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O alcance do conceito de ordem pública para fins de decretação de prisão preventiva

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Agenda 01/09/2008 às 00:00

6. EM DEFESA DA RESTRIÇÃO E ESPECIFICAÇÃO DO CONCEITO DE ORDEM PÚBLICA NO PROCESSO PENAL

Como já destacado, no processo criminal duas grandezas se encontram em lados opostos, de um lado o direito de liberdade do indivíduo, que não pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; de outro, o direito ou poder-dever de punir do Estado, que nasce das regras impostas pelo contrato social e visa proteger os bens jurídicos mais importantes da sociedade, fazendo-se aplicar a sanção jurídica a quem comete um fato definido como crime.

Neste diapasão, a medida mais drástica de privação do direito de liberdade do indivíduo é a prisão, que pode ser classificada em prisão-pena ou prisão processual, cautelar ou provisória. A primeira espécie não implica nenhuma contradição, haja vista que só tem respaldo após um devido processo legal, no qual se apurou a culpa do réu. No entanto, a segunda gera mais polêmica, tendo em vista que tem sua efetivação antes da sentença condenatória, e tem por escopo resguardar o bom andamento do processo ou do inquérito policial.

A prisão, medida constritiva de liberdade do indivíduo, seja ela penal ou processual, implica uma série de conseqüências danosas ao indivíduo, as quais influenciam sua vida familiar, profissional e, até mesmo, em sua saúde física e psicológica. Sendo assim, só pode ser imposta tal medida após a condenação advinda de um devido processo legal ou em casos excepcionais, antes da sentença condenatória transitada em julgado, nas hipóteses de prisão processual.

Apesar das conseqüências danosas da prisão para o indivíduo encarcerado, sua vedação absoluta seria impraticável no contexto atual, tendo em vista que é uma forma de sanção da qual as sociedades modernas parecem não estar preparadas para dela abdicar. A sua extinção causaria prejuízos de grande monta para a sociedade, de um modo geral, e para alguns indivíduos, em especial, como, por exemplo, aqueles que estão expostos diretamente à ação do agente, investigado ou acusado (testemunhas, vítimas, etc.).

No que tange à prisão provisória ou cautelar, esta pode ser dividida em: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão decorrente de pronúncia, prisão em virtude de sentença condenatória recorrível, e, por último, a prisão temporária.

Em razão da delimitação do objeto do presente estudo, será lançado um olhar mais específico sobre a prisão preventiva. Reconhece-se que esta deve preencher determinados pressupostos, quais sejam, deve estar comprovada a existência do delito e indícios de sua autoria. No entanto, para sua decretação, ainda é preciso o enquadramento de um dos fundamentos estabelecidos no art. 312 do CPP, quais sejam, a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, o asseguramento da aplicação da lei penal ou a conveniência da instrução criminal.

No tocante à decretação da medida cautelar, a discussão preponderante refere-se ao critério interpretativo a ser adotado. Da análise jurisprudencial efetuada ao longo deste trabalho, pode-se constatar a controvérsia existente entre os tribunais estaduais, os quais decretam a custódia preventiva sem a devida observância aos direitos fundamentais, e os tribunais superiores, que são mais criteriosos quando da decretação da referida medida.

Como já fora analisado, o clamor social, a periculosidade do delito e o resguardo da credibilidade da Justiça não são motivos idôneos para fundamentar o decreto de prisão preventiva para garantia da ordem pública. Conforme, aduz a recente jurisprudência do STJ:

PRISÃO PREVENTIVA. INDÍCIOS DE AUTORIA E PROVA DA MATERIALIDADE. GRAVIDADE DOS DELITOS. MAGNITUDE DA LESÃO. GRAVE PERTURBAÇÃO À ORDEM PÚBLICA. FORTE SENTIMENTO DE IMPUNIDADE E INSEGURANÇA. REPERCUSSÃO/ABALO SOCIAL. CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO NA INVESTIGAÇÃO. COAÇÃO DE TESTEMUNHAS. UTILIZAÇÃO DA INFLUÊNCIA DO PACIENTE PARA OBSTRUIR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL, OBSTAR A INSTRUÇÃO CRIMINAL, E PARA EMPREENDER FUGA COM FACILIDADE. CONDIÇÃO PESSOAL E FINANCEIRA DO PACIENTE. CONCLUSÕES VAGAS E ABSTRATAS. FALTA DE CORRESPONDÊNCIA COM DADOS CONCRETOS. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA NÃO DEMONSTRADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESTA EXTENSÃO, CONCEDIDA.

