3 A CRISE DO ESTADO SOCIAL E O NASCIMENTO DA EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
Os entraves à efetivação do direito fundamental ao meio ambiente são similares à efetivação dos direitos fundamentais como um todo, especialmente dos direitos sociais, que dependem de política pública por parte do Poder Público. A respeito dos obstáculos à efetivação dos direitos fundamentais prestacionais, Érica Pessanha aponta dois como os principais: a imprecisão das normas e a escassez de recursos [38]. Observamos que essas duas causas de inefetividade também se aplicam ao direito ao meio ambiente equilibrado. A abstração ("imprecisão") das normas permite que, em diversos casos concretos, seja deixada à autoridade administrativa um amplo campo decisório para permitir, com ressalvas, ou proibir uma atividade ambientalmente impactante. Assim, por exemplo, ocorre em licenciamentos ambientais, em que, realizado o estudo prévio de impacto ambiental, com base nele pode tanto o órgão licenciador aprovar ou não o projeto proposto e expedir ou não as licenças ambientais requeridas. Isso ocorre porque não está expresso na legislação que tipo de atividade impactante deve ser proibido, mas somente quando deve ser exigido o EIA/RIMA e o próprio licenciamento. Com relação à escassez de recursos, ela também afeta a proteção ambiental, pois que esta depende, em muitos casos, de políticas públicas. É o caso, por exemplo, do tratamento de esgoto, da despoluição dos rios etc. Nessas situações, o Poder Público, inclusive por meio de defesa em ações civis públicas, alega a "reserva do possível" [39] como exceção de direito material para obstar a pretensão social presentada pelo Ministério Público.
Hoje, estamos numa situação de crise de efetividade dos direitos prestacionais como um todo. Como bem enfatiza Ingo Wolfgang Sarlet, a crise desses direitos fundamentais representa a crise do próprio Estado Social de Direito e também, ao seu entender, a crise da sociedade [40]. Essa crise, apesar de ser mais sentida em relação aos direitos sociais, alcança todos os direitos fundamentais, inclusive o direito ao meio ambiente equilibrado, e tem causas múltiplas. Vejamos a lição do constitucionalista da PUC/RS:
"Esta assim denominada crise dos direitos fundamentais, ao menos na sua feição atual, a despeito de ser aparentemente mais aguda no âmbito dos direitos sociais (em função da redução da capacidade prestacional do Estado, da flexibilização dos direitos trabalhistas, etc.), é, contudo, comum a todos os direitos fundamentais, de todas as espécies e ''gerações'', além de não poder ser atribuída, no que diz com suas causas imediatas, exclusivamente ao fenômeno da globalização econômica e ao avanço do ideário e da ''praxis'' neoliberal. Basta, neste contexto, apontar para o impacto da tecnologia sobre a intimidade dos indivíduos (de modo especial no âmbito da sociedade informatizada), sobre o meio ambiente, isto sem falar no desenvolvimento da ciência genética, experiências com reprodução humana, etc., demonstrando que até mesmo o progresso científico pode, em princípio, colocar em risco direitos fundamentais da pessoa humana" [41].
Ainda segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a crise de direitos fundamentais não diz respeito somente à sua efetividade, mas também a seu próprio reconhecimento [42].
A crise de ineficácia do Estado tem reflexo na crise de eficácia do Direito como um todo [43], que se manifesta ora na ausência de punição dos atos atentatórios a direitos, ora na ausência de efetivação de direitos prestacionais por parte do Estado. É ainda o entendimento de Arno Arnoldo Keller:
"Paralelamente à crise do Estado social, verifica-se a existência de uma crise do Direito porque os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de regulação, conquistados há mais de um século, não apresentam mais os meios adequados para solucionar os problemas internos dos Estados" [44].
No plano ambiental, a ausência de punição traduz-se na crise de impunidade dos delitos ambientais e a ausência de prestações por parte do Estado manifesta-se no abandono dos órgãos e dos programas ambientais que poderiam efetivar o direito fundamental difuso ao meio ambiente saudável. Demais disso, não se observam grandes incentivos aos particulares para que promovam atividades de proteção e restauração do meio ambiente, ou às empresas, para que desenvolvam atividades guiadas pelo senso de responsabilidade socioambiental.
