constituinte originário, todo sistema jurídico deve observar as diretrizes elencadas na Lei Maior para que haja a sua concretização. Para sua aplicação, realização no mundo fático, impõe-se aos operadores do direito, legisladores e, também, a todos que convivem em sociedade, observarem seus mandamentos.
Essencial, nesse sentido, para que a Constituição esteja sempre viva, surtindo efeitos verdadeiros no contexto social, que a interpretação das normas seja um trabalho de raciocínio, de inteligência, tornando a norma uma realidade, fazendo valer a "vontade de Constituição" (Wille zur Verfassung), na acepção de Konrad Hesse.
A interpretação jurídica em função normativa, sobretudo na linha constitucional, dá vigor ao sistema, garante-se, pela hermenêutica, o valor da norma. Como referido acima, impõe-se, na conjuntura atual, que a interpretação tenha sempre uma primeira base na Constituição, por ser a força do sistema, irradiando luz sobre todo o ordenamento jurídico.
O jurista José Joaquim Gomes Canotilho, acerca deste tema, ensina:
"este princípio é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição. Esta formulação comporta várias dimensões: (1) o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais; (2) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ''contra legem'' impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais..." (Direito Constitucional, Ed. Livraria Almedina, 6ª ed., Coimbra, 1993, págs. 252-253).
Assim, fala-se na interpretação conforme a Constituição como um verdadeiro princípio, algo cada vez mais consagrado para garantia de efetividade das normas constitucionais.
Nesse mesmo sentido, Paulo Bonavides afirma que "...Em rigor, não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição. A Verfassungskonforme Auslegung, consoante decorre de explicitação feita por aquele Tribunal, significa na essência que nenhuma lei será declarada inconstitucional quando comportar uma interpretação ‘em harmonia com a Constituição" e, ao ser assim interpretada, conservar seu sentido ou significado" (Curso de Direito Constitucional, Ed. Malheiros, 9ª ed., São Paulo, 2000, pág. 474).
Essas diretrizes interpretativas são de indiscutível relevância, levando em conta o princípio da unidade da ordem jurídica, tendo além de um simples caráter de ser norma de exame, em que se observa a constitucionalidade de uma lei, um sentido de norma material, ligado ao conteúdo de uma lei ordinária que rege determinada questão jurídica.
Ao analisar a questão, Konrad Hesse lembra que "a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição (A Força Normativa da Constituição, Ed. Safe, Porto Alegre, 1999, pág. 22).
Hesse argumenta, nessa linha de raciocínio, que "a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação" (pág. 22).
Assim, a Verfassungskonforme Auslegung leva a um campo abrangente, porém, é necessário que um marco seja certo: a Constituição deve ser sempre o ponto de partida e o objeto a ser levado em consideração na análise hermenêutica. Tal entendimento, certamente, um claro avanço na doutrina, torna a interpretação jurídica, em função normativa, um evidente instrumento para o operador do direito, como intérprete, concretizar os mandamentos constitucionais, fazendo justiça no caso concreto, ou seja, garante a "força normativa" da Constituição como sustenta Hesse.
Essa interpretação jurídica, em função normativa, garante força e vida à Constituição, emprestando-lhe todo vigor e valor perante a sociedade que rege. Conforme defende Hesse, "A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar ‘a força que reside na natureza das coisas’, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)..." (pág. 24).
No caso do Tribunal do Júri, a Constituição inseriu a instituição no capítulo das garantias e direitos individuais, com princípios que são a base firme e sólida de seu funcionamento, os quais não podem ser alterados pelo legislador ordinário. Trata-se de cláusula pétrea, que diz respeito à existência e eficácia do Júri brasileiro.
Assim, a Lei n.º 11.689/2008, que entrará em vigor no dia 09 de agosto vindouro, deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais que regem a matéria, segundo a uníssona e moderna doutrina de Direito Constitucional. E é nesse ponto que se verifica a total afronta à instituição do Júri, ao seus princípios constitucionais fundamentais, verdadeiro atropelo do legislador ao aprovar a Lei n.º 11.689/2008.
A inconstitucionalidade de dispositivos que regem a matéria da quesitação quebra o Júri em seu meio, afronta princípios básicos do Processo Penal e, sobretudo, do Tribunal Popular, como se demonstrará a seguir, o que impõe a urgente propositura de ação direta de inconstitucionalidade, sob pena de fazer-se tabula rasa dos preceitos constitucionais relativos ao Júri e, simplesmente, fazer ruir uma instituição que há centenas de anos presta relevante serviço à sociedade brasileira, ditando Justiça.
3. DAS REGRAS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DESRESPEITADOS:
Os preceitos fundamentais desrespeitados pela Lei 11.689/2008, especificamente, pelos artigos 482, caput, e 483, III e § 2º, supracitados, ferem, diretamente, o artigo 5º, caput; art. 5º, XXXVIII, a, b, c, d; artigo 5º, LIV; artigo 5º, LV, bem como o princípio da proporcionalidade.
Observados os princípios fundamentais do Tribunal do Júri e do Processo Penal, por uma simples leitura da nova lei do Júri, conclui-se, de plano, em fácil percepção, que há violações incontestáveis de normas constitucionais, atingindo:
a) PRINCÍPIO DA IGUALDADE
b) PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
c) PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
d) PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
e) PRINCÍPIO DA PLENITUDE DE DEFESA
f) PRINCÍPIO DO SIGILO DAS VOTAÇÕES
g) PRINCÍPIO DA SOBERANIA DO JÚRI
h) PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
i) PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Passa-se à análise.
Com a aprovação e sanção da Lei n.º 11689/08, entrará em vigor, a partir de 09 de agosto de 2008, a reforma do Tribunal do Júri.
Na quesitação vem a modificação mais profunda e problemática, que atropela inúmeros princípios fundamentais garantidos na Constituição Federal de 1988.
A idéia de "simplificação" é uma cortina de fumaça, uma falácia, pois como ficariam as teses dos excessos, inimputabilidade, participação dolosamente distinta ou de menor importância, qualificadoras, várias séries para diversos fatos e vários réus...Serão propostos vários quesitos de qualquer forma! Que grande modificação é essa: só pela lei são cinco quesitos, mais a tentativa ou desclassificação. Pergunta-se: já não é o que ocorre hoje em dia nas votações?? Ah, mas se o processo envolve vários réus, vários fatos, demora-se muito. Pois vai demorar da mesma forma e, pior, só simplifica no FUNDAMENTAL (algo absurdo e temerário): perguntar se absolve...só que ferindo a Constituição Federal, o Júri, direitos do Ministério Público e, em decorrência lógica, da sociedade e do cidadão!
Tanto é verdade que Guilherme de Souza Nucci traz a seguinte informação: em pesquisa junto aos jurados do 3º Tribunal do Júri de São Paulo, 82,08% NÃO consideram o sistema de votação na sala secreta complexo demais e 81,19% entendem plenamente as teses e os argumentos apresentados pelas partes durante os debates, permitindo votar com consciência e de modo seguro ("Júri – Princípios Constitucionais", p. 163).