A existência de indícios de autoria e prova da materialidade, bem como o juízo valorativo sobre a gravidade genérica dos delitos imputados ao paciente, a magnitude da lesão, a grave perturbação à ordem pública, o que propiciaria forte sentimento de impunidade e de insegurança, a suposta repercussão/abalo social e a apontada necessidade de atribuir credibilidade às instituições do Estado, longe de caracterizarem a presença dos requisitos da segregação cautelar – garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou garantia da aplicação da lei penal – configuram motivação orientada à pronta resposta do Poder Judiciário à prática supostamente delitiva, antecipando o juízo condenatório. Elementos que devem permanecer alheios à avaliação dos pressupostos da custódia cautelar, até porque as afirmações a respeito da gravidade do delito trazem aspectos já subsumidos no próprio tipo penal, considerados pelo legislador ao cominar a pena em abstrato. A simples ocorrência de crimes é suficiente para intranqüilizar a sociedade, trazer sentimento de insegurança e abalo social, pois ninguém é indiferente aos eventos delituosos, sendo que a imposição da custódia por tal motivo tornaria obrigatória a segregação. A credibilidade das instituições, mormente do Poder Judiciário, a quem cabe conduzir a persecução penal, advém da rápida e eficaz prestação jurisdicional, e da suposta ocorrência criminosa de forma séria, imparcial, em observância às garantias legais e constitucionais dos indivíduos envolvidos. A imposição da medida constritiva não pode estar baseada em ilações, probabilidades, conjecturas e elucubrações a respeito do que o acusado poderá vir a fazer, caso permaneça solto, sejam elas depreendidas de sua condição profissional ou financeira. Os argumentos aparecem sem nenhuma correspondência a dados concretos, efetivamente existentes, hábeis a configurar a imprescindibilidade da segregação para garantia da aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal e, por isso, não se prestam a respaldar a custódia. Precedentes do STJ e do STF. Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como o decreto prisional prolatado na ação penal instaurada para apurar a suposta prática do crime de formação de quadrilha, para revogar a prisão preventiva imposta ao paciente, determinando-se a expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de que seja decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta. Ordem parcialmente conhecida e, nesta extensão, concedida, nos termos do voto do Relator. (STJ, HC 64949/SP, 5ª T., Min. Gilson Dipp, j. 20/11/2006).

Isto porque não se pode determinar a custódia de um indivíduo, ainda tomado por inocente, já que não houve trânsito em julgado da sentença condenatória, com base nestes argumentos, visto que o primeiro, qual seja, o clamor social, é a conseqüência freqüente do cometimento de qualquer tipo de delito, que consiste em uma quebra de conduta geral, que causa repercussão social negativa; o segundo, a gravidade do delito, é causa acessória da conduta praticada pelo indivíduo, haja vista que o direito penal tutela os bens jurídicos eleitos como mais importantes para uma sociedade e praticar um crime e atingir esses bens jurídicos, sempre implicará em uma conduta grave; o terceiro, resguardo da credibilidade da Justiça, é uma das conseqüências do crime para o leigo, que confunde vê na prisão, mesmo que de forma preventiva, uma solução imediata, rápida e justa para o crime. Ademais, é entendimento pacífico nos Tribunais Superiores do país a impossibilidade destes motivos ensejarem o decreto de prisão preventiva, conforme arestos já apresentados.

Entretanto, a doutrina e jurisprudência pátrias apontam a decretação de prisão preventiva em função da periculosidade do agente como necessária à preservação da ordem pública. Como afirma o doutrinador Júlio Fabbrini Mirabete (2003, P. 386), esta medida visa:

evitar que o delinqüente pratique novos crimes contra a vítima e seus familiares ou qualquer outra pessoa, quer porque é acentuadamente propenso às práticas delituosas, que porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida.