No Brasil, talvez o mais grave problema ambiental em desenvolvimento, e que já ganhou notoriedade mundial, é o da devastação da Amazônia. Esse fenômeno catastrófico tem várias causas. Pensamos que as principais são:
a) Retirada irregular de madeira (sendo esta "esquentada" por documento de origem florestal – DOF – expedida para documentar madeira oriunda de projeto de manejo) que alimenta o mercado internacional ou o nacional do Centro-Sul do país;
b) Existência de diversos ramais clandestinos (pequenas estradas de terra que dão acesso às grandes rodovias) que servem ao escoamento do produto da extração ilegal de madeira e que ficam fora do âmbito de fiscalização da Polícia Rodoviária Federal e Estadual;
c) Expansão da pecuária na Amazônia Legal (muitas vezes, o ciclo de destruição começa com a retirada de madeira, desenvolve-se com a queimada da área explorada e termina com a criação dos pastos que alimentam o gado);
d) Expansão do cultivo da soja, que invade área verde da Amazônia;
e) Criação de assentamentos do INCRA na Amazônia;
f) Falta de assistência técnica para a utilização de áreas já degradadas por pequenos agricultores, que trabalham a terra em esquema de subsistência e que preferem queimar novas áreas florestais do que recuperar as já degradadas e nelas plantar;
g) Ausência de educação ambiental da população local, que ainda não foi conscientizada a respeito da importância da preservação ambiental.
Tomando por base o problema da Amazônia, observamos que as táticas de combate do Poder Público têm falhado. As multas administrativas emitidas pelo IBAMA são ineficazes, pois não conseguem impedir a repetição da prática ilícita e, em muitos casos, mal podem ser executadas. A persecução criminal também não tem dado bons frutos. Em verdade, boa parte do fluxo ilegal de madeira mal consegue ser localizada pela fiscalização, em razão do "esquentamento" (ou "lavagem") de madeira que nos referimos antes, e que é proporcionada pela existência de licenças válidas para a retirada regular de madeira na Amazônia, licenças estas que, mal fiscalizadas, servem para esconder a ilicitude de madeiras retiradas e transportadas ilegalmente, dificultando a ação da fiscalização e a inauguração da persecução criminal. E mesmo quando se consegue chegar a instaurar e instruir inquéritos de crimes ambientais, a pena destes é mínima e acaba proporcionando transação penal, suspensão condicional do processo ou substituição da pena privativa da liberdade. Por sua vez, o Poder Público não tem mostrado força suficiente para recuperar as áreas já degradadas, as quais têm dimensão territorial igual à soma da área de alguns países europeus. Medidas radicais, por sua vez, como a proibição de exploração da pecuária a partir de certo módulo territorial, ou a proibição de exportação ou comércio de madeira ou carne vermelha originária de algumas áreas da Amazônia, não são adotadas porque gerariam graves impactos à economia da região. Aqui, com muita intensidade, percebe-se claramente a crise do direito ambiental no Brasil, que não consegue se fazer efetivo.
A tributação extrafiscal ambiental pode salvar a Amazônia desse quadro funesto? Obviamente, sozinha, a tributação extrafiscal não resolve todos os males; mas ajuda. Decerto, algumas medidas fiscais podem ser tomadas, como, p. ex.: (a) o aumento da alíquota do ITR para as áreas exploradas pela pecuária bovina, pela produção de soja e pela extração de madeira na região da Amazônia (que desestimularia a exploração de novas áreas para essas atividades na região), ainda que a definição da Amazônia Legal venha a ser reduzida, para melhor retratar a realidade nacional; (b) a "tributação proibitiva" (veja conceito mais adiante) no novo ICMS, IVA-F, II e IE sobre o comércio interestadual ou internacional de madeira, soja ou carne bovina, que provenha da Amazônia Legal (o que faria com que a extração de madeira e a produção de carne vermelha seja prioritariamente destinada ao abastecimento do mercado consumidor da própria Região Amazônica, desestimulando a comercialização para o Centro-Sul do país e para o exterior, que são os grandes responsáveis pela pressão comercial contra a floresta); (c) imunidade ou isenção do ITR para terras rurais da Amazônia Legal que desenvolvam projetos extrativistas que sejam compatíveis com a responsabilidade socioambiental; (d) imunidade ou isenção de ICMS, IVA-F, II e IE sobre produtos derivados de exploração ecologicamente sustentável da floresta, como a exploração do látex e a colheita de produtos como o babaçu, o açaí e a castanha do Pará; (e) imunidade tributária sobre o fruto do trabalho de cooperativas que trabalhem a floresta de forma ambientalmente sustável (p. ex., que desenvolvam exclusivamente o extrativismo responsável).
