INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo discutir temas ligados ao direito de exercício de defesa e àqueles inerentes às modificações legislativas no que diz respeito à necessidade da presença de advogados na fase inquisitorial, para acompanhamento da lavratura de atos procedimentais, principalmente em relação àqueles relativos ao interrogatório e ao indiciamento, postas as graves conseqüências de tal análise para a proteção de direitos e garantias individuais dos considerados como suspeitos a partir das investigações.
Ainda, pretende-se expor argumentos que trazem informações, também, sobre a necessidade da participação mais efetiva das defensorias públicas na preservação de direitos e garantias individuais, constantemente postos à prova durante os procedimentos acima mencionados.
Mister afirmar, em sede introdutória, que o tema "investigação preliminar" nunca foi abordado com a devida abrangência pela doutrina brasileira, sendo que, para muitos, o inquérito policial é ainda "mera peça informativa", muitas vezes dispensável.
A realidade já não é esta, posto que, em alguns casos, não se trata mais de resolução de casos simples, haja vista a apresentação de relatórios detalhados, em investigações mais profundas, com filmagens, laudos periciais e demais provas ditas "irrepetíveis", e, o mais importante, com pleno acompanhamento de membros do Parquet desde o início, ainda mais em se tratando daquelas atinentes aos casos mais complexos e que merecem, portanto, maior atenção por parte das Autoridades Policiais e dos membros do Ministério Público.
Insta acrescentar que, embora seja dispensável, é no conjunto de elementos de prova angariados durante o inquérito que 90 % (noventa por cento) das condenações têm seu arcabouço, ou seja, na grande maioria das vezes não são produzidas muitas provas durante a instrução do processo. Isso somente vem a reforçar a necessidade de maior preocupação com o que se faz e com o que é produzido na fase pré-processual.
Deve ser observado que o procedimento traz formas a serem obedecidas, embora as nulidades ocorridas na fase inquisitorial não contaminem o eventual processo. As citadas formas são previstas em instruções normativas, em portarias e em ordens de serviço, o que deve ser colocado no encadernado em consonância com o que diz a legislação federal sobre o tema. As formas, como será exposto, são a garantia de desenvolvimento da investigação para os sujeitos envolvidos nela.
No entanto, embora relegada a segundo plano, é nesta fase que são colhidos elementos de prova que, se corroborados com os que forem analisados durante a instrução judicial, podem resultar em condenações, o que também serve para que investigados deixem de sê-lo a partir do desenvolvimento das diligências. Nesta esteira, e somente como exemplo, citem-se os reconhecimentos, a confissão, as reconstituições de crimes etc. Além disso, em tal fase podem vir a ser decretadas medidas que atingem diretamente bens indispensáveis dos investigados e que acarretam danos praticamente irreparáveis ao patrimônio, à imagem e à liberdade daqueles.
Desta forma, é forçoso dizer que, pelos resultados que podem ser alcançados por tais atos e seus efeitos na fase judicial, faz-se necessário observar a obrigatória presença de defensores, visto que, embora não seja possível a intervenção pela ausência de contraditório, com a oposição de teses em paridade de "armas", tal medida denotará a possibilidade de acompanhamento do feito no que diz respeito à legalidade, à obediência aos procedimentos previstos e possibilitará verdadeira viabilidade do exercício de defesa.
No que diz respeito à alegada ausência de contraditório, necessária a reprodução do que foi consignado por AURY LOPES JÚNIOR1 em obra sobre o assunto quando disse que:
É importante destacar que quando falamos em "contraditório" na fase pré-processual estamos fazendo alusão ao seu primeiro momento, da informação. Isto porque, em sentido estrito, não pode existir contraditório no inquérito porque não existe uma relação jurídico-processual, não está presente a estrutura dialética que caracteriza o processo. Não havendo o exercício de uma pretensão acusatória, não pode existir a resistência. Sem embargo, esse direito à informação – importante faceta do contraditório – adquire relevância na medida em que será através dele que será exercida a defesa.
Neste trabalho, sem pretensão de esgotamento do tema, serão analisados quesitos sobre a fase policial, pré-processual, com comentários sobre liturgia empregada na coleta de declarações, de depoimentos e, obviamente, sobre o interrogatório policial, com ênfase na necessidade da presença de advogados para acompanhamento dos atos que envolvem este último modo de coleta de elementos de prova e primeira oportunidade de defesa do possível réu, com especial atenção para as inovações legislativas, tais como a Lei nº 10.792/2003 e a Lei nº 11.449/2007.