Sendo esta também a posição do autor Paulo Rangel (2005, p. 616), que aduz que "se o indiciado ou o acusado em liberdade continuar a praticar ilícitos penais, haverá perturbação da ordem pública".

Sendo esta também a opinião dos Tribunais Superiores do país, conforme se pode observar de jurisprudência do STJ trazida à colação. Neste aresto, especificamente, o caso é ainda mais grave, pois a custódia foi decretada com base no modus operandi quando do cometimento do delito, ignorando-se completamente a primariedade e os bons antecedentes do réu:

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HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. EXCESSO DE PRAZO. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. INSTRUÇÃO ENCERRADA. SÚMULA 21/STJ. PRISÃO PREVENTIVA. DECRETO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. PERICULOSIDADE DO AGENTE AFERIDA A PARTIR DO MODUS OPERANDI. TENTATIVA DE FUGA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. APLICAÇÃO DA LEI PENAL. ORDEM DENEGADA.

[...] A decretação da prisão preventiva, medida cautelar de constrição à liberdade do réu ou acusado, deve, de fato, redobrar-se de prudência, tendo em vista sua função meramente instrumental, uma vez que visa garantir a eficácia de um futuro provimento jurisdicional condenatório; destarte, em obediência ao princípio da não-culpabilidade, a medida extrema deve fundar-se em razões objetivas e concretas, que indiquem sua correspondência com as hipóteses legais do art. 312 do CPP. [...] No entanto, in casu, o reconhecimento da materialidade do delito e da presença de indícios suficientes de autoria, aliados a periculosidade do réu, aferida através do modus operandi em que o ilícito se deu, de forma cruel e violenta (homicídio qualificado pela impossibilidade de defesa da vítima, morta a facadas dentro de sua própria casa), conjuntamente com o fato do paciente ter tentado evadir-se do distrito da culpa, constituem motivação idônea, que torna imperiosa a manutenção da segregação provisória, como forma de se resguardar a ordem pública, e assegurar a futura aplicação da lei penal. Precedentes. [...] As condições subjetivas favoráveis do paciente, por si sós, não obstam a segregação cautelar, quando preenchidos seus pressupostos legais, segundo reiterativa orientação jurisprudencial. (STJ, HC nº 76768/RS, 5ª T., Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 17/12/2007).

Com relação à interpretação da periculosidade do agente como argumento para a decretação de prisão preventiva para garantir a ordem pública, considera-se que a periculosidade pode ser aferida quando o agente praticar novo delito ou se puder vir a cometer novo crime, sendo esta interpretação a mais aceita no país, não só pelos tribunais estaduais, mas também pelos superiores. Na primeira hipótese, a segregação do agente é plausível, haja vista que ele efetivamente cometeu um delito no curso do processo, ensejando o afastamento do princípio do estado de inocência (RANGEL, 2005, p. 616). A segunda hipótese, entretanto, se afigura atentatória aos princípios estatuídos na Constituição Federal, pois parte de uma presunção de que o agente voltará a delinquir. Neste diapasão, vale salientar a distinção elementar na dogmática penal entre direito penal de culpabilidade (de ato) e direito penal de periculosidade (de autor):

No primeiro caso, o agente pode ser responsabilizado porque determinada conduta sua, isto é, o ato por ele praticado, é reprovável. No segundo caso, diferentemente, o agente de determinado ato é punido não em razão da reprovabilidade do ato em específico, mas sim porque sua conduta anterior, ou seja, seu modo de vida, demonstra sua periculosidade. (ALMEIDA, 2003, p. 81).