Como diz Mauro Viveiros, "não dá para economizar em tema fundamental", ainda mais quando é sabido e afirmado pela doutrina que os problemas da votação ocorrem pela má formulação ou deficiência de explicação pelos juízes togados, não pela compreensão dos jurados!
Com inteira razão, Marcos Caires Luz, em recente artigo publicado no site Jus Navegandi, "A Falsa Maioria do inciso III e § 2.º do artigo 483 do Código de Processo Penal", analisando a modificação da quesitação proposta pela nova lei, traz as seguintes considerações, apontando a ocorrência de INCONSTITUCIONALIDADE:
"A Constituição traça um quadro mínimo da ritualística procedimental do Tribunal do Júri. Por si só, estabelece competência do Tribunal Popular para apreciar e julgar os crimes dolosos contra vida, garantindo às partes, leia-se acusação e defesa, paridade de armas, respeitando-se sempre o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a plenitude dela. Traz, implicitamente, garantia ao não cerceamento da defesa nem tampouco da acusação. Veda a acusação deficiente. Proíbe a defesa técnica deficiente. Como imperativo lógico, protege os veredictos dos Senhores Jurados com o manto da soberania, que, numa visão didático constitucional: a) afirma a qualidade de juízes dos jurados sorteados para formarem o Conselho de Sentença com a correspondente obrigação de todos em respeitar o conteúdo de suas decisões; b) garantir uma metodologia eficiente, infalível, absolutamente fiel à convicção dos jurados, livre de desembaraço, pressões e influências internas e/ou externas, quer durante a tomada de decisão dos jurados, quer quando da aferição ou reprodução das suas decisões".
"O Código de Processo Penal, lei ordinária que é, deve estrita obediência ao desenho constitucional conferido ao Tribunal Popular. Quer dizer que, no exercício da organização procedimental do Tribunal do Júri, tem obrigação de respeitar as balizas constitucionais sobre o tema, delas não podendo se furtar sequer por um fugidio espaço de tempo ou limite. Tem o legislador infraconstitucional obrigação de obedecer aos parâmetros principiológicos da Constituição, no lado norte e no lado sul, no leste e no oeste, sob pecha de flagrante inconstitucionalidade".
"Infelizmente, esse quadro mínimo constitucional foi desrespeitado pelo legislador na Lei 11.689, de 9 junho de 2008, especialmente, no inciso III e no § 2.º do artigo 483 do Código de Processo Penal".
É a mesma posição defendida no site do jurista Luiz Flávio Gomes (www.lfg.com.br), em artigo de Lara Gomides de Souza, Luiz Lopes de Souza Junior e Luma Gomides de Souza, afirmando que "a mudança em relação ao terceiro quesito não forçaria o jurado a pensar sobre o tema que se discute. Facilita, sem dúvida, seu trabalho. Mas a quê custo? Enfim, em que pese o dinamismo das mentes que elaboram referido projeto e aprovaram de forma definitiva a lei, acreditamos que as mudanças, em grande parte, somente servirão para abarrotar ainda mais os Tribunais de Justiça e Superiores com recursos argüindo nulidade e inconstitucionalidades. Alterações como a da audiência una, alegações finais orais e da quesitação ferem de forma clara o princípio da ampla defesa, principalmente ao se tratar de Tribunal do Júri, onde a defesa do acusado deve ser plena. Não estamos negando a importância do princípio da celeridade, no entanto, certas garantias não poderão ser sacrificadas em prol daquele. A Lei 11.689/08 ainda está em prazo de vacatio legis e já estamos esperando pelo advento de Ação Direta de Inconstitucionalidade que questione algumas de suas normas, rogando a Deus para que o Judiciário tenha mais juízo que o Legislativo".
O Tribunal do Júri possui um procedimento "especialíssimo", diante de sua natureza diferenciada, em que leigos são os juízes da causa. Como dito acima, sua soberania vem estampada pela certeza de que foi extraída a sua convicção, a sua vontade no julgamento. Isso, pela Lei n.º 11.689/08, vem totalmente desrespeitado, atingindo em cheio a instituição em sua estrutura, bem como ferindo princípios básicos e fundamentais do Processo Penal que estão reconhecidos no artigo 5º da Constituição.
I. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IGUALDADE E DO CONTRADITÓRIO (com abrangência dos PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO).
O princípio do contraditório está previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, com a seguinte redação:
Art. 5º, LV. "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes".
Segundo Guilherme de Souza Nucci, "Quer dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade e à manutenção do Estado de inocência do acusado. Cuida-se de princípio ligado, essencialmente, à relação processual, servindo tanto à acusação quanto à defesa" ("Manual de Processo Penal e Execução Penal", Ed. RT, 2ª ed., SP, 2006, pág. 81).
Já o princípio da igualdade, por seu turno, sustenta-se no artigo 5º, caput, e também está afirmado no inciso LIV, relativo ao devido processo legal. É um princípio insculpido na Constituição Federal e que em sede de Processo Penal constitui um dos seus mais básicos princípios.
Fernando da Costa Tourinho Filho, com clareza, sustenta que "No processo, as partes, embora figurem em pólos opostos, situam-se no mesmo plano com iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. É uma conseqüência do princípio do contraditório. E o legislador procurou manter esse equilíbrio diante do Juiz" ("Processo Penal, vol. I, Ed. Saraiva, 27ª ed., SP, 2005, pág. 42).
Mais adiante, o mencionado doutrinador refere o princípio da "Paridade de Armas", afirmando que "De nada valeria as partes acusadora e acusada encontrarem-se no mesmo plano, eqüidistantes do Juiz, órgão superpartes, se o Estado não lhes proporcionasse equilíbrio de forças, dando-lhe os mesmos instrumentos para a pugna judiciária. Sendo a ampla defesa dogma constitucional, por óbvio haveria desrespeito à Lei Maior se, por acaso, uma das partes, no Processo Penal, tivesse mais direitos que a outra" (págs. 42-43).
Como se vê, os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e igualdade são interligados, constituindo-se numa garantia do cidadão e, por óbvio, da sociedade brasileira, valendo, no Processo Penal, para ambas as partes.
Por essa leitura, tanto o Ministério Público como a defesa de um acusado devem ter a garantia de poder contraditar os argumentos, as teses, bem como ter igualdade de obrigações e faculdades processuais, de maneira que se possa falar em um processo justo. A situação é muito mais clara se falarmos de processo de Júri, onde há tutela do direito à vida e direito à liberdade.
Ministério Público e defesa sustentam teses e lutam por direitos da mais alta relevância no meio social, devendo imperar e valer, com efetividade, tais princípios fundamentais, ainda mais que o julgamento, o ato derradeiro, ocorrerá perante juízes leigos.
Certo, entretanto, que ao Ministério Público, na defesa da sociedade, é garantida a aplicação destes princípios atuando como parte em processo criminal, por haver, indiscutivelmente, interesse público acima de tudo.