Tomamos a Amazônia como exemplo talvez por ser a maior preocupação ambiental deste autor, mas os problemas ambientais no Brasil, obviamente, não se resumem a ela. Há diversos fatos econômicos e sociais que devem ser incentivados (como a reciclagem de materiais, a aquisição de bens de capital destinados ao tratamento de efluentes e do lixo industrial, o tratamento de esgotos pelos Municípios, a criação e a preservação de unidades de conservação) e diversos outros que precisam ser desincentivados (como a utilização de combustíveis fósseis, a emissão de gases tóxicos, a produção de lixo industrial e doméstico), sendo o meio mais natural e adequado de estímulo a tributação extrafiscal, como demonstraremos posteriormente.
3.2 O papel da extrafiscalidade no limiar da crise do Estado Social
No Estado liberal clássico, este busca, por meio da tributação, primordialmente, arrecadar recursos para o custeio de sua estrutura básica necessária à manutenção da ordem pública e das liberdades individuais [45]. Como sua missão é mais simples e menos dispendiosa, não se faz necessária grande arrecadação de tributos [46]. Estes, por sua vez, quando são exigidos, não o são funcionalmente; vale dizer, não se almeja qualquer propósito que não o fiscal, pois que não se pretende qualquer alteração do status quo (nem econômico, nem social) vigente. Nesse sentido, anota Antônio José da Costa:
"Não obstante essa afirmativa, outrora o comportamento ideal preconizado para o Estado era a ingerência mínima, limitando a arrecadar os recursos necessários ao Tesouro, sem intervenção na estrutura econômica. Neste caso, a moeda deveria ser neutra, o orçamento público equilibrado e às finanças era reservada a função meramente arrecadatória dos meios financeiros. É o que consta dos tratados do século XIX e meados do XX. Era a consagração das finanças públicas neutras, minimizadoras da influência da ação estatal na economia. Esse conceito, caracterizado durante longo tempo como uma atuação imobilista, com a evolução do pensamento transformou-se, obviamente" [47].
Essa é uma visão geral, grosso modo, da tributação no Estado liberal. Sem embargo disso, a rigor, a extrafiscalidade não é exclusividade do Estado pós-revolução industrial. Como bem lembra Francisco das Chagas Fernandes, já no século XIV as cidades de Veneza e Gênova utilizavam os tributos alfandegários como mecanismo de proteção das indústrias internas de vidros, cristais e vidrilhos contra a concorrência vinda de fora [48]. Porém, o fenômeno extrafiscal ganhou mesmo força com o agigantamento do Estado intervencionista, em que "o imposto deixou de ser apenas um meio destinado a cobrir as necessidades financeiras do Estado" [49]. Suas finanças, então, deixaram de ser finanças neutras para se tornar finanças funcionais, as quais estão intimamente relacionadas à função político-econômica e social do tributo [50].
Fruto da superação do Estado liberal, o Estado denominado intervencionista é taxado como aquele que exerce maior intervenção na economia e no âmbito social. Esse Estado intervencionista é identificado historicamente com o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State, também denominado de "Estado Social", "Estado Social de Direito", "Estado Social e Democrático de Direito" e "Estado-Providência" [51]). Neste, a tributação, além de se fazer mais excessiva, apresentando assim forte finalidade fiscal, de arrecadação de recursos para a cobertura dos gastos públicos cada vez mais crescentes do Estado, também ganharia contornos extrafiscais, consistentes no direcionamento da atividade econômica da iniciativa privada. Vale dizer: no Estado Social, ao mesmo tempo em que a fiscalidade ganha maiores dimensões, a extrafiscalidade acompanha seu ritmo de importância. É por isso que Francisco das Chagas Fernandes [52], bem como Flávio de Azambuja Berti [53], defendem que a extrafiscalidade ganha destaque com advento desse modelo de Estado.
Observamos como crença geral a identificação do "Estado Intervencionista" (Estado que intervém, em sentido amplo) com o "Estado Providência" (Estado que provê seus cidadãos de bens e serviços), sendo ambos um só modelo de Estado que se oporia ao Estado Liberal. É o que extraímos da lição de Francisco das Chagas Fernandes, quando este afirma que o "Estado liberal, embasado no Laissez-faire, laisser-passer cedeu lugar ao Estado intervencionista, o Estado providência" [54]. Em termos puramente lógicos, entretanto, enxergamos diferenças entre o Estado Interventor e o Estado Providência. Essa distinção não é bem notada por muitos em razão da coincidência histórica recente do Estado Providência com o Estado Intervencionista do período pós-segunda-guerra, denominado, como já dissemos, de Welfare State.