Como é possível inferir do ensinamento acima mencionado, o direito penal brasileiro é direito penal de ato. Assim, não se admite qualquer tipo de determinismos nas ações, que são sempre livres, fundadas na vontade do indivíduo. Ao passo que, no direito penal do autor, o homem é um ser determinado que age por causas determinadas e não goza de possibilidade de escolha. Desta forma, conclui-se que, se o ordenamento jurídico brasileiro se pauta pela culpabilidade do ato quando da imposição da pena, não pode a prisão cautelar, em sede de cognição sumária, optar pelo parâmetro da periculosidade:

Nosso direito penal de ato, baseado inteiramente na culpabilidade da vontade livre dos indivíduos, jamais se compatibilizaria com um direito processual penal fundado, no que se refere à prisão cautelar, na periculosidade, pois seria contraditório afirmar que alguém só pode ser considerado culpado em razão de ato seu livremente praticado e, ao mesmo tempo, defender a possibilidade de prisão preventiva em razão da periculosidade. Se a periculosidade não pode implicar, ela própria, privação de liberdade ou qualquer outra pena nem depois da condenação (prisão-pena), evidentemente que não pode implicar prisão cautelar. (ALMEIDA, 2003, p. 82)

Diante do exposto, pode-se verificar que a periculosidade do agente também é incompatível com a prisão cautelar em caso de suposição de prática de possíveis futuros crimes, além de ir de encontro ao princípio constitucional do estado de inocência, apesar de a imensa maioria dos tribunais presumirem a periculosidade do réu através de seus antecedentes criminais e decretarem sua prisão cautelar com base na defesa da ordem pública. A única hipótese aceitável é a que envolve a decretação da prisão se o agente efetivamente praticar novos crimes no curso do processo, pois, neste caso, a presunção de inocência deverá ser afastada para a defesa da sociedade, sendo este um motivo razoável e justificável para ser relativizada, in concreto, a inocência do réu.

Ressalte-se que, mesmo na hipótese de ser decretada a prisão cautelar em virtude do cometimento de novo delito, esta só pode ser adotada quando for a medida mais adequada dentre todas as possíveis, devendo ser observado o princípio da razoabilidade quando da decretação da dita custódia, haja vista que deve se fazer a contraposição entre valor liberdade individual e o direito de punir do Estado, se é razoável a privação da liberdade do indivíduo em nome do ius puniendi estatal.

A garantia da ordem pública como fundamento da decretação da prisão preventiva, em que pese ter um conceito indeterminado e genérico, deve ser interpretada restritivamente à luz dos preceitos fundamentais inseridos na Constituição Federal, a fim de que o indivíduo não sofra qualquer tipo de constrangimento ilegal. Portanto, torna-se imperativo a limitação do conceito de ordem pública, especificamente no processo penal, a fim de evitar uma insuportável insegurança jurídica.

A garantia da ordem pública é uma cláusula aberta, de conteúdo significante abrangente e, dessa forma, deve ter seu alcance limitado através de técnica hermenêutica de interpretação restritiva, sendo esta a lição de Ferraz Júnior (2003, p. 296):

Uma interpretação restritiva ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, não obstante a amplitude de sua expressão literal. Em geral, o intérprete vale-se de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação especificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses, ao invés de protegê-los. Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga das normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. No primeiro caso, o telos protegido é postulado como de tal importância para a ordem jurídica em sua totalidade que, se limitado por lei, esta deve conter, em seu espírito (mens legis), antes o objetivo que a constituição agasalha. No segundo, argumenta-se que uma exceção é, pó si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais. Ir além é contrariar sua natureza.

A expressão "garantia da ordem pública" contém vaguidade denotativa (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 296), a conceituação dela não está em nenhuma lei ou manual de direito, o que se tenta fazer com esta expressão é interpretá-la, sendo necessário delimitar as suas hipóteses a fim de que não ocorra ilegalidade quando da constrição da liberdade do indivíduo preso cautelarmente. Já fora analisado que o clamor social, o descrédito da Justiça e a gravidade do delito não ensejam a decretação de tal custódia, bem como a periculosidade presumida do agente. Resta delimitar os casos em que a prisão preventiva como garantia da ordem pública poderá ser decretada.