E, nesse ponto é que se verifica a total afronta que a Lei 11.689/2008 traz em seus dispositivos aos mencionados princípios constitucionais, havendo cristalina inconstitucionalidade.
Pelo artigo 482 e 483 da Lei 11.689/2008, após a votação da materialidade e da autoria, o júri será questionado: "o jurado absolve o réu?".
Pela nova lei, não serão questionadas as teses defensivas, havendo, simplesmente, essa pergunta, englobando, assim, todo o debate jurídico da causa acerca de teses absolutórias. Isso, deixa as partes em total disparidade, com o Ministério Público, inclusive, sem condições de recorrer em caso de absolvição e alegada mais de uma tese absolutória. Há, assim, incontestável violação ao princípio do contraditório.
Mauro Viveiros, em brilhante obra sobre o Tribunal do Júri, fazendo a análise do então projeto aprovado no Congresso Nacional (hoje Lei n.º 11.689/2008), já advertia sobre essa questão:
"Ao nosso ver, essa obrigatoriedade, se seguida rigidamente, poderá implicar em violação ao princípio do contraditório na sua plenitude e cerceamento, tanto à acusação, quanto à defesa em diversos casos concretos...como se configurará cerceamento à acusação...o defensor estaria desobrigado de submeter ao crivo dos jurados, efetivamente, as suas propostas de defesa, ou seja, só o Ministério Público estará obrigado a submeter ao Júri os quesitos referentes aos elementos da proposta de condenação. Para se ter mais claro o problema, pense-se que o réu pode alegar cerca de duas dezenas de teses defensivas, sem que nenhuma seja votada pelos jurados, enquanto que as proposições da acusação serão, obrigatoriamente, votadas e, assim, efetivamente, apreciadas pelo Júri. ISSO AGRIDE PROFUNDAMENTE O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO (ART. 5º, LV, DA CF) posto que uma das mais expressivas facetas desse princípio é a igualdade de tratamento processual...Induvidoso que o jus puniendi estatal ficaria seriamente comprometido nessa situação, pois que se conferiria uma margem de liberalidade irracional à defesa, já que ela poderia, simplesmente, relacionar numa lista e mencionar nos debates todas as teses possíveis e imagináveis, previstas ou não no ordenamentos jurídico, sem assumir qualquer risco ("Tribunal do Júri, na Ordem Constitucional Brasileira: um Órgão da Cidadania", Ed. Juarez de Oliveira, SP, 2003, págs. 157-158).
A defesa, então, poderia alegar inúmeras teses, sem qualquer compromisso (pois não serão votadas as teses), havendo clara disparidade com a atuação certa da parte contrária, e, pior, absolvido o réu, mesmo que registradas as teses defensivas em ata de julgamento, o Ministério Público não terá como "adivinhar" qual a tese que foi acolhida pelos jurados, muito menos o Tribunal de Justiça para eventual análise do recurso e definir se a decisão teria sido manifestamente contrária à prova dos autos. Simplesmente, o Ministério Público ficará sem possibilidade de recorrer no mérito da decisão do júri, em caso de absolvição, o que, não se pode negar, constitui FLAGRANTE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, como bem frisa Mauro Viveiros.
Conforme Ricardo Vital de Almeida, na obra "O Júri no Brasil, Aspectos Constitucionais: Soberania e Democracia Social" (Ed. Edijur, SP, 2005, pág. 85):
"O JÚRI SEM CONTRADITÓRIO EQUILIBRADO É, POR UM LADO, ATAVISMO INQUISITORIAL E, POR OUTRO, SACRIFÍCIO COVARDE DA SOCIEDADE".
Antônio Scarance Fernandes, por sua vez, ensina que o princípio do contraditório tem integral aplicação ao Ministério Público, observados os interesses que são defendidos pela instituição:
"...deve-se entender que a Constituição, ao consagrar o contraditório no art. 5º, LV, garante-o no processo criminal a ambas as partes, não apenas ao acusado como também ao Ministério Público. Não se pode invocar o argumento de que a norma constitucional se destina a garantir apenas o indivíduo, pois, ao se exigir o contraditório em relação ao Ministério Público, está-se, também garantindo o indivíduo" ("Processo Penal Constitucional", Ed. RT, 5ª ed., SP, 2007, pág.).
Essa é a verdade: garantindo-se o contraditório ao Ministério Público, sem dúvida, estar-se-á garantindo os direitos do cidadão! Conforme defende Júlio Fabbrini Mirabete:
"Corolário do princípio da igualdade perante a lei, a isonomia processual obriga que a parte contrária seja também ouvida, em igualdade de condições (audiatur et altera pars). A ciência bilateral dos atos e termos do processo e a possibilidade de contrariá-los são os limites impostos pelo contraditório a fim de que se conceda às partes ocasião e possibilidade de intervirem no processo, apresentando provas, oferecendo alegações, recorrendo das decisões, etc.)" ("Processo Penal", Ed. Atlas, 8ª ed. 1998, pág. 43).
Pela sistema "absolve ou condena", cria-se uma violação gritante, incontestável, ao PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO, previsto no artigo 5º, LV, da Carta Magna. Cabe observar as conseqüências geradas pela nova legislação, na prática:
a) O Ministério Público não terá como recorrer se propostas duas ou mais teses de defesa com força absolutória: como saber por qual tese o réu foi absolvido? Como o Tribunal vai poder rever, reformar a decisão? Como dizer que foi manifestamente contrária à prova dos autos se não se sabe o que o júri deliberou sobre cada tese??? Ora, cada jurado deu um voto para cada tese distinta, que veio a somar 04 ou mais votos...agora, pelo o quê?
O Ministério Público, sendo ventilada mais de uma tese absolutória, simplesmente, fica sem recurso de mérito, o que fere os princípios da igualdade processual e do contraditório, PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, situação gravíssima, ainda mais em processo de crimes dolosos contra a vida.
Igualmente, dentro da sistemática recursal e seus princípios, é inegável que há violação, por conseqüência, do princípio do DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, no que diz respeito ao conhecimento da irresignação, pois estará sendo admitida a soberania "absoluta" do júri, em primeiro e único julgamento, algo que é refutado por toda doutrina e jurisprudência, com base no bom senso e princípio de Justiça.
Cabe observar, inclusive, que um dos mais importantes doutrinadores sobre Júri, Hermínio Marques Porto, já em 1999, advertia, analisando o projeto de reforma do Júri, que:
"o sentido da pergunta "culpado ou inocente", irá gerar dificuldades insuperáveis para o necessário encontro, em etapa recursal, do fundamento da decisão absolutória, pois a resposta pela inocência do acusado trará implícita, ao lado de outros exemplos, a aceitação de causa de exclusão de ilicitude não determinada. O aspecto criará dificuldades na formulação, em etapa recursal, de razões voltadas para a reforma ou manutenção da decisão dos jurados, bem como criará embaraços na apreciação, pela instância superior, do mérito da apelação manifestada por ser, por uma das partes, tida a decisão dos jurados como contrária à prova dos autos. Temos como imprópria a proposta fórmula indagativa, pois à decisão dos jurados devem ser levados, através de quesitos, temas defensivos nominalmente tratados ("Tribunal do Júri: Estudo sobre a mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira", coordenação de Rogério Lauria Tucci, Ed. RT, pág. 210).
