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Cooperativas de trabalho: escravidão?

Agenda 01/09/2000 às 00:00

Para uma melhor compreensão do tema, iniciamos fazendo uma contextualização de como se apresenta o atual mercado de trabalho.

Hodiernamente, ressalta o Professor e Doutor Antoine Jeammaud, "a preocupação em lutar contra a degradação da situação do emprego reforçou a instrumentalização da produção ou modificação das regras do direito do trabalho", o que responde pelas crescentes e rápidas alterações na legislação trabalhista frente ao fenômeno da Globalização.

Presencia-se, ao mesmo tempo, um intenso processo de automação das empresas, com a finalidade de acompanhar tais mudanças ; de terceirização dos serviços, visando, principalmente, estabelecer um processo de reengenharia nos grandes estabelecimentos empresariais, ou seja, toda uma reorganização em unidades menores buscando a sobrevivência no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo.

Entre tantas outras mudanças na legislação trabalhista, como a extinção das juntas de conciliação e julgamento e estabelecimento das varas do trabalho ( pela emenda 24/99) ; a lei n° 8.984, de7-2-95, juntamente com a emenda n° 20 que elasteceram a competência trabalhista; a lei 9.957/00, ( que trouxe o procedimento sumaríssimo), a lei 9958/00, ( das comissões de conciliação prévia), enfim, resta comprovado um cenário de constantes e intensas mudanças na justiça laboral, panorama no qual até já se fala em "direito à desconexão", em virtude de reivindicações dos empregados que se vêem no direito de, fora do horário de trabalho, desligarem-se da rede telemática, do arreio eletrônico que os liga ao seu patrão ou a sua firma.


Diante do exposto, como levantar a questão das cooperativas? Qual a finalidade destas e como estão inseridas neste contexto?

Existem aqueles que defendem, cegamente, esse instituto, alegando que é uma ferramenta indispensável à luta contra o desemprego, elemento fundamental dos novos tempos porque garantiria benefícios superiores aos previstos pela CLT .

De fato, o número de cooperativas de trabalho saltou de 1.134, em dezembro de 1998, para 1556, em junho de 1999, de acordo com a Organização das Cooperativas do Brasil ( OCB ), sendo mais de 390 mil associados em todo o país e em entidades bem diferenciadas, como a Força Sindical, a CUT e o Movimento dos Sem Terra ( MST ).

No entanto, as alegações de que as cooperativas reconduzem ao mercado formal quem estava fora dele, com salários e vantagens muitas vezes mais altos que os previstos na CLT, por não ser o cooperado um simples funcionário, mas um sócio da entidade que tem um melhor rendimento porque decide mais democraticamente sobre o futuro da cooperativa é, no mínimo, utópica e irresponsável, haja vista que, apesar de ser algo que poderá ser concretizado, trazendo faticamente reais benefícios para a classe trabalhadora, diminuindo o desemprego e ampliando as vantagens trabalhistas, não é assim o quadro que hoje se apresenta..

Vejamos, as Cooperativas nasceram para ser um tipo de empreendimento econômico objetivando uma distribuição mais eqüitativa da riqueza no mercado de trabalho

Em 1844, na cidade de Rochdale, Inglaterra, deu-se o surgimento da primeira cooperativa, quando 28 tecelões, representando a massa trabalhadora explorada pelo capitalismo decidiram unir-se para organizá-la. Eles buscavam meios alternativos de subsistência. Desse modo, as cooperativas surgiram da crise gerada pelo capitalismo, buscando a não interferência e intermediação de outrem, isto é, fazendo à autogestão de seus próprios negócios.

Outro aspecto diz respeito à peculiaridade principiológica das cooperativas, onde deveria haver uma preponderância do fator social sobre o econômico, ao contrário do que tem ocorrido.

Os princípios cooperativistas se difundiram de maneira geral em todos os países. O Brasil não fugiu à regra, editando a Lei n. 5.764/71, que prescreve em seus artigos 3º e 4º :

          Art 3º "celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviço para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum sem objetivo de lucro"

          Art 4º "As cooperativas são sociedades de pessoal, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características...(omissis )"

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Significa que, em primeiro momento, os destinatários de suas atividades são os associados, e numa segunda fase, terceiros, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e esteja de conformidade com o presente na lei

Diz do Enunciado 331 do TST, incisos I, II e III: " I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário ( Lei n. 6019, de 3-1-74).

II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional ( ar. 37, II, da Constituição da República).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância ( lei n. 7102, de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta."

Pode-se, então, afirmar que as cooperativas de trabalho, enquanto executam serviços em empresas não praticam a terceirização prevista pelo enunciado em epígrafe, pois:

Ao mesmo tempo, a Lei n° 8.949/94 acrescentou o parágrafo único ao art. 442 da CLT, dispondo sobre vínculo empregatício entre sócios, cooperativa e os tomadores de seus serviços, o que trouxe muitas transformações, uma verdadeira lacuna aberta no ordenamento jurídico trabalhista, especialmente quanto aos direitos sociais previstos no art. 7º da CF/88, pois estão proliferando cooperativas constituídas para o fim exclusivo de prestar serviços não especializados a terceiros. Os trabalhos contratados são, quase sempre, na colheita de café, no corte de cana-de-açúcar e outras atividades ligadas ao meio rural.