De fato, o Welfare State, superando o paradigma liberal, era mais "intervencionista" no que diz respeito à busca dos resultados econômicos e mais "providente" ("providência", ou ainda "provedor") no que diz respeito à efetivação dos direitos sociais (e, posteriormente, os difusos). Explicamos. Na busca dos objetivos e metas econômicas, o Estado aqui descrito, apesar de também intervir diretamente no mercado, por meio da criação de empresas estatais, concentrava maior parte de seu poder de atuação na intervenção econômica indireta, consistente na manipulação dos fatores de mercado. Na efetivação dos direitos sociais, porém, a atuação era mais direta, consistente na sua satisfação direta pelo Estado, salvo no caso dos direitos trabalhistas, em que o dever de prestação foi encarregado ao empregador. Por isso, dizemos que o Welfare State mostra-se como Estado Intervencionista no campo econômico e como Estado Providência no campo social.
Dessa maneira, a afirmação de que a extrafiscalidade é própria do Estado do Bem-Estar Social deve ser entendida de modo temperado, visto que, em verdade, o Estado Social clássico não lança mão da extrafiscalidade para a proteção dos direitos sociais. Estes ou são imputados diretamente aos particulares, por meio de regras de conduta (p. ex., por meio de leis trabalhistas), ou são garantidos direta e materialmente pelo Estado (p. ex., por meio da Seguridade Social). Não conceberam os idealizadores socialistas do Welfare State a extrafiscalidade aplicada à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. O modelo de efetivação desses direitos é claramente de prestação direta pelo Estado, e não de indução por parte deste, por entremeio da extrafiscalidade. Em dizer jurídico, enunciamos que não se concebeu uma "extrafiscalidade social", ou "socioambiental", mas tão-só uma "extrafiscalidade econômica", adjetivo este último que sequer se aloca para caracterizar a extrafiscalidade, a qual é entendida, na maioria das vezes em que é empregada, como única e econômica.
Como bem aponta Heinrich Scholler, o Estado Social é identificado com o "Estado Tributador", como aquele que utiliza a tributação para retirar recursos de alguns cidadãos e aplicá-los em ativos sociais de outros [55]. Esse modelo de Estado precisa ser revisto, não para que de "tributador" passe a ser "mínimo", mas sim para que outros instrumentos de efetivação de direitos prestacionais sejam utilizados, haja vista que, no Brasil, o "Estado Tributador" não tem se mostrado eficiente na missão de efetivar direitos sociais e difusos.
3.3 A extrafiscalidade socioambiental como instrumento de um novo modelo de Estado
O modelo clássico do Welfare State não se mostra mais adequado à realidade atual; ele falhou. Como bem salienta Cláudia de Rezende Machado de Araújo, a falência imputada ao Estado do Bem-Estar Social decorre do fato de este, por "tornar-se mais oneroso, facilita a corrupção, acabando por tornar-se ineficiente" [56]. Com isso, como cita a mesma autora, surge a necessidade de concepção de "um terceiro modelo de Estado, mais eficiente que os outros dois já conhecidos" [57].
Esse "terceiro modelo de Estado", na visão de muitos, como Ricardo Lobo Torres, seria o de um "Estado Subsidiário", o qual refletiria "um novo relacionamento entre o Estado e Sociedade, no qual a Sociedade tem a primazia na solução dos seus problemas, só devendo recorrer ao Estado de forma subsidiária" [58]. Esse novo modelo estatal deveria substituir o Estado do Bem-Estar Social, sem se identificar, porém, com o Estado "pós-moderno" e muito menos com o Estado neoliberal do Consenso de Washington. Colacionamos as considerações do estudioso da UERJ:
"O Estado Subsidiário é o Estado da Sociedade de Risco, assim como o Estado de Bem-estar Social foi o Estado da Sociedade Industrial, que entrou em crise pela voracidade na extração de recursos financeiros da sociedade para financiar as políticas desenvolvimentistas e o pleno emprego. Não se cuida de um Estado Pós-moderno, que passe a se conduzir pelos mecanismos da deslegalização, da desregulamentação ou da autoregulação, mas de um Estado Pós-positivista, ainda no âmbito da modernidade, que procura pautar as suas ações no princípio da transparência, para superar os riscos sociais" [59].