Tal situação apontada por Hermínio Marques Porto evidencia a violação do princípio do duplo grau de jurisdição e do contraditório, constituindo transgressão indiscutível de princípios fundamentais do Processo Penal Brasileiro.
b) A situação criaria a soberania "absoluta" do júri em caso de "primeira" (ou então única?) absolvição do réu, na contramão de toda doutrina e jurisprudência que permitem uma apelação no mérito, para evitar arbítrio, aberração e injustiça, já que o segundo júri é uma decisão também da comunidade, não sendo decisão togada. É pacífico que a soberania do Júri não pode ser entendida como absoluta, pois o que se busca em processo penal é a verdade e a Justiça. Deve haver possibilidade de recurso, no mínimo, de revisão que, em última análise, terá a palavra final ditada pelo Tribunal Popular, ou seja, respeitada a soberania da instituição.
Agora, pela reforma legislativa, absolvido o réu, tendo alegado mais de uma tese absolutória, o Tribunal de Justiça não tem como "adivinhar" a tese "vencedora"...fica o Ministério Público de mãos atadas, mesmo em casos (que ocorrerão!) de flagrante INJUSTIÇA...e o Tribunal de Justiça nada poderá fazer, mesmo que registradas as teses defensivas em ata, pois, o que importa, por óbvio, é que simplesmente NÃO SE SABE POR QUAL RAZÃO EFETIVAMENTE O RÉU FOI ABSOLVIDO!!! É inacreditável. Há uma tremenda violação ao princípio do contraditório e, nesse aspecto, como se verá adiante, da própria soberania do Júri. Em qualquer manual de Processo Penal ou Júri, a idéia é uníssona: não se pode admitir uma soberania absoluta, nem para condenação nem absolvição, pois o que se quer (deveria ser assim), acima de tudo, é a realização de JUSTIÇA.
Pior, na prática será admitida a absolvição por uma "maioria fictícia", inexistente, o que constitui evidente INJUSTIÇA. Basta observar que se forem 07 teses absolutórias de defesa, a absolvição poderá ocorrer por UM MÍSERO VOTO e, então: 7x0. No sistema americano, há comunicabilidade, os jurados debatem sobre todas as teses que ouviram e chegam a uma conclusão final: culpado ou inocente. No Brasil, como há o SIGILO DAS VOTAÇÕES e, em decorrência deste princípio constitucional, a INCOMUNICABILIDADE DOS JURADOS, não se questionando as teses e não se sabendo o que os jurados entendem para cada argumento defensivo, haverá uma suposta maioria de 01, 02, 03, 04 ou mais que servirão para justificar uma absolvição, quando o caso era de condenação, diante do entendimento DA EFETIVA MAIORIA DOS JURADOS.
Tanto que esse é ponto-chave do Júri Brasileiro, imodificável segundo a NORMA CONSTITUCIONAL, principalmente, pela interpretação CONSTITUCIONAL DO SISTEMA GARANTIDO NA LEI MAIOR COMO ESTRUTURA MÍNIMO DO TRIBUNAL POPULAR NO BRASIL. Isso, sob pena de total violação e, por conseqüência, abolir ou desfigurar o Júri, retirando-lhe a sua SOBERANIA, algo nefasto e ANTIDEMOCRÁTICO.
Há, portanto, inegável violação dos princípios constitucionais da igualdade e contraditório, devendo ser reconhecida a inconstitucionalidade dos dispositivos supramencionados da Lei n.º 11.689/2008.
II. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO SIGILO DAS VOTAÇÕES (diante do reflexo na SOBERANIA DO JÚRI – adoção inconstitucional e parcial do guilty or not guilty).
O sistema "condena ou absolve", sabidamente, é INCOMPATÍVEL com o princípio constitucional do sigilo das votações e incomunicabilidade dos jurados (tanto que nunca foi adotado no Brasil por sua total impossibilidade jurídica-constitucional): o processo é debatido em longa sessão e, então, é feita uma pergunta: "o jurado absolve o acusado?". Ora, é imperativo ter-se em conta que o nosso Júri é diferente do sistema anglo-saxão e norte-americano, em que há debate da causa pelos jurados, para deliberação posterior, somente havendo condenação por unanimidade.
Como sustenta Aramis Nassif, Desembargador gaúcho, especialista na matéria, "pelo novo projeto de júri, o jurado decide num único movimento de memória o que apreendeu durante a fase dialética do plenário...Impor ao jurado uma postura definitiva de apenas uma apreensão geral dos debates, será libertá-lo para seguir as condenações públicas feitas pela mídia...". Diga-se mais: ou absolver por pura confusão, dificuldade de relembrar os detalhes da discussão da causa, ou seja, das TESES DEBATIDAS!
"É A ASSUSTADORA A IDÉIA DE JULGAMENTO SEM INSTIGAR AS LEMBRANÇAS DO JURADO" diz o mencionado autor, afirmando, ainda, que: "O quesito, segmentando em função teleológica o comportamento do agente no fato e da estrutura deste, faz com que o jurado rememorize o detalhe pertinente, isolando-o da indagação e decisivo para a conclusão. A oferta plural dos quesitos elimina dúvidas e angústias. Não decidirá por impulso. Não instado a captar a realidade na segmentação, na interligação anelar das questões concorrentes para o todo debatido, prolatará juízo de convicção tão temerário quanto o conflito informado" ("Júri – Instrumento da Soberania Popular", Ed. Livraria do Advogado, 2ª ed., Porto Alegre, 2008, págs. 144-145).
Lênio Luiz Streck, na obra "Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais", já chamava a atenção para a idéia de reforma dos quesitos do júri para o sistema "absolve ou condena", inclinando-se de modo contrário à proposta, seguindo a linha de James Tubenchlak, afirmando que "se fosse exigido, diante da proibição da Constituição quanto à comunicabilidade dos jurados, que esses se limitassem, somente, a considerar o réu culpado ou inocente, sem terem antes discutido entre si, e por completo, os termos da imputação, ver-se ia ampliada de maneira invulgar a competência do juiz togado..." (Ed. Livraria do Advogado, 4ª ed., Porto Alegre, 2001, pág. 153).
Resumindo:
a) SIGILO DAS VOTAÇÕES: VOTO POR ÍNTIMA CONVICÇÃO EM INCOMUNICABILIDADE: DECISÃO DE CADA DETALHE DE ACORDO COM MEU ENTENDIMENTO (BRASIL – regra CONSTITUCIONAL): votada cada tese defensiva;
X
b) COMUNICABILIDADE: NÃO HÁ SIGILO – VOTAÇÃO UNÂNIME (para condenação), COM AMPLO E PROFUNDO DEBATE DA CAUSA PELOS JURADOS (EUA/ INGLATERRA): comunicação do jurados para deliberação (que pode durar dias, meses, até dissolver o júri) se é culpado ou inocente.