O sistema de arregimentação é bastante simples, bastando que o interessado se inscreva no quadro societário, passando então a ser denominado "sócio – cooperado". Assim, os tomadores de serviços, além de inúmeras vantagens, ainda ficam descomprometidos frente ao trabalhador, constituindo-se um total descaso para com os direitos desses explorados sócios.

Triste é de se constatar que todas essas entidades invocam o permissivo do parágrafo único do art. 442 e a Lei n. 5764/71, das cooperativas

As entidades cooperativas que se propõem a intermediar a mão-de-obra alheia não têm respaldo legal para funcionarem, já que invadem cearas afetas a atividades já regulamentadas, como é o caso da terceirização da mão-de-obra.

Quanto as cooperativas de trabalho rural, constata-se uma peculiaridade: a enorme quantidade de associados que congregam. Existem casos em que chegam a arregimentar mais de 10 mil trabalhadores, sem que a entidade ainda tenha completado um ano de funcionamento! Como, então, atender a regra do item XI, do art. 4, da Lei n 5764/71 que, limitando o espaço de atuação da sociedade cooperativa, dispõe que : " a área de admissão de associado fique limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestações de serviços"? Pelo que se sabe, a estrutura física da maioria das entidades é absolutamente rudimentar, os seus "alojamentos" não oferecem a menor condição de moradia e higiene, os trabalhadores ficam expostos a situações subumanas, de total degradação, como se fossem escravos não declarados, de uma "instituição" que explora afrontosamente os direitos sociais e de trabalho mais básicos e elementares, sob o manto da denominação de "cooperativas de trabalho".

Alguns casos examinados, traduzem-se em verdadeiras aberrações. De acordo com o relato dos agentes de inspeção do trabalho, da DRT- MG, houve casos em que os dirigentes têm atividades diversas das que informam nas atas de assembléia de fundação: alguns comerciantes e outros egressos da própria clandestinidade de aliciamentos ( gatos ).

Trabalho rural e comércio são atividades que não se interagem de maneira a ensejar interesse cooperativista. Trata-se, na verdade, de um novo negócio, e rentável, ao que tudo indica!

Na grosseira forma de elaboração de suas normas, as entidades procuram cercar-se da máxima segurança jurídica, porém, toda ela contra o seu próprio quadro societário

Diz o parágrafo único do artigo 442 da CLT que : "Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela". Analisando de forma crítica, a quem diga que o citado parágrafo é uma nova forma de contratação trabalhista, uma relação informal, sem carteira de trabalho, sem registro, sem recolhimentos, enfim, com absoluta ausência de qualquer compromisso com a ordem jurídica vigente.

Ao mesmo tempo, o citado parágrafo não se aplica às entidades cooperativas que visam unicamente a merchandising de mão-de-obra, vez que o próprio objeto atenta contra a dignidade do trabalhador, e seus atos constitutivos e normas de funcionamento negam princípios básicos da atual CF, especialmente os tutelares do trabalho, violam dispositivos elementares de suporte do hipossuficiente, plasmados no ordenamento jurídico trabalhista.

Caracterizam-se, hoje, especialmente as cooperativas de trabalho rural, em um verdadeiro oportunismo visando à fraude, ainda que as custas da miséria alheia, bastando, para isso, observar-se o alto nível de analfabetismo ente os associados, presas fáceis para os predadores, nascendo verdadeiros bolsões de pobreza entre os trabalhadores que, na busca de um emprego, acabam se tornando escravos desses comerciantes

No que diz respeito a Lei n 5764/71, temos que esta condiciona a constituição das sociedades cooperativas, dentre outras, à prestação de serviços aos associados ( art 4º, não compreendendo aliciamento de trabalhadores braçais, sob enganosa denominação e falsos propósitos cooperativistas, colocando-os à margem de quaisquer das garantias constitucionais, erigidas como suporte mínimo assegurado a todo trabalhador)

Feita esta análise, longe de querer encerrar o tema, que é muito complexo, conclui-se que, como diversos outros institutos do direito, as cooperativas têm existido de duas formas absolutamente distintas: a ideal e a real. Assim, não podemos incidir no erro de pensar no modelo ideal como sendo a realidade de nossos trabalhadores, porque não o é..

Temos de tomar consciência que estamos, cotidianamente, diante de flagrantes desrespeitos aos direitos do trabalhador, quando tais cooperativas utilizam-se dos permissivos legais para burlar a lei. Parte delas estão abrigando verdadeiros escravos não declarados, e esta é, infelizmente, a nossa realidade, que temos de admitir e reconhecer, para só assim poder modificá-la.

Sobre a autora
Érika da Rocha von Sohsten

acadêmica de Direito na UNIPÊ, João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VON SOHSTEN, Érika Rocha. Cooperativas de trabalho: escravidão?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1192. Acesso em: 22 nov. 2024.

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