A primeira trata das modificações introduzidas no bojo do interrogatório judicial, o que leva a crer que tais mudanças, no que couberem, também devem ser introduzidas e aplicadas no interrogatório policial. Dentre elas, a necessidade da presença de advogado para acompanhamento do ato, o qual terá oportunidade de entrevista reservada com seu cliente ou assessorado, sob pena de nulidade, inclusive com possibilidade de realização de perguntas ao indiciado e consignação de pedidos de diligências.
A segunda, publicada ainda no corrente ano, obriga o envio de cópia das peças que compõem o auto de prisão em flagrante ao órgão da Defensoria Pública, isto em sede de procedimentos em que os indiciados não informem os dados de seu advogado para tal ato. Sem sombra de dúvidas, um grande avanço.
Todavia, mesmo com as inovações acima citadas, nada leva a crer que tais medidas venham suprir lacunas, já há muito presentes, na viabilidade de defesa na fase pré-processual, tornando inócua a lei para aqueles que não têm como contratar profissionais habilitados.
O método a ser usado no desenvolvimento deste trabalho será o dedutivo, com análise dos conceitos previstos na legislação, descrição de entendimentos jurisprudenciais e sua evolução, análise das inovações legislativas e de seus efeitos no contexto procedimental e, ao final, exposição dos principais problemas ainda enfrentados, com propostas de solução em sede de conhecimentos demonstrados durante a elaboração do texto.
O trabalho está dividido de forma a inserir o leitor no contexto da investigação preliminar, passando-se à análise das subdivisões das oitivas dentro do inquérito policial e de suas principais diferenças. Daí, já no cerne de uma das discussões propostas no tema, analisa-se a necessidade da presença do defensor para acompanhamento de oitivandos, sejam eles testemunhas ou investigados, dentro da visão de proteção às garantias previstas pela Constituição Federal de 1988.
Após, serão analisadas as questões trazidas pela Lei nº 11.449/07, a qual determina a remessa à Defensoria Pública de cópias das oitivas e das principais peças do Auto de Prisão de Flagrante daqueles indiciados que não apresentarem condições de contratar profissionais para acompanhamento e assessoramento durante os atos, isto dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão.
Ao final, será elaborada conclusão sobre o trabalho, com ênfase na exposição dos problemas enfrentados, tudo com base na bibliografia pesquisada e que serviu de guia durante o desenvolvimento.
1. INQUÉRITO POLICIAL
Um dos primeiros atos a serem analisados tem a ver com o início do inquérito policial em decorrência de flagrante delito. Em tal situação, tendo em vista o exíguo prazo concedido pela lei para encerramento do procedimento, com a apresentação do relatório, mister considerar a necessidade de obediência às formas previstas para que sejam garantidos os requisitos que possibilitarão o desenvolvimento coerente das investigações.
Assim, não se pode comparar o trabalho investigativo desenvolvido no bojo do inquérito policial com a coleta de informações por detetives particulares, por exemplo, sendo que, frise-se novamente, há formas a serem rigidamente seguidas, o que também serve para amenizar o sentido da expressão mera peça informativa ou a própria inquisitoriedade do procedimento.
A previsão de lavratura de um procedimento administrativo que propicie ao investigado conhecer os termos da imputação, em um encadernado corretamente numerado e rubricado, com remessa cronologicamente previstas ao representante do Ministério Público e ao Juízo competentes, certamente oferece maiores garantias de que não serão executados atos que fundamentem a denúncia sem que o indiciado tenha acesso. Tal acesso abarca a ciência sobre os elementos que fundamentaram o indiciamento, o que também indica a liberação de pesquisa sobre as diligências efetuadas.
Assim, parte-se do princípio de que a forma é, antes de tudo, garantia. Este o principal quesito a ser observado no início de um inquérito policial, o que ocorre por meio de confecção de portaria ou por lavratura de auto de prisão em flagrante.
A confecção de portarias ocorre em casos em que há necessidade de coleta de maiores dados que levem ao esclarecimento da autoria e da materialidade do suposto delito cometido, o que é seguido na grande maioria dos casos, seja por meio de requisições enviadas pelo Ministério Público, sejam por determinações judiciais, seja por iniciativa da própria equipe policial ao perceber a possível ocorrência de crimes.
Todavia, é nos flagrantes que podem ocorrer a maioria das situações que colocam à prova os requisitos para o desenvolvimento de investigações condizentes com o que determina a legislação protetiva aos direitos e garantias fundamentais.
Sobre tal tema, segundo AMÁLIA GOMES ZAPPALA2, o primeiro controle da legalidade da prisão em flagrante cabe à Autoridade Policial ao decidir sobre a lavratura, ou não, do auto de prisão. Tal servidor será encarregado de verificar se estão presentes os pressupostos para arbitramento de fiança ou se, simplesmente, terá a obrigação de confeccionar termo circunstanciado de ocorrência em caso de crimes considerados de menor potencial ofensivo.
Tendo em vista que a prisão em flagrante configura-se na única espécie de restrição à liberdade que independe de autorização judicial, deve haver a imediata comunicação da prisão ao Poder Judiciário. Tal comunicação, conforme está determinado pela leitura do preceito constitucional, deverá ser efetivamente imediata, ou seja, antes mesmo do início dos procedimentos para a lavratura do auto de prisão em flagrante3.
Na análise da autora acima citada, a própria Carta Magna garante a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Ao final de tal linha de pensamento, conclui dizendo que "[...] a integralidade da garantia só se efetiva se a assistência jurídica compreender tanto a fase policial quanto a processual, possibilitando ao indiciado e ao acusado o exercício da defesa, dentro dos limites admitidos em alvos dos procedimentos"4.
Ao final, enfatiza que tal assistência gratuita encontra-se em débito com a preconizada abrangência, haja vista que "somente na fase processual, no momento do interrogatório judicial, o acusado "pobre" vem a conhecer o seu defensor, tem a possibilidade de expor os fatos, de obter esclarecimentos e o necessário acompanhamento da defesa técnica"5.
Observe-se que, na grande maioria das oportunidades, tal "conhecimento" restringe-se a simples troca de olhares durante a audiência, sem que seja realmente posta em prática a defesa em sua forma mais arcaica, haja vista que nem mesmo do nome do interrogado o "defensor" tem em mente para a indispensável formulação de argumentos.
De tal maneira, pode-se concluir que, desde a discussão entre interrogatório como meio de prova ou meio de defesa, atualmente já superada, e antes que se chegue a tal análise, é preciso que se garanta, ou melhor, que se dê cumprimento ao que está escrito na Carta Magna, propiciando-se assistência jurídica gratuita e integral aos indiciados em geral, o que também inclui os que são ouvidos na fase pré-processual.
Todavia, a realização de interrogatórios no inquérito policial não se dá, somente, em caso de prisão em flagrante, devendo ser observado que os indiciamentos ocorrem, também, através de cumprimentos de mandados de prisão temporárias, de prisão preventiva ou, até mesmo, em decorrência de intimação para comparecimento na delegacia, isto em procedimentos iniciados mediante a confecção de portarias, como já exposto.
Reunidos os indícios que levem a crer que o suspeito deve ter conhecimento de que será encarado, até a confecção do relatório, como autor de determinado crime, caberá à Autoridade Policial a realização do indiciamento, com toda a carga que tal procedimento carrega.
É o que revela AURY LOPES JÚNIOR6, quando diz não se pode ouvir o investigado continuamente como "informante" para, depois de todas as informações prestadas, indiciá-lo com base em tudo o que declarou. O indiciamento, para tal autor, acertadamente é também uma garantia, haja vista que visa a evitar uma acusação de surpresa ou o comparecimento perante a Autoridade Policial como testemunha quando, na verdade, figura como principal suspeito.
No entanto, em todas estas ocasiões, ou em todos estes atos, é necessária a presença de defensor, ou pelo menos, a oferta de tal escolha ao indiciado, para que tenha orientação em como proceder diante de tão impactante acontecimento dentro do procedimento preliminar. Caso prefira ser orientado e acompanhado pelo citado profissional, o ato de indiciamento deve ser adiado, isto em casos em que não se trate de lavratura de autos de prisão em flagrante, onde as possibilidades de adiamento são mais remotas7.
Este também é o entendimento de SAAD8, em obra específica sobre o tema aqui desenvolvido, quando diz que "no inquérito policial, esteja o acusado preso em flagrante delito ou não, a atuação do advogado é relevante para solicitar a produção de provas, em favor do suspeito ou indiciado, de modo a garantir, posteriormente, um juízo de acusação justo e equilibrado". No entanto, não há como montar tese sem que haja tempo suficiente para acesso às investigações.
Interessante que seja observado que a autora acima citada denomina o preso como "acusado", quando, na verdade, trata-se de investigado, posto que a acusação somente será deduzida em sede de denúncia. Aceita esta, passa-se à denominação de réu.
Ainda segundo SAAD9, "se o acusado é preso em flagrante, a imediata intervenção do advogado guarda especial importância no sentido de informá-lo sobre a natureza da infração que lhe é imputada, o direito ao silêncio, assegurar o direito à assistência de intérprete, e a presença física do advogado, durante o interrogatório, ajuda a atenuar a pressão que muitas vezes é exercida sobre o acusado, assegurando-lhe o respeito aos direitos".
De tal forma, pugna-se pelo oferecimento, por parte do Estado, de todos os meios necessários ao completo entendimento, por parte do oitivando, seja ele declarante, depoente ou interrogado, dos termos do procedimento a que está sendo submetido. Para tanto, urge tecer considerações sobre a necessidade de fortalecimento da Defensoria Pública, o que será abordado em tópico seguinte.