O fundamento da ordem pública para decretação da prisão preventiva deve ser cabalmente demonstrado com fatos concretos caracterizadores da real necessidade no tolhimento da liberdade do indivíduo, sendo, portanto, inadmissível a sua custódia com base em meras conjecturas, probabilidades e vagas suposições, a fim de não se configurar transgressão ao preceito fundamental de liberdade física e nem do estado de inocência. Conforme já mencionado, a medida excepcional de prisão cautelar não é ilegal, decorrendo, inclusive, de regra constitucional, mas o decreto que a autoriza deve estar bem fundamentado, além de estar baseado em fatos concretos.

Ademais, já fora analisada a ausência de cautelaridade nesta forma de prisão. Não sendo a garantia da ordem pública uma razão de cautela propriamente dita, a mesma deve ser decretada somente quando houver fundamento de natureza realmente cautelar, que demonstre risco à efetividade do processo, sendo possível enquadrar nesse fundamento somente circunstâncias que exijam provimento da natureza cautelar, como, por exemplo, a necessidade de evitar que o investigado pratique novos crimes que violem a incolumidade física de outras pessoas, principalmente daquelas que podem colaborar para o processo ou para as investigações, tais como a própria vítima do delito ou as testemunhas.

Há quem vá mais longe, como, por exemplo, os autores Gabriel Bertin de Almeida e Borges da Rosa (apud ALMEIDA, 2003, p. 84), que defendem que a garantia da ordem pública (bem como a da ordem econômica) deve ser ignorada, apesar de prevista em lei, por ser causa acessória de toda prisão processual:

Em suma, o conceito de "ordem pública", cuja garantia é uma das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, prevista em lei, é, na verdade, um conceito vazio e ambíguo (assim como o de "ordem econômica), que deve ser ignorado, pois dá grande margem à insegurança jurídica, como pudemos observar. Borges da Rosa já assinalou que a "expressão ‘como garantia da ordem pública’, constante deste artigo (art. 312), não tem significado especial; é meramente explicativa e poderia muito bem ter sido omitida, visto como toda prisão decretada em processo penal se destina a assegurar a ordem pública (...)". Portanto, cabe a prisão preventiva somente para a conveniência da instrução criminal e para assegurar-se a aplicação da lei penal, casos em que, além do caráter estritamente instrumental, não há negação de princípios penais intransponíveis.

Afirmam estes autores que a prisão cautelar baseada na ordem pública poderia realmente ter sido omitida, pois constitui causa acessória de toda e qualquer prisão provisória. Do jeito que está concebida não tem qualquer característica cautelar, não assegura o resultado final do processo, constitui apenas medida de segurança, que visa simplesmente retirar do convívio social aquele que seria o suposto autor de um delito, seja para dar credibilidade à morosa Justiça brasileira, seja para acalmar a população, seja porque o crime foi brutal (ALMEIDA, 2003, p. 84).

Assim, pode-se concluir que a única hipótese de interpretação que não esbarra frontalmente nos preceitos fundamentais garantidos na CF é aquela que permite a prisão preventiva para garantia da ordem pública de réu que efetivamente comete novo crime, pois aí resta demonstrado o prejuízo que tal indivíduo traz à sociedade, pela posterior reiteração da conduta delituosa. Registre-se, contudo, que o magistrado deve analisar os aspectos relacionados à gravidade do delito, as circunstâncias, etc.

Convém ressaltar, ainda, que a custódia preventiva somente poderá ser decretada quando tiver caráter cautelar, devendo estar embasada em fatos concretos, bem como deverão ser feitas algumas ponderações no tocante aos interesses liberdade e punição, devendo ser observados os princípio da razoabilidade, do estado de inocência e do devido processo legal, quando da decretação da mesma.

Um acórdão do STF que bem sintetiza o espírito da correta interpretação acerca da prisão preventiva com garantia da ordem pública foi proferido no HC nº 79200, ao concluir que:

A falta da demonstração em concreto do periculum libertatis do acusado, nem a gravidade abstrata do crime imputado, ainda que qualificado de hediondo, nem a reprovabilidade do fato, nem o conseqüente clamor público constituem motivos idôneos à prisão preventiva: traduzem sim, mal disfarçada nostalgia da extinta prisão preventiva obrigatória. (STF, RHC nº 79200, 1º Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 22/06/1999).

