4. A formação da coisa julgada material frente às modalidades cognitivas: espécies de cognição aptas a formar coisa julgada material
O fenômeno da auctoritas rei iudicatae, frise-se inicialmente, está relacionado tão somente com o plano vertical de cognição, que diz respeito à profundidade do conhecimento atingida pelo magistrado no processo judicial 25 .
A possibilidade de formação da coisa julgada substancial, como já consignado, está diretamente ligada à cognição exauriente e, em decorrência, aos juízos de certeza, que permitem ao magistrado afirmar os motivos convergentes, que apontam para a existência ou inexistência dos fatos alegados, e afastar os motivos divergentes. Assim surge a certeza jurídica.
É possível sintetizar graficamente o processo de formação da coisa julgada material no processo civil. Para isso, utilizar-se-á gráfico semelhante ao que foi elaborado pelo maior jusfilósofo brasileiro para explicar o processo de nomogênese jurídica26. Dessa forma, ter-se-ia:
O que está graficamente representado significa que: a cognição que o magistrado exerce no processo (C.E., C.S. e C.Su.) incide sobre o objeto da cognição judicial (OCJ), ocasionando a formação de juízos pelo juiz (J.C., J.P. e J.V.) que, por sua vez, possibilitam ou não a formação da coisa julgada material (C.J.M. ou Ñ C.J.M.). De forma específica: a) a cognição superficial (C.Su. – ou rarefeita) incide sobre o objeto da cognição judicial (OCJ – sobre o que lhe é permitido conhecer nesse momento, obviamente), e possibilita a formação de juízos de verossimilhança pelo juiz (J.V. – ou de mera verossimilhança, para alguns, vide capítulo II, item 2.2), que não torna possível a formação da coisa julgada substancial (Ñ C.J.M.); b) a cognição sumária (C.S.) incide sobre o objeto da cognição judicial (OCJ) e possibilita ao julgador a formação de juízos de probabilidade (J.P. – ou de verossimilhança para alguns), que não são suficientes para propiciar o surgimento da autoridade da coisa julgada (Ñ C.J.M. – com a única exceção da regra do artigo 810 do Código de Processo Civil); c) por fim, a cognição exauriente (C.E.) incide sobre o objeto da cognição judicial (OCJ) e ocasiona a formação de juízos de certeza ao magistrado (J.C. – certeza jurídica, relembre-se), que são os únicos que realmente possibilitam a formação da coisa julgada material (C.J.M.).
É nesse ponto da pesquisa que se pode visualizar, de forma nítida, a íntima relação existente entre cognição judicial e a possibilidade de formação da coisa julgada material. Essas conclusões obtidas podem ser aplicadas, ainda, às espécies de cognição judicial elencadas por Kazuo Watanabe, quais sejam: cognição plena e exauriente; cognição parcial e exauriente; cognição plena e exauriente secundum eventum probationis; cognição eventual, plena ou limitada e exauriente; e cognição sumária (e superficial).
As cognições sumária e superficial (rarefeita) já foram analisadas com maior minúcia anteriormente27, pelo que basta relembrar aqui a impossibilidade de formação de coisa julgada material nessas espécies de cognição judicial28 (com a exceção do artigo 810 do Código de Processo Civil).
No que diz respeito à primeira espécie de cognição enumerada, pode-se afirmar que a solução definitiva da lide é buscada por meio de provimento jurisdicional que se assente em cognição plena e exauriente, ou seja, pleno quanto à extensão do debate das partes (e da cognição do magistrado) e completo quanto à profundidade dessa cognição. A decisão proferida com base nessa cognição propicia um juízo com um alto índice de segurança quanto à certeza (jurídica) do direito controvertido, de sorte que a ela o Estado confere a autoridade de coisa julgada. O processo ordinário é o maior exemplo dessa modalidade cognitiva29. Deve-se ressaltar, ainda, que a cognição judicial não deixa de ser plena e exauriente quando da ocorrência da revelia. Nesse sentido WAMBIER e MEDINA:
Nas ações de conhecimento, ocorrendo os efeitos da revelia (total ou parcial; cf. arts. 319 e 320 do CPC), e, assim também, nos casos em que não há impugnação especificados fatos que constituem a pretensão do autor (cf. art. 302 do CPC), não há, propriamente, cognição sumária, mas cognição plena e exauriente sobre objeto litigioso.