Torna-se imperativo relembrar que as normas infraconstitucionais devem observar o sistema disposto pela Lei Maior. A interpretação, igualmente, deve buscar concretizar a Constituição, a sua vontade, a Wille zur Verfassung ressaltada por Konrad Hesse.
Nesse ponto, a Lei n.º 11.689/08 traz, em seu contexto, norma que É TOTALMENTE INCOMPATÍVEL COM O JÚRI BRASILEIRO, baseado na incomunicabilidade e sigilo das votações. O jurado decide no ato, por sua íntima convicção, sem poder falar com ninguém, sem expressar publicamente sua manifestação (apenas deposita sua decisão na urna com o seu voto). Esse sistema baseia-se no júri francês, que veio adotado no Brasil desde os primórdios e, cabe salientar, está CONSAGRADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 (cláusula pétrea).
Então, a nova lei, instituindo a "simples" pergunta "o jurado absolve o réu" para definir um caso de crime doloso contra a vida, sem haver a perquirição de cada tese defensiva, acolhe o sistema anglo-saxão/norte-americano, porém, SEM HAVER A COMUNICABILIDADE DOS JURADOS!
Há, assim, uma evidente burla de um princípio constitucional básico do júri brasileiro. Não há margem de erro: pergunta-se apenas se "absolve o réu", mas sem haver a comunicabilidade, algo que viola a Constituição, pois cabe ao intérprete e, inclui-se aí o legislador, analisar a norma com olhos na Constituição, como já exposto, baseado na Verfassungskonforme Auslegung.
O sistema de quesitos de cada tese debatida no processo vem baseado na INCOMUNICABILIDADE que decorre do PRINCÍPIO DO SIGILO DAS VOTAÇÕES. Sistema francês, sempre utilizado em nosso país, e consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, ou seja, não admite reforma que não seja por nova Assembléia Constituinte.
Já o sistema de júri em que se pergunta se o jurado "absolve o acusado", sem questionar as teses defensivas, cada uma, pressupõe, OBRIGATORIAMENTE, a COMUNICAÇÃO DOS JURADOS, o debate entre os próprios juízes leigos para definição do veredicto, tanto que as decisões condenatórias devem ser consagradas pela unanimidade.
A mescla de um sistema com o outro, simplesmente, desmantela o júri, havendo incerteza total acerca das mínimas razões de sua decisão. Tal questão liga-se, assim, ao princípio da SOBERANIA DO JÚRI, já que, ao não se saber quais os fundamentos mínimos do decisum (que ocorre pela simples votação das teses defensivas no sistema atual), não há um sistema que garanta a verdadeira vontade do jurado, pois, incomunicável, votou por lembrança remota do que foi discutido ao longo de um dia inteiro, algo perigoso como acima foi demonstrado pelas lições de Aramis Nassif, desembargador com longa experiência no Júri de Porto Alegre/RS. É a mesma lição que se extrai das palavras de Lênio Luiz Streck supramencionadas.
Viola-se, portanto, a engrenagem do júri brasileiro que é uma GARANTIA CONSTITUCIONAL. Pergunta-se: de que adianta manter o júri na Constituição Federal se, por lei ordinária, é possível modificar sua estrutura, mínima, mas sua ESPINHA DORSAL, adotando sistema anglo-saxão em parte e fazendo uma mescla, que traz o claro e evidente emperramento de suas linhas mais básicas de funcionamento.
Ao ser adotado pelo legislador o sistema "absolve ou condena", oriundo dos Estados Unidos da América e Inglaterra, mas PELA METADE (ou nem isso!), juntando com um sistema que é totalmente diferente como o brasileiro, oriundo do sistema francês, há verdadeira aberração jurídica, uma instituição multifacetada, que perderá a identidade, já que NÃO HAVERÁ COMUNICAÇÃO ENTRE OS JURADOS POR IMPEDIMENTO EXPRESSO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988.
Isso é que o legislador deveria ter em mente: não poderia alterar um ponto-chave do júri brasileiro pela metade, pois isso arranha, toca em matéria estritamente CONSTITUCIONAL.
Como é impossível adotar-se o sistema inglês/norte-americano integralmente, pois, repita-se, o sigilo das votações é previsão constitucional expressa e constitui-se em cláusula pétrea, em face disso mesmo não há como adotá-lo pela metade, sob pena de descaracterizar, desfigurar a instituição do Júri brasileiro (o que é, lembre-se, em caráter peremptório, inconstitucional!).
Entretanto, cabe a interpretação da lei ordinária em conformidade com a Constituição. E, sabidamente, a lei infraconstitucional não pode ferir norma prevista e consagrada na Lei Maior, sob pena de ser considerada viciada e, por isso, INCONSTITUCIONAL.
Tal situação, como demonstrada, é incontestável, pois com a adoção de um sistema mesclado, que é inadequado e impossível de ser admitido no Brasil, viola-se, sem dúvida outros princípios básicos do júri, acima de tudo, sua própria SOBERANIA, mas atingindo, também, a plenitude de defesa e juiz natural (julgar crimes dolosos contra a vida).
III. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DO JÚRI – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL (COMPETÊNCIA PARA JULGAR OS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA).
Não há dúvida que o sistema "simplificado" é deficiente, gerando, assim, uma afronta geral à Constituição, principalmente, atingindo o Ministério Público (contraditório) e também à defesa, como visto acima.
Porém, há mais uma importante questão: o sistema é tão absurdo que impossibilita o Júri de apreciar a causa integralmente, sonegando-lhe a liberdade de votar de acordo com seu livre entendimento sobre o processo.
Resta ferida a SOBERANIA DO JÚRI, princípio constitucional que caracteriza o pilar mais vivo da instituição. Júri sem soberania não é júri, pois tem "poder pela metade", o que é antidemocrático e vem a contrariar texto expresso da Constituição.
A soberania dos veredictos é a força do Júri, sendo a quesitação a peça chave do exercício dessa soberania, pois é a forma de ser conhecida a decisão.
O júri é exclusivamente competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, por imposição da Constituição. Julga os fatos, nada podendo sobrar ao juiz togado, a não ser questões relativas à pena, nada mais. O poder é do Júri e sua soberania é que afirma a sua decisão no Estado de Direito Democrático perante a sociedade.
Assim, no momento em que, pela nova forma de quesitação, torna-se impossível aferir com a total e límpida clareza qual a decisão dos jurados, há flagrante violação ao princípio do juiz natural e, em face disso, à soberania dos veredictos. Dupla violação, pois constituem dois importantes princípios constitucionais.
Ao longo de séculos manteve-se a forma de quesitação, pois é a ÚNICA COMPATÍVEL COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL no que tange à possibilidade ser aferida a convicção e decisão do júri.
