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A criação de área de proteção ambiental e o dever estatal de indenizar

Agenda 01/11/2008 às 00:00

A partir de um exemplo prático de intervenção estatal na propriedade, qual seja a criação, através de lei, de área de proteção ambiental em determinada propriedade privada, surgem duas interessantes indagações: doutrinariamente, que tipo de intervenção estatal seria esta? Caso o proprietário sofra prejuízos, deve ele ser indenizado?

Em primeiro lugar, é preciso definir se a criação de área de proteção ambiental é uma limitação administrativa ou uma servidão administrativa.

A doutrina [01] ensina que a limitação administrativa importa em restrição geral e abstrata na propriedade, tolhendo a característica da absolutividade [02] da propriedade de um indeterminado número de propriedades particulares. Consiste, em regra, em obrigação de não fazer, comportando obrigações de fazer como exceção, cujo objetivo é o benefício do interesse público genérico, abstratamente considerado.

A partir de exemplos práticos de limitação administrativa (proibição de se edificar acima de determinada altura, adoção obrigatória de medidas de segurança, como a colocação de extintores, etc), entende-se que, por ser genérica, ela não enseja direito à indenização. Neste sentido posicionam-se Dirley da Cunha Júnior [03] e Celso Antônio Bandeira de Mello [04].

Este último doutrinador assevera que a limitação administrativa visa, precipuamente, condicionar o uso da propriedade dentro da esfera correspondente ao desenho legal do direito. [05]

Cada doutrinador explica de diversas formas o referido instituto. Compilando-se os ensinamentos, pode-se chegar a duas características fundamentais da limitação administrativa: destina-se a incontável número de administrados sujeitos a uma mesma situação fática, sendo, portanto, genérica e abstrata; disciplina o uso da propriedade através de medidas que o compatibilizem ao convívio social harmônico. Por estas razões, não gera direito à indenização, posto constituir-se em meio necessário ao uso da propriedade conforme sua função social constitucional.

Por outro lado, a servidão administrativa atinge parcial e concretamente o direito de propriedade, incidindo sobre propriedades determinadas, afetando seu caráter exclusivo. Tem natureza de direito real de gozo. Na servidão administrativa existe um relação jurídica entre a coisa serviente e a coisa dominante, sendo que opera-se nela uma obrigação de tolerar que se faça algo [06].

Quando se pensa em servidão administrativa, logo vem à mente aqueles casos de passagem de cabos de energia elétrica ou aquedutos através de propriedades específicas, a colocação de placas com o nome das ruas, dentre outros exemplos.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, na servidão administrativa, ao contrário da limitação, ocorre não uma conformação do uso da propriedade às normas legais, mas um verdadeiro sacrifício, conquanto parcial, do direito. [07]

A partir deste traçado, verifica-se duas notas características da servidão: dirige-se concretamente a propriedades específicas; constitui-se num sacrifício imposto à propriedade, razão pela qual, em regra, é indenizável.

Diga-se em regra porque em casos práticos, como a colocação de placas, não se vislumbra a responsabilidade estatal.

Voltando aos questionamentos propostos inicialmente, verifica-se clara tendência em se classificar como servidão administrativa o ato de declaração de determinada área como de proteção ambiental, primeiro porque pode-se individualizar a (s) propriedade (s) atingida (s). Segundo porque o administrado sujeito ao referido ato não terá apenas que conformar o uso de sua propriedade às normas coletivas de convivência, mas sofrerá um sacrifício não ordinário em sua propriedade, levando-o a obrigar-se a não fazer algo, abstendo-se, por exemplo, de desmatar a propriedade para criação de gado; ou tolerar que se faça algo, como na hipótese de permitir a entrada de agentes governamentais fiscalizadores, bem como de outras pessoas autorizadas pelo Estado a realizarem pesquisas na área de proteção ambiental.

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Neste caso, mesmo tendo a referida área de proteção ambiental sido criada por lei, haverá indenização ao proprietário?

A doutrina citada anteriormente entende que sim. Maria Sylvia Zanella de Pietro entende que não:

"Não cabe direito à indenização quando a servidão decorre diretamente da lei, porque o sacrifício é imposto a toda uma coletividade de imóveis que se encontram na mesma situação. Somente haverá direito à indenização se um prédio sofrer prejuízo maior, por exxmplo, se tiver de ser demolido" [08]

No entanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores formou-se no sentido da indenizabilidade, senão vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. DESAPROPRIAÇÃO. CRIAÇÃO DE LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM E JUSTA INDENIZAÇÃO. SÚMULA N.º 07/STJ. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. SÚMULA119/STJ. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. CRIAÇÃO DE ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. DIREITO À INDENIZAÇÃO. ESVAZIAMENTO ECONÔMICO DO DIREITO À PROPRIEDADE. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. LEI ESTADUAL N.º 5.598, DE 06.02.1987. JUROS COMPENSATÓRIOS E MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