Daniel Sarmento também se refere ao "Estado Subsidiário" como substituto evolutivo do Welfare State, identificado a uma noção ainda incipiente de "Estado Pós-Social". É sua lição:
"Na verdade, mesmo com estas mudanças, o modelo normativo do Estado brasileiro plasmado pela Constituição continua sendo o de um Estado interventor, preocupado com a justiça social e com a igualdade substantiva, que, se não despreza o mercado, também não o reverencia com fervor, como desejariam os adeptos do credo neoliberal. Sem embargo, não só no Brasil, mas em outros países, já se desenha um modelo distinto de Estado, que se não pode ser rotulado de neoliberal, porque não se ausenta da esfera econômico-social, já recepciona os traços deste novo paradigma, em construção a partir da crise do Welfare State, que, à falta de nome melhor, poderíamos chamar de pós-social.
Trata-se de um Estado subsidiário, que se restitui à iniciativa privada o exercício de atividades econômicas às quais vinha se dedicando, através de privatizações e reengenharias múltiplas. De um Estado que também vai buscando parcerias com a iniciativa privada e com o terceiro setor, para a prestação de serviços públicos e desempenho de atividades de interesse coletivo, sempre sob sua supervisão e fiscalização. É um Estado que não apenas se retrai, mas também modifica a sua forma de atuação, e passa a empregar técnicas de administração consensual. Ao invés de agir coercitivamente, ele tenta induzir os atores privados, através de sanções premiais ou outros mecanismos, para que adotem os comportamentos que ele deseja. As normas jurídicas que este Estado produz são muitas vezes negociadas em verdadeiras mesas-redondas, e o direito se torna mais flexível, sobretudo para os que detêm poder social" [60].
Essa "terceira via" de Estado também é anotada por Arno Arnoldo Keller. São suas palavras:
"A denominada ''terceira via'', objeto de debate em muitos países sobre o futuro dos princípios social-democráticos, haja vista a dissolução do consenso do Welfare que dominou os países industrializados até o final da década de setenta e que, no Brasil, não chegou a se implementar em virtude das razões já examinadas, sugere que a sociedade civil aja em parceria com o Estado. A reorganização da comunidade, desde os níveis mais baixos, em bairros, em pequenas cidades, até as maiores, sem fronteiras entre sociedade e Estado, cria um movimento de solidariedade capaz de envolver a todos" [61].
Como demonstra Keller, a redefinição do Estado passa necessariamente pelo reexame dos papéis do Estado e da sociedade. Nosso único reparo é o de que, por "sociedade civil", deve-se entender também os agentes econômicos, os quais deverão começar a assumir responsabilidades que no Estado Social eram atribuídas propriamente ao Poder Público.
Esse novo modelo de Estado, a que corresponde uma nova espécie de sociedade, também é notado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que avalia o impacto dessas transformações no Direito Administrativo brasileiro. Segundo o referido administrativista, a Era das Comunicações, marcada pela elevação dos índices de informação da população, está relacionada com a "Sociedade Participativa", em que os agentes da sociedade passariam a participar de modo mais ativo nos negócios públicos e colaborar no alcance dos fins considerados tradicionalmente como titularizados, com exclusividade, pelo Estado. Para regrar essa nova espécie de sociedade, nessa nova "era", seria adequada a criação de um "Estado Subsidiário", o qual buscaria a efetivação dos interesses sociais e públicos em atuação conjunta com os demais atores sociais [62]. Segundo o referido autor, o Estado Subsidiário será "provavelmente um modelo dominante de organização política no próximo século" [63] (rectius: neste século XXI).