Ocorre que é impossível apresentar um conceito certo e determinado de garantia da ordem pública, mas há parâmetros que devem ser seguidos quando da interpretação desta cláusula aberta, como: averiguação de nexo entre o caso concreto e a real necessidade da medida, demonstração do periculum libertatis do agente e da cautelaridade da medida. Há também interpretações que devem ser excluídas porque são equivocadas e incompatíveis com a medida, quais sejam: a alegação de clamor social decorrente da prática do crime; o argumento de gravidade do delito; a tentativa de resguardar a credibilidade do Poder Judiciário frente à população, e, por último, a alegação de que o agente poderá cometer outros delitos no futuro. Além destes parâmetros, convém lembrar que o decreto deve estar bem fundamentado, sob pena de nulidade.

Assim, deve-se concluir, também, que a garantia da ordem pública somente se afigura como sustentáculo idôneo para a decretação da custódia preventiva se, além de respeitar os direitos e garantias individuais daquele que se encontra sujeita à medida constritiva, configurar-se proporcional e coerente com a cautelaridade que marca as prisões processuais.

Neste diapasão, convém demonstrar alguns dados estatísticos apresentados por Ruy Walmsley em um relatório sobre a situação prisional dos países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU), na X Sessão da Comissão para a Prevenção do Crime e a Justiça Penal da ONU, em 10 de maio de 2001, neste relatório ele demonstrou como o encarceramento é cada vez mais crescente em todo o mundo, atestando a explosão carcerária na década de 90, mostrando também as desvantagens da pena privativa de liberdade. No âmbito dos países da América Latina, coube a Elias Carranza, que dirige o Instituto Latino-Americano da ONU para a Prevenção do Crime e Tratamento do Criminoso, fazer um relatório comparativo, comparando o resultado do relatório geral com os dos países latino-americanos, deste relatório extraiu-se que o Brasil é um dos países de maior taxa de crescimento penitenciário: de 1992 a 1999 esse crescimento foi de 70% (setenta por cento), de 1990 a 2002 o aumento foi de mais ou menos 160% (cento e sessenta por cento); que o Brasil apresenta um dos maiores índices de presos cautelares dos países investigados: cerca de 36% (trinta e seis por cento) do total; e, por último, a mais óbvia das estatísticas, a situação carcerária é de indescritível horror (BIANCHINI & GOMES, 2002, p. 154-155).

O elevado número de presos cautelares e seu contínuo incremento revelado nessa estatística não podem prosperar, tendo em vista que, como dito anteriormente, a prisão cautelar é medida excepcional e uma porcentagem de 36% (trinta e seis por cento) de presos preventivos é muito alta para uma medida de caráter excepcional.

Sendo assim, por ser considerada medida excepcional, a prisão preventiva não pode ser decretada de qualquer forma, sem fundamento adequado, apenas para levar à população um pretenso sentimento de que a Justiça está cumprindo seu dever. A decretação da prisão preventiva deve ocorrer para cumprir seu escopo legal, qual seja, acautelar o processo, a idéia de usar a prisão preventiva como meio de acautelar o meio social é equivocada. Infelizmente, é esse o papel que esse tipo de prisão vem assumindo nos dias atuais.

Apesar de imprecisa a expressão garantia da ordem pública, a decretação da prisão preventiva com base neste fundamento não padece de vício qualquer se for levado em consideração seu caráter cautelar e excepcional, mantendo-se restrita ao fundamento invocado e seus pressupostos legais, e, ainda, atenta ao princípio do devido processo legal, da presunção de inocência e da razoabilidade, exigindo-se, ainda, a correta fundamentação, baseada em fatos concretos e demonstrada a necessidade da medida excepcional. Sendo assim, estes são os fatores que devem ser levados em consideração para uma correta decretação de prisão preventiva.

Sobre a autora
Luciana Leonardo Ribeiro Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e Advogada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciana Leonardo Ribeiro. O alcance do conceito de ordem pública para fins de decretação de prisão preventiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1888, 1 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11669. Acesso em: 5 nov. 2024.

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