...8. Controvérsia gravitante em torno da indenizabilidade ou não de área atingida por limitação administrativa advinda da criação de Área de Proteção Ambiental. 9. A questão inerente à indenizabilidade da área atingida pela criação de Parques Estaduais e de Áreas de Proteção Ambiental, tout court, é matéria de mérito e tem sido decidida positivamente pelo Pretório Excelso, sob o enfoque de que limitação legal ou física encerra expropriação, a qual, no nosso sistema constitucional, que também protege a propriedade, gera indenização. 10. A distinção que se impõe é a de que a indenização pelo preço de mercado abarca todo o imóvel sem indagação de sua exploração econômica ex abundantia; ao passo que, comprovada a utilidade econômica da cobertura vegetal com novel impedimento de explorações outras, acresce-se um plus à indenização em prol da cláusula da justeza da reposição patrimonial. Precedentes: STF: RE n.º 134.297-8/SP, Rel. Celso Mello, 1ª T., DJ de 22.09.1995; RE n.º 267.817/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª T, DJ de 29.11.2002; STJ: RESP n.º 401.264/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª T, DJ de 30.09.2002; RESP n.º 209.297/SP, Rel. Min. Paulo Medina, 2ª T. DJ de 10.03.2003. 11. É assente no Pretório Excelso que:

"(...) o Poder Público ficará sujeito a indenizar o proprietário do bem atingido pela instituição da reserva florestal, se, em decorrência de sua ação administrativa, o dominus viera a sofrer prejuízos de ordem patrimonial. A instituição de reserva florestal - com as conseqüentes limitações de ordem administrativa dela decorrentes - e desde que as restrições estatais se revelem prejudiciais ao imóvel abrangido pela área de proteção ambiental, não pode justificar a recusa do Estado ao pagamento de justa compensação patrimonial pelos danos resultantes do esvaziamento econômico ou da depreciação do valor econômico do bem.(...)"(Recurso Extraordinário n.º 134.297/SP, Rel. Min. Celso de Mello)12. Destarte, a essência do entendimento jurisprudencial emanado do STF, no julgamento do RE 134.297-8/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 22.098.95, está assim ser sintetizado: "(...) - A norma inscrita no art. 225, § 4º, da Constituição deve ser interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente à compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à atividade estatal. - O preceito consubstanciado no art. 225, § 4º, da Carta da República, além de não haver convertido em bens públicos os imóveis particulares abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas (Mata Atlântica, Serra do Mar, Floresta Amazônica brasileira), também não impede a utilização, pelos próprios particulares, dos recursos naturais existentes naquelas áreas que estejam sujeitas ao domínio privado, desde que observadas as prescrições legais e respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental. - A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de propriedade (CF/88, art. 5º, XXII). Essa proteção outorgada pela Lei Fundamental da República estende-se, na abrangência normativa de sua incidência tutelar, ao reconhecimento, em favor do dominus, da garantia de compensação financeira, sempre que o Estado, mediante atividade que lhe seja juridicamente imputável, atingir o direito de propriedade em seu conteúdo econômico, ainda que o imóvel esteja localizado em qualquer das áreas referidas no art. 225, § 4º, da Constituição. (...)" (RE 134.297-8/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22/09/95)... (REsp 439192/SP. Relator: Ministro Teori Albino Zavascki. Relator para o acórdão: Ministro Luiz Fux. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data do julgamento: 07.12.2006)

Pelo que se percebe através do julgado acima colacionado, a tese de indenizabilidade é amplamente adotada, haja vista inúmeras remissões a outros julgados tanto do Supremo Tribunal Federal quando do próprio Superior Tribunal de Justiça.

Poder-se-ia indagar: mas sendo a criação de área de proteção ambiental, através de lei, um ato lícito estatal, haveria mesmo assim a necessidade de indenizar? O tema não oferece divergência na doutrina, segundo a qual a existência ou inexistência do dever de reparação do dano não advém da conduta lícita ou ilícita, mas em razão da lesão sofrida. Se o direito do administrado foi agravado, há dever de indenizar. [09]

Assim, a criação, por lei, de área de proteção ambiental é uma servidão administrativa, a qual, segundo a doutrina e jurisprudência adotadas, gera direito à indenização ao administrado que comprove ter experimentado prejuízos econômicos diante da aludida intervenção estatal.


Notas

  1. JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo. 6 ed. . Edições JusPODIVM, 2007, p. 297/298.
  2. Os caracteres tradicionais do direito de propriedade são: a) absolutividade, assegurando ao proprietário o mais amplo uso, ocupação, modificação e disponibilidade do bem; b) exclusividade, porque pertence somente ao proprietário; e c) perpetuidade, porque permanece em continuidade no patrimônio do proprietário. (SILVA, José Afonso da, apud MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11 ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 343)
  3. JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo. 6 ed. . Edições JusPODIVM, 2007, p. 297/298.
  4. MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Malheiros Editores p. 776.
  5. Ibid, p. 777
  6. JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo. 6 ed. . Edições JusPODIVM, 2007, p. 298.
  7. MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Malheiros Editores, p. 775
  8. DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª ed. Editora Atlas, p. 145
  9. MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Malheiros Editores, p. 880.
Sobre o autor
Bruno Quiquinato Ribeiro

Servidor do Ministério Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Bruno Quiquinato. A criação de área de proteção ambiental e o dever estatal de indenizar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1949, 1 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11913. Acesso em: 22 dez. 2024.

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