A realidade desse Estado Subsidiário já se pode sentir no Brasil por meio de reformas administrativas que buscaram engajar parcerias entre o Poder Público e o setor privado. É o que ocorreu com a criação das organizações sociais, que tem como objetivo retirar serviços de interesse social da execução do Estado para serem prestados por entidades civis, com a supervisão e o estímulo do Poder Público, e com a criação das organizações da sociedade civil de interesse público – as OSCIP''s –, que tem como meta aproximar ao Estado estas organizações que promovem serviços de utilidade coletiva. O mesmo se pode dizer das parcerias público-privadas, que correm nesse exato fluxo. Sintetizando todas essas tendências que já se sente no direito administrativo positivo brasileiro, Moreira Neto apresenta-nos algumas características do novo modelo de Administração Pública [64]:
a) Colaboração (entre entes da sociedade e o Estado);
b) Cooperação (entre entes estatais diversos);
c) Economicidade (redução de custos para o Estado e a sociedade);
d) Agilidade (simplificação da máquina administrativa);
e) Publicização (incremento da máquina reguladora do Estado);
f) Modernização (renovação das modalidades de prestação de serviços públicos);
g) Generalidade (atendimento de demandas reprimidas sociais);
h) Subsidiariedade (racionalização da distribuição de competências estatais).
Na Alemanha, Heinrich Scholler narra-nos que, desde o início da presente década, fala-se em "o novo Estado Social", sendo este, inclusive, o título de um documento eleitoral elaborado em 2002 pela Comissão de Programa da União Democrática Cristã [65]. O jurista alemão não menciona o "Estado Subsidiário" que descrevemos em parágrafos anteriores. Em vez disso, refere-se a um Estado firmado em "economia social de mercado", o qual, embora ainda preocupado com valores sociais, substituiria o modelo de planificação da economia e seria guiado por concepções do ordoliberalismo [66]. Entre as principais diretrizes da economia social de mercado, de acordo ainda com Scholler, estaria (a) a fusão dos modelos de administração privada e de administração pública, em que se adota a mentalidade do primeiro para se pregar um "Estado enxuto"; (b) a desregulamentação das relações econômicas; (c) a privatização de empresas estatais; (d) a cooperação constante entre os setores públicos e privados [67].
Ao Brasil, porém, cremos que não se deve importar sem reparos o modelo do "Estado Subsidiário" (ou a "economia social de mercado"), em substituição ao "Estado-Providência" (Estado Social). Este não deve ser abandonado totalmente, mas sim reformulado. É que, aqui, o problema da ineficiência desse modelo estatal não condiz somente com o excesso de gastos na execução de políticas sociais. Mais do que isso, essa ineficiência determinou a própria ausência de efetivação de direitos sociais, econômicos, culturais e difusos em geral, os quais não chegaram a ser concretizados por meio da ação material do Estado. O bem-estar nem chegou a ser plenamente efetivado. Aqui, o "Estado-Providência" está falhando em sua missão de prover a população desses direitos sociais e difusos, os quais não são alcançados pela atuação exclusiva do Estado. A falha desse modelo no Brasil, bem como em outros países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento que importaram o modelo do Welfare State, impede que a crítica a sua ineficiência seja feita, primeiramente, em decorrência do excesso de gastos com as políticas sociais. Em momento lógico anterior a essa crítica, o que se censura é a própria ausência de efetividade dessas políticas, que não conseguem concretizar os direitos constitucionais prestacionais prometidos pela Carta Política. Em termos simples: o Estado Social, em países como o Brasil, não é capaz de, por ato próprio seu, efetivar plenamente os direitos sociais e difusos da população. Para enfim alcançar esses objetivos, deve a atividade do Estado ser complementada pela atividade do setor privado, cabendo àquele estimular as atividades positivas deste.
Da constatação acima feita, não se deve concluir, também no campo de efetivação de direitos sociais, econômicos, culturais e difusos, que se deva abandonar o "Estado Providência", consistente na realização direta e material de atividades de cunho social, para que seja substituído pelo "Estado Intervencionista", que realiza intervenções indiretas, normativas, em vez de diretas. De modo nenhum. Em vez disso, o que se observa é que os meios de prestação direta dos direitos sociais pelo Estado devem ser complementados por outros meios de intervenção estatal indireta na garantia de direitos sociais. Entre esses meios, deve estar a tributação, por ser instrumento inigualável de direcionamento dos agentes econômicos. Essa tributação dirigida, extrafiscal, não deve mais se limitar a escopos econômicos, como antes. Deve, principalmente, destinar-se a fins sociais, em sentido amplo.