(...) tanto a cognição não é sumária que o juiz pode não ter como crível o fato, embora não contestado, e isso ele constará examinado-o (o que é nítida demonstração de que a cognição é exauriente). Assim, a cognição é plena e exauriente, nos limites daquilo que é oferecido pelas partes ao juiz, para que este conheça. A sentença aí proferida, deste modo, é acobertada pela coisa julgada.30
No procedimento de cognição parcial e exauriente, a investigação do juiz não aborda toda a realidade fática. A característica dessa modalidade cognitiva está na limitação no tocante à amplitude, mas ilimitação quanto à profundidade da cognição. Dessa forma, quanto às questões que podem ser conhecidas e resolvidas, a cognição é exauriente, que possibilita a formação da coisa julgada material31. Esse procedimento, simplificado e mais veloz, privilegia os valores certeza e celeridade, pois permite o surgimento de uma sentença com força de coisa julgada substancial em tempo inferior àquele que seria preciso para a análise de toda a extensão da situação litigiosa, em relação aos temas que tiverem sido objeto da cognição judicial. Pode ser citado como exemplo o processo de conversão da separação em divórcio, que limita a matéria que pode ser alegada em sede de contestação (artigo 36, parágrafo único, da Lei nº 6.515/1977).
Já no procedimento baseado em cognição plena e exauriente secundum eventum probationis, a decisão da questão posta em juízo está condicionada à profundidade da cognição que o magistrado conseguir chegar, eventualmente, com base nas provas produzidas pelas partes. Havendo prova bastante para a resolução do litígio, deve o magistrado decidi-lo, caso em que a cognição será exauriente, possibilitando a formação da coisa julgada material. Contudo, se o juiz concluir pela insuficiência de prova (quando se encontrar num estado de probabilidade ou credibilidade; vide capítulo II, item 2.2), a questão não é decidida e as partes são remetidas para as vias ordinárias, ou seja, o objeto litigioso é decidido sem caráter de definitividade, não atingindo, por isso, a auctoritas rei iudicatae 32. Assim, a cognição exauriente (e os juízos de certeza) e, conseqüentemente, a formação da coisa julgada substancial dependem da profundidade da cognição atingida pelo magistrado com base nas provas existentes nos autos. Neste caso, segundo maciça jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tem-se como exemplo o processo de mandado de segurança33.
Por último, no procedimento de cognição eventual, plena ou limitada e exauriente (secundum eventum defensionis), como o próprio nome indica, a cognição do magistrado é eventual e depende do comportamento do demandado. Caso haja manifestação do réu, com a efetivação do contraditório, a cognição judicial poderá ser plena ou limitada (que varia conforme a amplitude da matéria levada ao conhecimento do Estado-juiz), mas será sempre exauriente (pois não haverá limites para a cognição do juiz em termos de profundidade), o que possibilitará a formação da coisa julgada material. Caso não haja manifestação por parte do réu, restará suprimida toda uma fase jurisdicional (de conhecimento). Exemplo típico dessa modalidade cognitiva é o processo monitório (artigos 1102a, 1102b e 1102c do Código de Processo Civil), no qual “se inverte a iniciativa do contraditório, tornando-se necessária a cognição somente quando o demandado adotar a iniciativa do contraditório”34. Luiz Guilherme MARINONI salienta o caráter bifásico da ação monitória ao dizer que:
Afirma-se, em geral, que o procedimento monitório é de cognição sumária. No procedimento monitório, como é sabido, estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deve deferir, sem a ouvida do réu, a expedição de mandado de pagamento ou de entrega de coisa. Além disso, no procedimento monitório existe a fixação prévia de que o silêncio do réu converte o mandado em título executivo. (...)
O juiz emite o preceito liminar com base em cognição sumária. O ‘provimento sumario’, em caso de não apresentação de embargos adquire a qualidade de título executivo. O que importa, porém, é que ao réu é garantida a oportunidade para a devida reação. O procedimento, assim, pode ser bifásico, tendo uma primeira fase em que a cognição é sumária e a segunda – que é eventual – de cognição exauriente. Nota-se, porém, que o procedimento não pode ser definido como ‘procedimento de cognição sumária’ quando o réu não apresenta embargos. Basta que o procedimento garanta a realização do princípio do contraditório para que seja considerado ‘procedimento de cognição exauriente’. No procedimento monitório é oportunizada a ampla defesa, e isso é o suficiente para que não seja possível a sua inclusão na classe dos procedimentos de cognição sumária.35
Assim, somente nessa segunda fase é que se tem a cognição eventual, plena ou limitada e exauriente. É incontroverso o surgimento de coisa julgada material caso o demandado tome a iniciativa do contraditório, com a apresentação de embargos, pois nessa hipótese o magistrado conhecerá exaurientemente o objeto do processo (e os demais aspectos do objeto de sua cognição). Entretanto, uma tormentosa questão se põe nesse ponto: seria possível a formação de res judicata sobre o provimento que defere a expedição do mandado de pagamento ou de entrega de coisa quando o demandado não oferece embargos?