Conforme Kátia Duarte de Castro, em excelente trabalho sobre o Tribunal Popular, o questionário proposto aos jurados é uma forma de controle decorrente do princípio da legalidade, já que a votação por quesitos sobre teses é o que delimita a matéria fática a ser deliberada pelos membros do Conselho de Sentença. Nesse diapasão, refere a autora, com precisão:
"o questionário permite um controle da correlação entre a imputação e a sentença, permitindo ao Juiz-Presidente restringir a observação dos jurados à matéria de fato. De mais a mais, o questionário também serve para dirigir o exame dos jurados, a fim de que sejam aferidos todos os pontos relevantes da conduta do réu. De acordo com Oscar Xavier de Freitas, o direito ao júri, inscrito na Constituição Federal fundamentado em razões históricas de independência da justiça diante do poder absolutista, ou, na versão mais atualizada, na conveniência de uma política criminal que o juiz técnico teria possibilidade de adotar, amplia a faixa da liberdade individual, correspondendo aos objetivos preconizados por seus propugnadores, mas, estaria em contradição consigo mesmo se a estreitasse, colidindo com os direitos fundamentais. Uma garantia que se exaurisse na responsabilidade do voto acabaria por auto-anular-se. Sem os controles, como os previstos em nossa legislação, o julgamento do júri seria normalmente arbitrário, muito ao gosto dos que se dispõe a explorar eventuais paixões populares com objetivos políticos. ("O Júri como Instrumento do Controle Social", Ed. Safe, Porto Alegre, pág. 67).
Se o Ministério Público pede para absolver o réu ou afastar uma qualificadora e tal posição é também sustentada pela defesa, sabidamente o Júri pode votar em sentido oposto e condenar o réu ou acolher a qualificadora, sendo SOBERANO. Ora, os juízes são os membros do Conselho de Sentença! Apreciam a causa com um todo e decidem. Agora, seguindo a linha da nova legislação, tem-se flagrante violação à soberania do Júri.
Veja-se o perfeito exemplo lançado por Angelo Ansanelli Júnior, em obra específica sobre o tema : "...ainda que a defesa apenas sustente a tese de legítima defesa própria e o Ministério Público (ou o assistente) sustente a pronúncia, os jurados são livres para não acatar nenhuma das duas teses e reconhecer o excesso culposo na legítima defesa. Desta forma, o sistema de quesitação proposto não confere opção aos jurados, e, mais, violenta o princípio da plenitude de defesa, bem como subtrai da apreciação do Conselho de Sentença – juiz natural – a possibilidade de apreciação de todas as hipóteses pertinentes aos casos submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri ("O Tribunal do Júri e a Soberania dos Veredictos", Ed. Lumen Juris, RJ, 2005, p. 86).
Prossegue o autor, afirmando, com clareza, que "Inserido o sistema do absolvo ou condeno, sem permitir aos jurados o debate da causa, ousamos sustentar que a quesitação prevista no projeto é INCONSTITUCIONAL, uma vez que não se poderá precisar, em certas ocasiões, a vontade do jurado – juiz natural, para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (pág. 85).
Trata-se de doutrinador com obra específica sobre a matéria, apontando a INCONSTITUCIONALIDADE desta forma de quesitação acolhida na Lei n.º 11.689/08, sendo que, como visto acima, inúmeros doutrinadores, especialistas em júri, todos apontam a impossibilidade da adoção deste sistema em face da incompatibilidade com as normas constitucionais afetas ao Tribunal do Júri.
Vai-se além. Outro exemplo que demonstra a inadequação do sistema anglo-saxão ao júri brasileiro, mas que realmente, deixa isso muito claro, é a seguinte situação: o réu, durante o processo, alega legítima defesa, porém, nos autos há prova pericial que reconhece sua inimputabildiade. Como há possibilidade de ser absolvido no mérito, a decisão é do Júri, que julgará a matéria de fato. Submetido a julgamento, pelo novo sistema, será afirmada a materialidade e a autoria. No terceiro (e malfadado) quesito, será perguntado, conforme previsão do art. 483, III: "o jurado absolve o acusado?". Respondido SIM por quatro ou mais jurados, o réu será "absolvido", porém, por legítima defesa ou será caso de aplicação de medida de segurança, por absolvição imprópria? Isso demonstra a indiscutível inadequação deste sistema ao júri brasileiro.
E, impende salientar, não há possibilidade de formulação de quesitos específicos sobre inimputabilidade, pois a LEI NÃO PREVÊ, e não o fez justamente porque é FALHA E INCOMPATÍVEL COM O JÚRI DO NOSSO PAÍS, o qual está estruturado na Constituição de 1988 como garantia do cidadão, da sociedade!
O Juiz-Presidente, no caso exposto, ficará sem saber o que fazer, absolve efetivamente por legítima defesa ou aplica medida de segurança pela inimputabilidade? Qual a decisão do Júri? Aí está, claramente, mais um exemplo da contradição, ineficácia deste sistema, que, reconheça-se, sem medo de errar, VIOLA A SOBERANIA DO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO.
Soberania essa que se conquistou com anos e anos de luta e defesa de uma instituição que presta inegáveis préstimos à causa da Justiça Brasileira, uma tradição conquistada pela sabedoria de suas decisões.
Não é por acaso que Ruy Barbosa dizia: "Sentido senhores! Quando o Tribunal Popular cair é a parede mestra da Justiça que ruirá".
Sobre a questão de qualquer reforma que atinja o júri em sua estrutura constitucional, afirmou, com brilhante precisão (totalmente aplicável à situação atual pela Lei 11.689/08):
("O Júri sob Todos os Aspectos", Ed. Nacional de Direito, Rio de Janeiro, 1950, pág. 64)."nulo é o ato federal, ou local, que abolir o júri, assegurado no mesmo artigo e sob forma de uma declaração ainda mais incisiva. E, se é inválida a medida legislativa, que declaradamente abolir o júri, INVÁLIDA É A QUE VIRTUALMENTE O ABOLIR, DECOMPONDO-O, MUTILANDO-O, ANULANDO-O, MEDIANTE SUPRESSÃO DE ELEMENTOS ESSENCIAIS"
A adoção parcial do sistema anglo-saxão traz a VIOLAÇÃO DA SOBERANIA DO JÚRI, impedindo que objetivamente decida sobre aquilo que se está debatendo e julgando.
Há, assim, incontestável agressão ao princípio-base do poder do Júri brasileiro, sua soberania, chegando-se a mesma conclusão de Angelo Ansanelli Junior, defendendo, convicto e com inteira razão, que a "quesitação prevista no projeto é inconstitucional".
O Juiz togado não terá condições, em muitos casos, de saber qual a verdadeira decisão dos jurados e estes, por sua vez, ficarão sem poder decidir como efetivamente desejavam frente à situação posta nos autos (lembre-se das lições de Aramis Nassif, afirmando da impossibilidade de chegar-se a um veredicto pensado, refletido, juntando-se todas as teses possíveis em único quesito e neste buscar-se a decisão!).
É um retrocesso, é uma afronta a uma instituição que constitui exemplo de democracia para o mundo, pois o Tribunal do Júri é composto por cidadãos, os quais, no dia do julgamento, são os juízes da causa, "membros de um Poder de Estado".
