4. PRESENÇA DE ADVOGADO DURANTE O INTERROGATÓRIO. A LEI Nº 10.792/2003 E SEUS EFEITOS NA ESFERA POLICIAL.
Durante o inquérito policial não há que se falar em contraditório, pois se trata de procedimento inquisitivo em que o conduzido não figura como parte; no inquérito policial não há partes, mas somente sujeitos. Somente depois da acusação é que surge a figura do acusado, ou seja, somente após o oferecimento da denúncia ou queixa. Contudo, notório que há ampla defesa.
A Constituição Federal determina que, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito aqui vigente com sua promulgação, o dever do Estado Brasileiro em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes. Tal preceito, como está explícito no texto constitucional tem por escopo dar ênfase aos elementos protetivos da dignidade humana.
De acordo com o que prescreve o artigo 6º, V, da norma adjetiva, a Autoridade Policial deverá "ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro", o que leva a crer que, com as alterações levadas a cabo pela Lei nº 10.792/03, é obrigatória a presença de advogado em caso de lavraturas de auto de prisão em flagrante ou de auto de qualificação em interrogatório, com todos os requisitos descritos na legislação indicada.
Um dos problemas que surgiram com a exigência da presença do advogado para a assistência ao interrogado na fase policial foi causado pela lacuna deixada no contexto no que tange ao poder (ausência de poder) da Autoridade Policial para que sejam nomeados defensores dativos 28 ou a obrigação, por parte das Defensorias Públicas, em manter plantões para atendimento aos presos em flagrante e aos indiciados em geral.
Embora alguns entendam que a Autoridade Policial deva somente oportunizar ao detido ou ao indiciado fazer-se representar por profissional habilitado, tal medida não surtiria efeito algum em casos de prisão de elementos que não tem condições de contratar um advogado, seja por impossibilidades financeiras, seja porque estão longe de sua morada, seja porque, simplesmente, sequer conseguem comunicar-se no idioma nacional.
Com relação ao presente problema, mister considerar que, em decorrência das peculiaridades do serviço sob comento, muitos dos procedimentos policiais, como em matéria de repressão a entorpecentes, por exemplo, são iniciados em datas e horários totalmente fora dos expedientes de escritórios, de varas ou de plantões, o que torna a exigência legal impraticável, não sendo possível optar pela simples postergação do trabalho para que seja lavrado o flagrante.
Desta forma, a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante fica dependente da disponibilidade de profissionais que se façam presentes, posto que é vedada a indicação por parte da equipe responsável pelas diligências.
Com a entrada em vigor da Lei nº 11.449/07, a qual modificou o artigo 306 do Código de Processo Penal e determinou que haja a remessa, dentro de vinte e quatro horas, das principais peças que compõem o inquérito iniciado através de flagrante à Defensoria Pública em caso de ausência de indicação de defensor por parte do interrogado, não cumpriu com a exigência latente, qual seja, a impossibilidade de tornar realmente obrigatória a assistência de advogados na fase pré-processual em caso de prisão cautelar.
Assim, mesmo que sejam remetidas as ditas cópias à Defensoria Pública, não há como indicar advogados ao detido em flagrante, o que vem provocando, diga-se de passagem, a não-homologação de comunicações flagranciais, como se houvesse alternativa à Autoridade Policial senão apenas oportunizar ao conduzido realizar ligações e pedir pela presença de seu defensor.
Em tais casos, pergunta-se: como resolver a questão em situações de prisões de estrangeiros, ou de elementos de outros Estados, ou em casos em que o defensor escolhido pelo indiciado somente se fará presente dias depois? Certamente, não há como esperar pela apresentação de profissional de preferência e, com isso, prejudicar a lavratura do procedimento dentro do prazo legal.
Assim, urge alteração legislativa para que seja oportunizado aos delegados de polícia a nomeação de defensores dativos, obviamente na fase de inquérito e em caso de interrogatórios (o mesmo valendo para indiciamentos, onde prevalece o entendimento de que a presença do defensor é obrigatória ou, pelo menos, a oportunidade de fazer-se presente acompanhado de tal profissional) ou, no mesmo objetivo, que as defensorias ofereçam a assistência jurídica gratuita prevista em lei para aqueles considerados hipossuficientes, isto dentro do prazo previsto para os atos e, não, somente horas após 29.
Para tanto, e para que seja preenchida tal inadmissível lacuna, importante que a Defensoria Pública mantenha operante equipes de plantão, tal qual já vem sendo ofertado pelo Ministério Público e pelas Comarcas, com o objetivo de que seja acionado o defensor em tempo de prestar assistência ao detido ou àquele que não possua meios de contratar advogados para que o acompanhe em caso de indiciamento.
A controvérsia sobre a necessidade da presença de defensores, e sobre sua real e efetiva participação durante o interrogatório não é recente, posto que na redação do artigo 6º do Código Penal é prevista a aplicação das regras do interrogatório judicial ao interrogatório policial no que couberem.
Assim, embora aconselhável, não se tornava obrigatória a presença de advogados na fase inquisitorial no que tange ao indiciamento, quer em razão de prisão em flagrante, quer em razão de confecção de auto de qualificação e interrogatório.
Tudo muda com o advento da Lei nº 10.792/2003, a qual, apesar de não trazer qualquer alteração do Capítulo do Código de Processo Penal referente à investigação policial, o artigo 6º, V, da norma adjetiva, prevê que a Autoridade Policial deverá "ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro", o que foi alterado pela nova legislação.
Em breve resumo, das alterações realizadas, praticamente todas terão plena aplicação no interrogatório policial.
Segundo se depreende, o direito ao silêncio não se restringe à fase processual, importando dizer que cabe à Autoridade Policial esclarecer objetivamente e na linguagem inteligível tal item ao indiciado. Ainda, consta que tal cientificação, caso não seja fornecida, mediante recibo, nota de ciência das garantias constitucionais ao conduzido, deve ser consignada no corpo do auto de prisão, sob pena de não-homologação do flagrante e posterior nulidade. 30
É o que se depreende da decisão reproduzida em sua ementa a seguir:
OFENSIVIDADE. SUBTRAÇÃO DE TRÊS CAMISAS, DEVOLVIDAS E TENTATIVA DE SUBTRAÇÃO DE MOLETONS. Em face da situação peculiar dos autos, nulidade absoluta por terem sido interrogadas as acusadas sem defensor, sem que tivessem as rés sido cientificadas do direito ao silêncio e sem obediência à determinação legal de prévia entrevista com advogado -, da restituição dos objetos subtraídos, do valor da res e da ausência de prejuízo, é de ser decretada a absolvição por ausência de ofensividade, no caso concreto. APELOS PROVIDOS. PREJUDICADO O RECURSO MINISTERIAL.
(Apelação Crime Nº 70016667123, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 26/04/2007).
Da mesma forma, também já foi decidido que:
INTERROGATÓRIO DO RÉU. LEI 10.792/03. AUSÊNCIA DE PRÉVIA ENTREVISTA DO RÉU COM O DEFENSOR AD HOC. AUSÊNCIA DA CIÊNCIA AO RÉU DO DIREITO AO SILÊNCIO. POSSIBIIDADE DE PERGUNTAS SUPRIMIDAS À DEFESA. NULIDADE ABSOLUTA. 1. A nova sistemática do interrogatório do réu, introduzida na legislação ordinária pela Lei 10.792/03, na linha das garantias constitucionais, determina a observância da prévia entrevista do réu com o defensor, sua ciência do direito ao silêncio, bem como que seja possibilitado ao defensor, no final do interrogatório, a formulação de perguntas. Isso não foi observado no caso em tela, o que produz nulidade absoluta, por ofensa às garantias constitucionais. PRELIMINAR DESACOLHIDA. POR MAIORIA. APELO DEFENSIVO DESPROVIDO. UNÂNIME.
(Apelação Crime Nº 70015189400, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 17/08/2006).
Insta acrescentar que o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL mantém tal entendimento há anos, o que reforça a tese aqui defendida. A seguir, somente como exemplo, ementa em julgamento onde o tema foi abordado:
Informação do direito ao silêncio (Const., art. 5º, LXIII): relevância, momento de exigibilidade, conseqüências da omissão: elisão, no caso, pelo comportamento processual do acusado. I. O direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional, porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a auto- incriminação que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade. II. Em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas. III. Mas, em matéria de direito ao silêncio e à informação oportuna dele, a apuração do gravame há de fazer-se a partir do comportamento do réu e da orientação de sua defesa no processo: o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer calado visa a assegurar ao acusado a livre opção entre o silêncio - que faz recair sobre a acusação todo o ônus da prova do crime e de sua responsabilidade - e a intervenção ativa, quando oferece versão dos fatos e se propõe a prová-la: a opção pela intervenção ativa implica abdicação do direito a manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito. 31
Ainda, pela nova lei o direito de assistência do advogado é garantido constitucionalmente e a possibilidade de entrevista prévia e reservada é inerente à assistência técnica prestada. Em caso de desobediência a tais ritos, nítida também a ocorrência de nulidade.