Há divergências a respeito. No entanto, em virtude da extensão e finalidade deste trabalho, será apresentada apenas a teoria dominante sobre o tema, com a qual se concorda. Tem predominado na doutrina o entendimento segundo o qual a decisão que defere a expedição de mandado no procedimento monitório (sentença liminar), no caso de não serem interpostos embargos, alcança a autoridade da coisa julgada substancial. Conforme explicação de Alexandre Freitas CÂMARA:
Não vai, aqui, qualquer incoerência. É certo que a sentença liminar é fundada em cognição sumária, e não menos certo que a coisa julgada material só se pode formar onde houver um juízo de certeza. Repita-se, porém, que não há na tese que aqui se sustenta qualquer incoerência. Isto porque, como se demonstrará, a certeza jurídica capaz de legitimar a formação da coisa julgada irá se formar depois da prolação da sentença liminar.
É inegável que o juiz, ao proferir a sentença liminar que determinar a expedição do mandado monitório, se baseia, tão-somente, em um juízo de probabilidade da existência do direito substancial afirmado pelo demandante. Ocorre, porém, que a certeza jurídica capaz de legitimar a formação da coisa julgada não precisa estar presente no momento em que a decisão é proferida, mas sim no instante em que o pronunciamento judicial se torna imune a impugnações. Assim sendo, a certeza jurídica surgirá aqui da combinação da probabilidade de existência do direito, aferida pelo magistrado, com o silêncio do demandado, que permaneceu contumaz, deixando de oferecer embargos ao mandado. É, pois, o silêncio do demandado, combinado com a atividade probatória do demandante, que constitui a base lógica e jurídica da declaração de certeza obtida através do procedimento monitório. Essa afirmação decorre de aplicação do princípio dispositivo, que está na origem de uma idéia fundamental: a de que a alegação de um fato pelo demandante, somada a contumácia do demandado, faz surgir uma presunção de que tal alegação é verdadeira.
Do exposto se extrai que a formação da coisa julgada material no procedimento monitório tem por base o mesmo raciocínio que permite afirmar a formação daquela situação jurídica no procedimento comum em que ocorre a revelia. Neste último caso, as alegações do demandante, somadas ao silêncio do demandado, geram uma presunção que é capaz de formar certeza jurídica quanto à existência do direito substancial, certeza essa que, tornada imutável, dá azo à coisa julgada material. O mesmo se dará, mutatis mutandis, com o procedimento monitório.36
Há, pois, a formação da res judicata no procedimento monitório, tenha havido ou não a interposição de embargos ao mandado.
De uma forma geral, pelo exposto, pode-se afirmar que a formação da coisa julgada material nessas espécies de procedimentos depende, assim como em qualquer outro procedimento, tão somente da cognição exauriente.
5. Considerações finais
A cognição judicial, como técnica processual, é importante ferramenta em prol da instrumentalidade do processo, pois por meio dela é possível adequar precisamente o processo ao direito material tutelado, permitindo, assim, a criação de diversos tipos de procedimentos diferentes, de acordo com o direito substancial visado. Além disso, e aqui se encontra o objeto desse texto, a cognição judicial, em seu plano vertical37 (cognição exauriente, sumária e superficial38), influencia decisivamente na possibilidade de surgimento ou não da coisa julgada material.
Pode-se aferir, com base nos estudos realizados, que a única modalidade de cognição capaz de propiciar o surgimento da auctoritas rei iudicatae no processo civil é a cognição exauriente. Isso se dá porque tal modalidade cognitiva é baseada em juízos de certeza (jurídica), que propicia o maior índice de probabilidade possível (afirmando os motivos convergentes e afastando os divergentes), ou seja, permite que o magistrado chegue o mais perto possível da tão almejada e utópica verdade (que pode ser considerada como a adequação ontológica entre realidade factual e a imagem do objeto apreendida pelo ser cognoscente).