Sem poder votar e decidir livremente, havendo a mínima possibilidade de não se poder identificar a sua vontade, está posta de lado a sua mais importante garantia e razão de sua existência: A SOBERANIA DOS VEREDICTOS.
Pelas razões acima expostas, de várias situações que deixam indiscutível dúvida sobre qual a verdadeira manifestação do júri, não cabendo, de forma alguma ao Juiz-Presidente, ter que interpretar ou achar alguma decisão possível, pois lhe é totalmente vedado adentrar em matéria de fato, resta muito claro que a reforma proposta viola a soberania do Tribunal Popular, mexe em sua estrutura básica garantida por princípios constitucionais, o que é flagrantemente INCONSTITUCIONAL.
IV. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PLENITUDE DEFESA.
A reforma trazida pela nova legislação, fere, igualmente, o princípio constitucional da plenitude de defesa.
Como já visto acima, impedindo que o jurado delibere sobre as teses de defesa expostas em plenário, simplesmente, votando se "absolve o acusado" ou não, retira-lhe a possibilidade de encontrar decisões intermediárias, que são atingidas pela votação, em próprio benefício do réu.
A situação vem exposta por vários doutrinadores ao comentarem o projeto que tramitava e acabou, lamentavelmente, vingando no Congresso Nacional, em que pese o claro atropelo do texto constitucional.
O exemplo ocorre quando, debatida a tese de legítima defesa, o Ministério Público sustenta a ocorrência de, no mínimo, excesso doloso (ou até a condenação pela denúncia) e a defesa afirma a tese de legítima defesa, sem qualquer excesso. No sistema anterior, os jurados seria perguntados sobre os requisitos da legítima defesa e afastando o excesso doloso, poderiam, de ofício, acolher o excesso culposo (erro em relação ao limites da excludente) ou até afastar as duas formas de excesso e absolver.
No sistema proposto pela nova lei, não há como o júri deliberar sobre a questão!!
Sendo sustentada a tese de legítima defesa, será perguntado sobre a materialidade e autoria do crime. Em seguida: "o jurado absolve o acusado?". Então, "absolve ou condena". Se absolve, pronto, foi acolhida a legítima defesa; se condena, foi acolhida a denúncia. Não há espaço para excesso na legítima defesa na nova quesitação, o que impede de o júri analisar a questão ou até mesmo, por sua soberania e vontade própria, nesse sentido decidir.
Trata-se de clara e indiscutível violação à soberania do júri e, inclusive, ao princípio da plenitude de defesa, algo sagrado para o funcionamento justo da instituição.
E não se venha dizer, como está sustentando Guilherme de Souza Nucci, que se pode fazer um quesito sobre a questão depois que os jurados disseram que CONDENAVAM O RÉU. É POSIÇÃO QUE NÃO ENCONTRA RESPALDO NA LEI. A desclassificação que a lei possibilita, claramente, é a própria, a ser realizada antes da tese prevista no inciso III do artigo 483, ou seja, do absolve ou condena. Se o júri condenar, ora, condenou, afastou a legítima defesa. Caso contrário, a nova legislação ordenaria a formulação de vários quesitos para as mais diversas teses de defesa, o que não foi feito, adotando-se, de modo precipitado, parte do sistema anglo-saxão, do guilty or not guilty.
A conseqüência é essa: violação de princípios fundamentais do júri e do processo penal, princípios reconhecidos e afirmados no artigo 5º da Constituição Federal! Esse é um exemplo da gravidade dos efeitos da adoção dessa forma de quesitação, que acaba por prejudicar a acusação e também a defesa, o que deixa evidenciada a conclusão: se gera tantos problemas, violando tantos princípios constitucionais, prejudicando acusação e defesa, por todos os lados, na verdade, representa uma afronta ao Júri, ao seu funcionamento, a sua estrutura.
Isso não pode ser aceito em um Estado Democrático em que o Tribunal do Júri está garantido no texto constitucional com sua estrutura básica formada em princípios que não podem ser modificados, sob pena de que se admita, agora, violação a norma constitucional, ligada a direitos fundamentais.
Retorna-se ao lúcido ensinamento de Angelo Ansanelli Junior, ao referir que "Impedindo que a defesa sustente o excesso culposo, estar-se-ia violando o princípio basilar da ampla defesa – ou melhor, da plenitude de defesa – uma vez que impossibilita o réu de utilizar todos os meios possíveis para refutar a imputação que contra si é formulada" (ob. cit., pág. 85).
Mauro Viveiros argumenta nesse mesmo sentido, analisando a afronta ao princípio da ampla defesa, no exemplo do excesso culposo na legítima defesa, em que o júri não tem como chegar a essa solução, alega a tese pelas partes ou não (quando o júri chegaria por sua própria vontade a essa tese).
E, frise-se, não cabe ao intérprete inventar uma forma de quesitar, pois a LEI buscou "simplificar", não havendo nenhuma brecha para querer formular quesitos não previstos na legislação. Isso, por sinal, ensejaria um verdadeiro caos jurídico no país em relação ao Júri, pois em cada Comarca do Brasil o Juiz-Presidente faria sua interpretação de como quesitar, tentando fazer o ajuste da situação concreta à legislação. Ora, por isso o sistema anterior de quesitação é o adequado, prevendo todas as possibilidades, de maneira que o júri – juiz natural – possa conhecer toda a causa.
Na realidade, a simplificação de algo que é naturalmente complexo, pois diz respeito à soberania do júri, a garantia de que a decisão votada é aquela que o júri efetivamente quis dar, custa um preço altíssimo, que atinge em cheio a instituição do Júri, ferindo normas constitucionais.
Há, portanto, também a violação do princípio da plenitude de defesa, fator que, por mais este argumento, importa na INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 11.689/08.
V. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (aplicação da idéia da Untermassverbot – proibição de proteção deficiente na situação do Tribunal do Júri e atuação do Ministério Público).
De plano, cabe ressaltar que deixar o Ministério Público sem recurso de mérito, em inúmeros casos em que haverá absolvição, além de ferir os princípios do contraditório e da igualdade, de modo expresso, relega a um segundo plano a tutela por parte do Estado dos bens jurídicos mais preciosos à sociedade, tais como a vida, da liberdade, matérias que são julgadas pelo Tribunal do Júri, constituindo clara ofensa ao princípio da proporcionalidade.
A doutrina moderna e atual, lançando luzes constitucionais ao Direito Penal e Processual Penal, o que é obrigatório hoje em dia para qualquer intérprete, sustenta que o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE deve ser lido dessa forma: PROIBIÇÃO DO EXCESSO E PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO INSUFICIENTE.
Nesse sentido, as lições de Lênio Luiz Streck:
(Revista Ajuris, n.º 97, pág. 180)."Se, de um lado, o Estado-legislador deve proteger o cidadão contra os excessos/arbítrios do direito penal e do processo penal (garantismo no sentido negativo, que pode ser representado pela aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso – Übermassverbot), esse mesmo Estado não deve pecar por eventual proteção deficiente (garantismo no sentido positivo representado pelo princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente – Untermassverbot), nos exatos termos em que fez o Tribunal Constitucional da Alemanha no acórdão BverfGE 88, 203)
O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões, vem acolhendo a dupla face do princípio da proporcionalidade, entendendo-o como proibição do excesso (übermassverbot) e proibição de proteção deficiente (untermassverbot).
Ficar o Ministério Público sem possibilidade apelação de mérito, em caso que se protege os bens jurídicos mais valiosos da sociedade, tais como vida, liberdade, além de ferir princípio fundamental expresso, qual seja, o princípio do contraditório, há evidente DESPROPORCIONALIDADE e, por decorrência disso, flagrante desproteção por parte do Estado em defender tão caros direitos fundamentais do cidadão.
No HC-90138/PR, sustentou o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski:
IV - Embargos não conhecidos. V - Conversão em agravo regimental negada por falta de previsão legal. Precedentes". (STF, HC-ED 90138/PR - PARANÁ Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI Julgamento: 27/02/2007 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 13-04-2007 PP-00101)."PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. PRISÃO PREVENTIVA. LIBERDADE PROVISÓRIA. ROUBO QUALIFICADO. QUADRILHA ARMADA. ORDEM PÚBLICA. MODUS OPERANDI DA AÇÃO CRIMINOSA. PRINCÍPIOS VERSUS GARANTIAS. DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. PROPORCIONALIDADE OBSERVADA. EMBARGOS NÃO CONHECIDOS. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL NEGADA. DESCABIMENTO. I - Manutenção da custódia preventiva fundamentada na garantia da ordem pública e, em especial, diante do modus operandi da ação criminosa. II - Necessidade da segregação demonstrada e que, no âmbito cognitivo do recurso apresentado, não se demonstra ilegal. III - Princípios garantidores contra o arbítrio coexistem com princípios de proteção penal eficiente.
Igualmente, em brilhante voto, no Recurso Extraordinário n.º 418-376-5/MS, o Ministro Gilmar Mendes reconhece a via dupla do princípio da proporcionalidade, aplicada há anos no Direito Alemão, ponderando com base nos argumentos dos notáveis doutrinadores de Direito Constitucional de nosso país, os gaúchos Lênio Luiz Streck e Ingo Wolfgang Sarlet:
"De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico.
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck:
"Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador’ (Streck, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97, março/2005, p.180).
"No mesmo sentido, o Professor Ingo Sarlet:
"A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, (...), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados". (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 107).
"E continua o Professor Ingo Sarlet:
"A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo)." (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 132)
Dessa forma, para além da costumeira compreensão do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (já fartamente explorada pela doutrina e jurisprudência pátrias), há uma outra faceta desse princípio, a qual abrange uma série de situações, dentre as quais é possível destacar a dos presentes autos".
Agora, imagine-se um processo de júri em que o réu, por uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos, proferida pelos jurados, reste absolvido. Uma decisão aberrante, totalmente dissociada da realidade do processo. É razoável que o Estado não possa recorrer? Há proporcionalidade nisso, quando em jogo bens jurídicos tão preciosos? É razoável que a vida seja relegada a segundo plano? Que a sociedade tenha que aceitar a única decisão (soberania "absoluta"??) mesmo que errada e injusta? O Ministério Público não tem recurso de mérito, apenas a defesa? Como diz Mauro Viveiros, estamos perante uma total "liberalidade irracional à defesa", em situação de indiscutível desproporção, algo realmente irracional e injusto.
Voltando-se às palavras de Antônio Scarance Fernandes: o Ministério Público defende a sociedade e, também, o indivíduo. Tanto que há décadas deixou de ser mero acusador sistemático, mas, sim, órgão que promove justiça.
Com essa forma débil de quesitação instituída pela nova lei, a proteção do Estado relacionada ao bem supremo, vida humana, ficará totalmente deficiente, o que constitui, em um Estado Democrático de Direito, uma evidente INCONSTITUCIONALIDADE. Todos os direitos para a defesa, que poderá alegar tudo, recorrer de tudo; nada para o Ministério Público, que, embora tenha o dever de fazer uma acusação certa e provada nos autos, ficará sem recurso com a simples alegação da defesa de mais de uma tese absolutória.
De outro lado, arranhada e ferida a instituição do Júri em sua estrutura básica, mas que constitui princípio fundamental na Carta Magna, ficará impossibilitada, inúmeras vezes, de ditar a justiça no caso concreto, havendo clara proteção insuficiente por parte do Estado a direitos consagrados como fundamentais.
Repita-se: a lei ordinária deve estar em consonância com a Constituição. Da mesma forma, a sua interpretação deve ocorrer em conformidade com a Constituição. No caso em tela, diante dos argumentos acima expostos, não resta outra conclusão, por qualquer interpretação que se queira fazer, que a Lei n.º 11.689/08, na parte em que reformou a quesitação do Júri, está eivada de cristalina e flagrante INCONSTITUCIONALIDADE.
Como bem lembra Antônio Scarance Fernandes, com argumento que possui plena aplicação ao que se sustenta, citando Ada Pellegrini Grinover: "O importante é ler as normas processuais à luz dos princípios e das regras constitucionais. É verificar a adequação das leis à letra e ao espírito da Constituição. Com isso, deixam as normas constitucionais do processo de serem vistas como, acentua Figueiredo Dias, ''simples princípios programáticos, meras diretrizes dirigidas ao legislador ordinário que este podia afeiçoar a sua vontade, suposto que fosse formada pelo processo constitucionalmente previsto. Hoje, tende por quase toda a parte a ver-se na Constituição verdadeiras normas jurídicas que proíbem a lei ordinária, sob pena de inconstitucionalidade material, que contenha uma regulamentação eliminadora do núcleo essencial daquele direito" (Ob. cit., pág. 21).
Essa é a questão: a nova lei do procedimento do júri, lei ordinária de processo penal, "contém regulamentação ELIMINADORA DE NÚCLEO ESSENCIAL" no que diz respeito ao Tribunal do Júri, adotando o sistema do "absolve ou condena" (guilty or not guilty), pela metade (pois sem a comunicabilidade dos jurados), vindo a atingir a soberania do júri e diversos outros princípios constitucionais fundamentais, seja do Júri, seja do Processo Penal brasileiro.
O sistema de quesitação adotado na Lei 11.689/08, previsto nos artigos 482, caput, e 483, III e § 2º, que entrará em vigor no dia 09 de agosto é, portanto, totalmente INCONSTITUCIONAL, ferindo de morte inúmeros princípios fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal.
Em face disso, entende-se que, com urgência, cabe o ajuizamento de AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, COM PEDIDO DE LIMINAR, para que não se crie verdadeiro caos nos processos de Júri, acarretando nulidades e mais nulidades, que serão argüidas em milhares de julgamentos, vindo a gerar a desproteção do bem jurídico vida e liberdade, soltura de réus, demora no andamento dos processos e, sobretudo, total descrédito da população no sistema judiciário brasileiro.