2. PROCEDIMENTOS
Ao tomar conhecimento de possível cometimento de infração penal, de acordo com a nítida interpretação do que diz a lei, a Autoridade Policial, sem discricionariedade, deve instaurar procedimento administrativo para apuração de elementos que conduzam à autoria e à materialidade do delito cometido, o que, ao final, após a elaboração de um relatório impessoal, será todo o conjunto remetido ao Juízo. Este, por sua vez, fará remessa deste encadernado ao representante do Ministério Público para que, sem ter tido contato com os fatos, formule, ou não, a chamada opinio delictti, a partir de sua condição de dominus litis. Esta a leitura tradicional dos enunciados que tratam sobre a matéria na legislação vigente.
Tal entendimento funciona, na prática, em situações mais simples; em casos de investigações mais complexas, com vários investigados, vínculos nacionais e internacionais etc., tal forma de condução do procedimento fatalmente tornará difícil a elaboração da denúncia.
Bom ser observado que, segundo LUIZ CARLOS BETANHO 10, "a instauração do inquérito por iniciativa do delegado de polícia constitui um dever jurídico quando se trata de crime de ação pública incondicionada".
Todavia, de acordo com o que prescreve a legislação em vigor, é preciso dividir os indícios a serem investigados em dois conjuntos simples: aqueles em que os fatos supostamente criminosos já foram cometidos (ex: já ocorreu o assalto ao banco "X", restando a coleta de indícios que induzam à identificação dos autores do roubo), e aqueles em que há possibilidade de antever, de acompanhar, por execução de diligências policiais, a execução do fato criminoso (dados coletados a partir dos indícios colhidos no referido assalto, com execução de diligências que permitam o acompanhamento da quadrilha responsável), o que determinará a autuação em flagrante, se for o caso, ou o cumprimento de mandados de busca e apreensão ou de prisões cautelares.
Partindo-se desta divisão, observa-se que o modo de instauração de um inquérito policial depende, sempre, de como as informações sobre o fato delituoso chegaram ao conhecimento da equipe policial, sem considerar, neste contexto, as requisições ministeriais e as determinações judiciais para abertura de investigações sobre determinados fatos.
Neste mesmo contexto, observa-se que os meios tradicionais disponíveis para a coleta de informações sobre crimes são muito mais importantes em casos em que os delitos já ocorreram, onde o primeiro contato da equipe com o caso acontece depois do fato delituoso concretizado e onde certamente são imprescindíveis atos de investigação para entendimento do que aconteceu, o que possibilitará a construção de hipóteses.
Em sede de acompanhamento de grupos criminosos, a coleta de informações com o uso de cautelares (procedimentos de interceptação telefônicas, buscas e apreensões, devassas e acompanhamentos de movimentação bancária etc.) faz-se quase que independentemente do estudo do que foi dito pelos integrantes presos em flagrante ou por força de mandado, haja vista que as hipóteses a serem expostas no relatório têm base em análises de inteligência policial, com produção de conhecimento para uso nos inquéritos instaurados.
Neste contexto, o interesse pela realização de oitivas durante a fase inquisitorial, considerando-se as inovações no campo da coleta de informações sobre as ações das quadrilhas, depende exatamente dos elementos de prova já disponíveis, do interesse da equipe policial em esclarecer fatos ou em apenas esperar que o indiciado confirme, ou não, o que já é de conhecimento dos investigadores.
Visualiza-se, portanto, que no primeiro caso, explícito o uso do interrogatório 11 como meio de prova, ou melhor, como meio de coleta de provas ante possíveis contradições, confissões e acareações. No segundo, a realização do interrogatório tem sede na oportunidade do indiciado em defender-se, de "colaborar" com a polícia, conseguindo, com isso, benefícios previstos em lei. As hipóteses sobre o caso já estão formuladas e pouco pode ser acrescentado durante as oitivas dos indiciados.
Por outro lado, importante que se tenha em mente que, em ambos os casos, a realização das oitivas é sempre necessária, haja vista que, em sede diversa da simples coleta de dados, mister tecer considerações sobre a real comunicação do teor da investigação, em momento oportuno ao próprio procedimento, diga-se de passagem, ao investigado e, ainda, em que condição está sendo ouvido: como testemunha, devidamente compromissada, como declarante, sem o compromisso, ou, em último caso, como indiciado, com todos os direitos e deveres decorrentes de tal condição.
Ainda, necessário se faz observar a situação em que a vítima é ouvida em procedimentos pré-processuais, posto que, em investigações sobre certos delitos, as informações transmitidas por tal "testemunha" pode vir a fundamentar o oferecimento e o recebimento da denúncia.