Dessa forma, todos os processos baseados em cognição exauriente, independentemente da extensão do conflito posto em juízo e desde que deságüem numa sentença (lato sensu) de mérito, possibilitam o surgimento da coisa julgada material, que envolve o conteúdo da sentença com o manto da imutabilidade. Ao impedir a procrastinação dos conflitos de interesses, a coisa julgada material, que se forma a partir de decisão baseada em cognição exauriente (esta, por sua vez, fundada em juízos de certeza), gera segurança jurídica para a sociedade como um todo.
É certo que todos os jurisdicionados têm direito a uma cognição judicial adequada à natureza do litígio levado à apreciação do Estado. O direito à cognição adequada à natureza do litígio faz parte, ao lado dos princípios processuais do contraditório, da economia processual, da publicidade e de outros corolários, do conceito de “devido processo legal”, assegurado pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Se é verdade que toda pessoa tem direito à cognição judicial adequada, não é menos verdade que a coisa julgada substancial somente pode surgir em determinadas espécies de cognição judicial, quais sejam: cognição plena e exauriente; cognição parcial e exauriente; cognição plena e exauriente secundum eventum probationis; cognição eventual, plena ou limitada e exauriente (segundo a classificação dada por Kazuo Watanabe). Como é notório, todas essas espécies de cognição possuem uma mesma característica em relação à atividade cognitiva exercida pelo magistrado: todas elas são ilimitadas no plano vertical de cognição, em outras palavras, todas possuem por base a cognição exauriente.
A cognição exauriente, que é a mais profunda e completa cognição no plano vertical de conhecimento, busca a solução definitiva do conflito de interesses levado à apreciação do magistrado. Por meio dessa forma de cognição o juiz procura atingir, tanto quanto possível, a verdade sobre os fatos, para que ao fim do procedimento esteja apto a proferir uma decisão justa, pela subsunção dos dados fáticos colhidos no decorrer do processo à norma jurídica hipotética que rege a situação (sinteticamente falando, pois se sabe que inúmeros outros fatores condicionam a decisão judicial). Essa modalidade de cognição, indubitavelmente, é a que proporciona o maior grau de convencimento no espírito do juiz.
Somente a cognição exauriente é capaz de permitir que o magistrado formule juízos de certeza sobre o litígio. Os juízos de certeza formulados pelo juiz são, na verdade, aqueles que lhe proporcionam um nível máximo de probabilidade no processo. Quando se afirma que a cognição exauriente possibilita a formação de juízos de certeza, está-se referindo não à certeza psicológica, mas sim a uma certeza jurídica, que advém dos elementos contidos nos autos. Assim, o magistrado é capaz de, com base em todas as provas que lhe foram trazidas, chegar a um ponto máximo de probabilidade sobre a existência ou não dos fatos. É com base nessa máxima probabilidade que o juiz afirma os motivos convergentes e afasta os divergentes no processo, atingindo, assim, a certeza jurídica, por meio da cognição exauriente.
Deve-se salientar, novamente, que não é objetivo concreto do juiz encontrar a verdade (absoluta) num processo. Isso porque todo o processo é baseado em veridicções das partes, ou seja, suas versões tendenciosas sobre o que seja a verdade. Entretanto, a impossibilidade de o juiz alcançar a essência da verdade dos fatos não lhe dá o direito de julgar sem a convicção da verdade (juridicamente falando, ou seja, a “verdade” obtida por meio de todos os dados e elementos presentes nos autos). O julgador, mesmo diante da impossibilidade de aquisição da verdade, deve sempre estar em busca desta, a fim de conseguir chegar, ao menos, o mais próximo possível dela.
Por ser a única espécie de cognição judicial que permite a prolação de sentença (lato sensu) baseada em juízos de certeza (jurídica), somente a cognição exauriente é que possibilita a formação da coisa julgada material, selo que confere imutabilidade ao conteúdo da sentença. É com fulcro nessa certeza jurídica obtida pelo juiz que se torna possível o surgimento da auctoritas rei iudicatae.
Conclui-se, portanto, que a formação da coisa julgada material depende da cognição exauriente e, conseqüentemente, dos juízos de certeza. É justamente essa modalidade cognitiva que permite a solução definitiva da controvérsia trazida ao crivo do Estado-Juiz e impede o surgimento de processo futuro idêntico (pressuposto processual negativo). Com o advento da res judicata (por meio da cognição exauriente) e com o fim do litígio obtem-se a tão protegida e almejada segurança jurídica, valor fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito.