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Escândalo dos grampos e o "esquecido" princípio da publicidade

Agenda 07/10/2008 às 00:00

" (...) voltando ao ‘grampo’, dizendo que, ao longo de toda essa jornada do Governo do Presidente Lula da Silva, eu nunca vi nada mais grave. Isso é mais grave do que o episódio em torno do ‘mensalão’, é mais grave do que o episódio do tempo em que se discutia se se faria ou não se faria tentativa de impeachment do Presidente da República." (Senador Arthur Virgílio Neto, em discurso no dia 3.9.2008) [01]

Convido o leitor a submeter o arquiconhecido escândalo dos grampos a um breve exame lógico: tanta indignação somente pode acontecer quando a pessoa sente-se gravemente lesionada em algum direito fundamental da qual se imagina titular. Qual seria esse direito? Ora, interceptações telefônicas ilícitas, sem dúvida nenhuma, violam gravemente os direitos constitucionais à privacidade e à intimidade.

Essas prerrogativas constitucionais são essenciais para que os indivíduos possam desenvolver tranquilamente seus afazeres naquelas questões em que não há nenhuma necessidade de conhecimento alheio. Mais ainda: a vigilância contínua da vida privada do indíviduo interfere naquilo que cada um tem de mais valioso: o direito de buscar a felicidade do modo como considerar mais adequado; obviamente, sem ofender ou colocar em risco direitos alheios. Trata-se do direito de estar só, de não sofrer ingerências e julgamentos indevidos em sua vida. É indiscutível, na doutrina e na jurisprudência, a importância desse princípio. Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 378) ressaltam magistralmente a relevância desse direito:

"A reclusão periódica à vida privada é uma necessidade de todo homem, para a sua própria saúde mental. Além disso, sem privacidade não há condições propícias para o desenvolvimento livre da personalidade. Estar submetido ao constante crivo da observação alheia dificulta o enfrentamento de novos desafios. A exposição diturna de nossos erros, dificuldades e fracassos à crítica alheia dificulta o enfrentamento de novos desafios."

O raciocínio utilizado anteriormente esbarra em um "detalhe" esquecido por nossas autoridades públicas: privacidade e intimidade são direitos individuais e destinam-se a proteger o indíviduo contra interferências indevidas em sua vida. Não existe privacidade para o servidor público no exercício de suas funções. Aplica-se, nessa situação, o princípio constitucional da publicidade.

O princípio da publicidade exige que a Administração Pública proceda de modo transparente, permitindo à população o conhecimento de seus atos. A transparência permite que os atos estatais sejam devidamente fiscalizados e, se for o caso, impugnados. Permite também a concretização da democracia, ao possibilitar a participação popular no exercício do poder estatal. De fato, o grau de democracia de um país é diretamente proporcional à transparência com que o Estado exerce suas funções. Nesse sentido, é o magistério de Martins Júnior (2004, p. 19):

"A publicidade é um dos expoentes mais qualificados da transparência, obrigando a Administração Pública à exposição de todo e qualquer comportamento administrativo e conferindo certeza a condutas estatais e segurança aos administrados – resultante que é do princípio democrático".

O exercício sigiloso do poder público somente é admissível em situações excepcionalíssimas, nas quais exista demonstração inequívoca de que a publicidade pode lesionar algum interesse superior da sociedade. São exemplos comuns desse sigilo lícito: situações que envolvam a segurança nacional (ex.: operações especiais das Forças Armadas e da Agência Brasileira de Inteligência), a segurança pública (ex.: inquéritos policiais) e a proteção à privacidade e à intimidade (ex.: processos de separação e de divórcio). Fora essas hipóteses de rara incidência no cotidiano estatal, a publicidade torna-se imprescindível para que o ato produza seus efeitos e, até mesmo, para que seja válido.

Ao contrário do que tem sido constantemente divulgado, aqueles que realizaram as interceptações telefônicas, mesmo sem autorização judicial, não cometeram crime nenhum. O motivo é extremamente simples: não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão a bem jurídico. Assim, o crime previsto no art. 10 da Lei 9.296/96 [02] somente pode ocorrer com a lesão à privacidade e à intimidade individual. Não há crime nas interceptações telefônicas realizadas em aparelhos utilizados por agentes públicos, porque estes, no exercício de suas funções, não têm direito à privacidade, mas tem o dever de publicizar seus atos (exceto, é claro, naqueles raros casos em que existe o dever de sigilo).

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Esse ponto é essencial: o Estado não tem direito à privacidade, mas o dever da publicidade. E o agente público, principalmente os agentes políticos, no momento do exercício de suas funções públicas, é o próprio Estado em ação. Portanto, não se pode falar em privacidade quanto a atos realizados na repartição pública, quanto a e-mails corporativos (como a Justiça do Trabalho tem reiteradamente decidido) e nem quanto a telefonemas realizados de ou para órgãos públicos. Nem se fale que, por meio desses instrumentos, podem trafegar informações de cunho estritamente privado do agente público. Isso, de fato, ocorre, e com enorme frequência. Trata-se, porém, de alegar sua própria torpeza, pois o princípio da impessoalidade veda a utilização de bens públicos com fins particulares.

Qual é, então, o motivo de tanto estardalhaço? Por que, de fato, os grampos incomodam tanto? A resposta pode ser encontrada em Ferdinand Lassale, que elaborou o conceito sociológico de constituição. De acordo com ele, a constituição real é o conjunto dos fatores reais de poder, enquanto o que é comumente chamado de "Constituição" é apenas uma folha de papel se não estiver de acordo com esses fatores.

Fizemos, há 20 anos, uma constituição que impressiona em suas pretensões. Pode se dizer, sem medo de exagerar, que pretendeu criar o paraíso na terra. Por mais que tenha seus méritos, nossa "constituição de papel" também tem a função de camuflar a "constituição real", ou seja, o modo como nosso sistema político realmente funciona. Os grampos retiraram parte dessa camuflagem. Por isso, são tão combatidos. Como disse Millôr Fernandes, "Político profissional jamais tem medo do escuro. Tem medo é da claridade." [03]

Combater os grampos a todo custo, talvez seja o melhor a fazer. Do modo como nós, brasileiros, estamos acostumados com ilusões, seria por demais aterrorizante conhecer a realidade...


Bibliografia

MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa. Publicidade, motivação e participação popular. São Paulo: Saraiva, 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.


Notas

01 Disponível em http://www.senado.gov.br/web/senador/ArthurVirgilio/discurso.asp?codigo=628. Acessado em 5 de outubro de 2008.

02. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

03 Revista Veja, setembro de 2008, edição especial, p. 94.

Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Escândalo dos grampos e o "esquecido" princípio da publicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1924, 7 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11819. Acesso em: 2 nov. 2024.

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