No que diz respeito ao local de realização do interrogatório, este pode ocorrer tanto no presídio como na sede da delegacia de polícia, a depender da segurança do local. Resta acrescentar que ainda pendente de pacificação o entendimento sobre a possibilidade de realização do interrogatório judicial mediante videoconferência, o que, pelo entendimento do artigo 6º do Código de Processo Penal, também valeria para a fase policial.
Quanto às perguntas feitas ao interrogado, estas devem versar, nos termos do artigo 187 do CPP, sobre a pessoa do investigado e sobre os fatos. Insta esclarecer que os dados qualificativos também fazem parte do interrogatório do indiciado, sendo possível, portanto, que se negue a responder sobre as perguntas que possam identificá-lo, ainda mais se for considerado que tais informações podem ser prejudiciais às teses defensivas.
Dando continuidade à breve análise sobre as inovações, devem ser observadas as regras específicas sobre surdos, mudos e estrangeiros e a separação dos interrogatórios no caso de co-autoria.
Ademais, e, por fim, como avanço observado, é possível que o defensor consigne perguntas no interesse do indiciado, o que revela a intenção do legislador em oferecer ao Juízo, quando do recebimento de cópias das principais peças, todas as ferramentas que permitirão, ou não, a homologação do flagrante. Tal oportunidade é oferecida após a série de perguntas feitas pela Autoridade e equipe policial, sendo que será consignado a preferência por não fazê-las no próprio auto.
Estes os comentários sobre a liturgia a ser obrigatoriamente seguida. Todavia, não há como concordar com a tese segundo a qual a presença de advogados na fase inquisitorial é facultativa, ou seja, deve-se, apenas e simplesmente, oferecer ao preso em flagrante, ao indiciado, oportunidade de contatar um advogado para acompanhar o ato de seu indiciamento. Os estragos causados pela ineficiência estatal, em tais casos, são irreparáveis, devendo ser mencionado que o investigado tem o direito de ter promovida sua defesa para tentar não ser indiciado, denunciado e, por conseguinte, acusado.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), em sua evolução no que diz respeito ao tema em questão, demonstra que, antes da publicação da Lei nº 10.792/2003, o pensamento sobre a obrigatoriedade da assistência de advogados em sede de inquérito policial, ou mesmo no interrogatório judicial, era ambíguo 32. De tal modo, possível que fossem encontradas decisões que exigiam a presença de defensor durante a lavratura do auto de prisão em flagrante, como também foram encontradas ementas que apontavam a desnecessidade de tal medida se fosse assegurado ao detido a oportunidade de contatar profissional habilitado para assessorá-lo.
Frise-se que, em caso de interrogatório judicial, a ausência de tal obrigatoriedade baseia-se na tese de que se trata de "ato personalíssimo do juiz", ato este em que as partes não podem intervir.
É o que diz a ementa abaixo reproduzida:
INTERROGATORIO. A AUSENCIA DE ADVOGADO NO INTERROGATORIO JUDICIAL DO REU NAO E CAUSA DE NULIDADE, POSTO QUE SE TRATA DE ATO PERSONALISSIMO DO JUIZ, NO QUAL AS PARTES NAO PODEM INTERVIR. PRELIMINAR REJEITADA. FURTO. REU CONFESSO. PROVA TESTEMUNHAL CONVERGENTE. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. CONDENACAO MANTIDA. REINCIDENCIA. A AGRAVANTE DA REINCIDENCIA SOMENTE PODE SER APLICADA SE PRESENTE CERTIDAO DO TRANSITO EM JULGADO DA CONDENACAO ANTERIOR. AGRAVANTE EXPUNGIDA. CONFISSAO. SE O REU CONFESSA ESPONTANEAMENTE A AUTORIA DO DELITO, E OBRIGATORIA A APLICACAO DA ATENUANTE CORRESPONDENTE. PENA REDUZIDA 33.
Todavia, como dito, possível encontrar decisões em que a presença do defensor na confecção do procedimento foi considerada essencial para a validade do ato, o que determinou a nulidade da homologação do flagrante.Tais decisões indicavam a necessidade das mudanças na legislação, preconizando, também, o pioneirismo do TJRS em apontar a lacuna existente.
Nesta linha:
HABEAS CORPUS. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE SEM ASSISTÊNCIA DE DEFENSOR AO FLAGRADO NÃO PODE SER HOMOLOGADO, POR VIOLAÇÃO DO ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SUSPENSÃO DO LIVRAMENTO CONDICIONAL POR ENVOLVIMENTO EM INFRAÇÃO PENAL EXIGE FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. EM SE TRATANDO DE FATO ÚNICO, DESCABE NARRÁ-LO DE MODO LIGEIRAMENTE DISTINTO E CAPITULÁ-LO EM DOIS TIPOS PENAIS DIVERSOS. DESCONSTITUIÇÃO DA DECISÃO QUE HOMOLOGOU O AUTO DE PRISÃO E DA QUE SUSPENDEU O LIVRAMENTO CONDICIONAL, CONFIRMANDO A CONCESSÃO LIMINAR. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL EM RELAÇÃO A UM DOS DELITOS IMPUTADOS. Ordem concedida 34.
HABEAS CORPUS. ROUBO E PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. AUSÊNCIA DE ADVOGADO NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. EXCESSO DE PRAZO NA CONCLUSÃO DA INSTRUÇÃO. O art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, que expressa que o preso deve ter assegurada a assistência de advogado, deve ser interpretado com rigor, pois tem em vista evitar que, mesmo remotamente, algum inocente seja preso, o que tem ocorrido até com alguma freqüência, especialmente quando se trata de alguma prisão desnecessária ou descabida. O fato de o preso não ter prestado declarações à Autoridade Policial não significa que não houve prejuízo, pois o prejuízo está na prisão, na perda do maior direito protegido no nosso ordenamento jurídico, a liberdade. O excesso de prazo na conclusão da instrução impõe a concessão da ordem. Paciente preso em 5 de março e decisão de soltura exarada em 6 de julho. CONCESSÃO LIMINAR CONFIRMADA. ORDEM CONCEDIDA. 35
No entanto, nos tribunais superiores a situação permanecia inalterada, pelo menos no que diz respeito a grande maioria das decisões. Este também era o pensamento predominante no SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ), onde, inclusive, havia o entendimento de que o interrogatório se tratava de ato personalíssimo, não configurando nulidade alguma sua realização sem a presença de defensor.
A seguir, entendimentos jurisprudenciais em tal sentido:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. INTERROGATÓRIO. PRESENÇA DO ADVOGADO. DESNECESSIDADE. A realização do interrogatório sem a presença do defensor não constitui nulidade porquanto se trata de ato personalíssimo, com as características da judicialidade e da não intervenção da acusação e da defesa. Recurso provido. 36
CRIMINAL. HC. NULIDADES. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. CONFISSÃO SOB TORTURA. AUSÊNCIA DE DEFENSOR. ATOS DO INQUÉRITO POLICIAL NÃO-ASSINADOS PELA AUTORIDADE COMPETENTE. IRRELEVÂNCIA. PEÇA MERAMENTE INFORMATIVA. PROVA TESTEMUNHAL QUE NÃO TERIA RETRATADO A VERDADE DOS FATOS. IMPROPRIEDADE DO MEIO ELEITO. PATRONO QUE TERIA SIDO IMPEDIDO DE TER VISTA DOS AUTOS E ENTREVISTAR O SEU CLIENTE. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INTERROGATÓRIO. ATO PRIVATIVO DO JUIZ. DIREITO CONSTITUCIONAL DE PERMANECER CALADO. OFENSA NÃO-VISLUMBRADA. ORDEM DENEGADA. Os defeitos por ventura existentes no auto de prisão em flagrante não têm o condão de, por eles próprios, contaminarem o processo e ensejarem a soltura do réu, ainda mais se os autos demonstram ter havido o recebimento da denúncia. A presença do advogado no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante não constitui formalidade essencial a sua validade. O fato de que alguns dos atos de investigação não possuíam assinatura da Autoridade Policial não implica na nulidade da ação penal decorrente do investigatório, não só porque não comprovado efetivo prejuízo, mas também, porque o inquérito policial é peça meramente informativa, instrutória, ainda mais se demonstrado que os referidos atos teriam sido assinados pelo escrivão, o qual, devidamente investido no cargo, conta com fé pública. O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de questões que exijam o reexame do conjunto fático-probatório – como a alegação de que a única prova testemunhal não teria retratado a verdade dos fatos. Evidenciado que o defensor do acusado pediu vista dos autos quando já iniciado o interrogatório e que já teria sido constituído pelo paciente antes do referido ato, não há que se falar em nulidade do interrogatório judicial sob os argumentos de que o patrono do paciente teria sido impedido de analisar os autos do inquérito e de entrevistar seu cliente. O interrogatório judicial é ato privativo do Juiz, e não está sujeito ao contraditório, restando obstada a intervenção da acusação ou da defesa. Não se vislumbra ofensa aos direitos constitucionais do acusado, mormente o de permanecer calado durante as indagações do Julgador no seu interrogatório, se demonstrada a indagação livre de qualquer constrangimento, a negação convicta do acusado quanto às acusações a ele imputadas, bem como a presença do defensor no ato, que nada requereu. Precedente desta Corte. Efetivo prejuízo, hábil a ensejar a declaração de nulidade do ato, não evidenciado. Ordem denegada. 37
Note-se que, inclusive, as decisões do STJ confirmavam que, tendo sido oferecida a possibilidade, ou melhor, alertado sobre o direito de permanecer calado o interrogado, tal medida teria o condão de sanar quaisquer irregularidades.
Com a publicação da referida legislação, a qual alterou a liturgia no que diz respeito ao interrogatório judicial, e, por conseguinte, também daquele que se realiza na esfera policial, os entendimentos jurisprudenciais começam a modificar-se, dando, alguns, como nulidade a ausência da presença de defensores para assistir ao réu.
Assim, nos termos do que está exemplificado na reprodução das ementas abaixo, iniciaram-se processos com a obrigação da concessão de oportunidade de entrevista prévia do defensor, mesmo ad hoc, com o interrogando, elegendo como nulidade a ausência da defesa técnica.
São os precedentes:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. NULIDADE. INTERROGATÓRIO. INTIMAÇÃO DO DEFENSOR CONSTITUÍDO. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO AD HOC EM FACE DA AUSÊNCIA DO DEFENSOR. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. ORDEM DENEGADA. A nova dicção do artigo 185 do Código de Processo Penal, dada pela Lei n.º 10.792/03, garante a presença de defensor constituído ou nomeado para acompanhar o interrogatório do acusado. 2. Mesmo nas hipóteses de ausência de intimação do defensor constituído, inexiste prejuízo para o paciente se houve a nomeação de defensor para assisti-lo no interrogatório. 3. In casu, não se verificou nenhum prejuízo ao paciente que pudesse acarretar a nulidade do interrogatório, ainda mais quando a Magistrada nomeou defensor ad hoc para assistir o acusado, oportunizando, inclusive, direito de entrevista, antes da realização da audiência. 4. Ordem denegada. 38
INTERROGATÓRIO. LEI Nº 10.792/03 (APLICAÇÃO). DEFENSOR (AUSÊNCIA). NULIDADE (CASO). 1. Com a alteração do Cód. de Pr. Penal pela Lei nº 10.792/03, assegurou-se, de um lado, a presença do defensor durante a qualificação e interrogatório do réu; de outro, o direito do acusado de entrevista reservada com seu defensor antes daquele ato processual. 2. Por consistirem tais direitos em direitos sensíveis – direitos decorrentes de norma sensível –, a inobservância pelo juiz dessas novas regras implica a nulidade do ato praticado. 3. Caso em que o réu foi interrogado sem a assistência de advogado, tendo dispensado a entrevista prévia com o defensor nomeado pelo juiz. 4. Recurso provido a fim de se anular o processo penal desde o interrogatório do acusado 39.
No entanto, mesmo que o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA venha renovando o entendimento com o advento da Lei nº 10.792/03, persistem resquícios de desatendimento aos preceitos constitucionais, tendo sido decidido pela validade de interrogatório em que, ausente o defensor constituído pelo réu, foi nomeado para o ato defensor ad hoc.
É o que se depreende da leitura da ementa abaixo transcrita:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. NULIDADE. INTERROGATÓRIO. INTIMAÇÃO DO DEFENSOR CONSTITUÍDO. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO AD HOC EM FACE DA AUSÊNCIA DO DEFENSOR. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. ORDEM DENEGADA. 1. A nova dicção do artigo 185 do Código de Processo Penal, dada pela Lei n.º 10.792/03, garante a presença de defensor constituído ou nomeado para acompanhar o interrogatório do acusado. 2. Mesmo nas hipóteses de ausência de intimação do defensor constituído, inexiste prejuízo para o paciente se houve a nomeação de defensor para assisti-lo no interrogatório. 3. In casu, não se verificou nenhum prejuízo ao paciente que pudesse acarretar a nulidade do interrogatório, ainda mais quando a Magistrada nomeou defensor ad hoc para assistir o acusado, oportunizando, inclusive, direito de entrevista, antes da realização da audiência. 4. Ordem denegada. 40
Ainda, bom serem reproduzidos trechos do voto do relator Desembargador MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA em julgamento no Habeas Corpus nº 70021911748, Primeira Câmara Criminal do TJRS 41, onde, apesar do desenvolvimento da tese de que a presença de advogado na lavratura do auto de prisão em flagrante é facultativa, sendo obrigatória a cientificação dos direitos constitucionais ao indiciado preso, foram citados argumentos que apontam a necessidade do acompanhamento pelo defensor.
Assim, como forma de justificar tal necessidade, mesmo que o auto sob comento tenha sido homologado pelo Juízo a quo, o relator apontou:
No entanto, tenho que o auto de prisão em flagrante não poderia ter sido homologado, já que indispensável a presença de defensor para o ato, sob pena de violação à norma constitucional, a qual determina, no inciso LXIII do art. 5º, que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
Em seguida, reforçou que:
[...] não se pode puramente desconhecer uma garantia constitucional do cidadão, a qual visa justamente escudá-lo de possíveis abusos do acusador, ou seja, do Estado, o qual possui aparato infinitamente superior e não raras vezes tende a se exceder. As formalidades legais, que também se propõem a acastelar o acusado, devem ser respeitadas, mormente em atos concernentes à prisão em flagrante, momento em que o Poder Estatal exerce sua força de modo quase absoluto.
Por oportuno, mister ser apontado que o voto do relator foi derrubado pelo entendimento dos dois outros desembargadores presentes à sessão, os quais firmaram o entendimento de que, se oferecida a oportunidade ao indiciado preso de se fazer representar por defensor contratado, preenchida está a lacuna e cumprida está a prescrição constitucional.
No entanto, ainda o vazio deixado nos casos em que o detido em flagrante, por pobreza, por falta de esclarecimentos ou por quaisquer outras razões, deixar de apontar os dados de profissional habilitado a assessorá-lo em tão importante momento, haja vista que a Autoridade Policial não pode ficar aguardando, por longas horas, a apresentação de advogados na delegacia para que dê início ao interrogatório, sendo que, no mesmo sentido, não pode nomear ou indicar advogados "dativos" para que assessorem o preso.
Assim, a leitura acurada do voto sob observação deixa claro que, na verdade, existe, sim, falha estatal em não dar cumprimento ao que determina a Constituição Federal, não oferecendo assistência jurídica integral e gratuita aos que delas necessitam, provocando, com isso, a anormalidade do sistema (quem tem condições materiais, que aponte seu advogado; quem não as tem, que seja dada, apenas, oportunidade de fazê-lo. Como não tem condições, fica sem defesa.).
Desta forma, observa-se que, mesmo em casos de nomeação de defensores dativos, torna-se imprescindível prévia entrevista do réu com o profissional nomeado, em caráter reservado, isto de forma cogente (nulidade absoluta). Mais uma vez, ressalta-se a lacuna deixada pelo legislador em não prever a necessidade de nomeação de advogados em sede de inquérito policial para acompanhamento daqueles que serão indiciados.
Além disso, preconiza-se que a grande maioria dos estabelecimentos policiais não dispõe de local apropriado para que os defensores tenham acesso ao caso mediante conversa com o detido, o que é agravado pela necessidade de escolta aos presos por policiais. Assim, é usual assistir advogados praticamente cochichando nos ouvidos dos indiciados em conversas "reservadas" levadas a efeito em corredores e ante-salas, com a prevista escolta postada a alguns metros, prática que obviamente não oferece a privacidade que a lei determina.
Portanto, embora as reformas trazidas pela alteração legislativa tenham sido essenciais para o aprimoramento do interrogatório na fase policial, ainda há muito o que ser feito para que os efeitos sejam realmente sentidos na prática, posto que, como exposto por TOURINHO FILHO 42, o investigado ainda é considerado como simples objeto do procedimento, não sendo sujeito como prevê a lei.