Estamos certos de que a adoção de modelo similar ao do Estado Subsidiário, ou Pós-Social, no Brasil, não deve ocorrer de forma idêntica ao proposto em nações desenvolvidas. Aqui, o papel do Estado enquanto provedor direto de bens e serviços à coletividade ainda se faz necessário. Por isso, o foco da reformulação do modelo estatal deve estar mais no chamamento do terceiro setor e do setor produtivo para o compartilhamento de responsabilidades hoje exclusivas do Estado do que na extinção de deveres estatais. A transformação paradigmática deve consistir na maior complementação da atividade do Estado pela sociedade civil, suprindo esta as falhas daquele, não o inverso. O que propomos, afinal, é um Estado Social Cooperativo, ou Estado Social Participativo, mais do que subsidiário.
Nesse novo modelo de Estado, este deve continuar muito influente na sociedade e no mercado, porém, de modo mais indireto do que direto, de forma mais supervisora e normativa do que provedora e interventiva materialmente [68].
Voltando nossa atenção ao Direito Tributário, observamos que a concepção de um Estado Participativo permite a utilização da tributação para uma finalidade que pouco foi utilizada na História: a efetivação de direitos fundamentais, por meio da indução dos agentes privados. Até hoje, como já mostramos, a cobrança de tributos somente poderia ser entendida como integrada à missão de efetivação de direitos sociais e difusos na perspectiva de que a receita derivada da arrecadação de tributos seria destinada à satisfação de gastos públicos com escopos sociais. Hoje, um novo horizonte se abre, permitindo que a tributação, para além dessa função fiscal, permita ainda influir no comportamento dos agentes privados e induzi-los a realizar práticas plenamente preenchidas de responsabilidade socioambiental.
Para o manejo da tributação com tal propósito, é preciso redefinir a compreensão tradicional da extrafiscalidade, a qual não mais pode estar limitada a finalidades econômicas. Não que estas devam ser abandonadas. Em verdade, ao lado dos escopos econômicos devem surgir outros, entre os quais, a defesa do meio ambiente.
Para uma compreensão global das finalidades que podem ser alcançadas por meio da tributação extrafiscal, citamos a exemplificação formulada por Flávio de Azambuja Berti:
"Assim, sempre que interesses da comunidade como um todo estejam sob discussão, os interesses particulares deverão ceder espaço a fim de que os primeiros sejam preservados e com isto a segurança da sociedade como um todo seja resguardada. Assim, por exemplo, o combate ao desemprego ou a preservação do nível de emprego, a utilização racional da propriedade a fim de que a mesma cumpra com sua função social, a preservação do meio ambiente e de condições fitosanitárias mínimas para a sobrevivência do homem, a preservação da saúde das populações urbanas e rural, a segurança pública, o desenvolvimento da indústria, os interesses individuais, coletivos e difusos dos consumidores, o aumento do saldo da balança comercial no comércio exterior, o estímulo ou desestímulo às importações, o exercício do poder de polícia sobre o mercado financeiro, o monitoramento e controle do câmbio das operações de grandes investidores etc.
Todos esses objetivos, distintos do simples escopo arrecadatório consubstanciado pela obtenção desenfreada de recursos públicos para financiar grandes obras e investimentos do Estado, podem ser alcançados ou, ao menos, facilitados e instrumentalizados mediante a utilização racional dos tributos, particularmente dos impostos, cuja receita não está vinculada à consagrada classificação de Geraldo Ataliba nos termos expostos antes" [69].
Devemos também observar que a tributação extrafiscal ambiental está em plena sintonia com o novo modelo de Estado que vem se firmando aqui e alhures, pois que se compatibiliza com o ideal de consensualidade, consectário da participação da sociedade na coisa pública [70]. Explicamos. No modelo tradicional de Estado Social, quando uma atividade contrariasse o interesse do Estado, este, simplesmente, proibia-a, sem dar margem para que o agente social ou econômico pudesse, licitamente, adotar conduta contrária. Este modelo, como vimos, faliu pela inefetividade (pela impunidade, inclusive). Assim, no novo modelo, o Estado, além de emitir normas penais, que devem ser reservadas às agressões mais intensas aos bens jurídicos, passa a induzir comportamentos, sinalizando contrariamente ao ato socialmente indesejado, por meio de tributação proibitiva, e positivamente ao ato socialmente desejável, por meio da tributação promocional. Dessarte, ao agente passa a ser dada a liberdade de conformar sua ação, acolhendo a sinalização do Estado ou suportando a carga tributária exasperada, da qual decorreria a diminuição de sua margem de lucros ou de renda, ou mesmo a própria inviabilidade econômica da empresa, restando esta ameaçada pela concorrência das empresas que se orientam pelas políticas do Estado. É o que também entende Tupiassu, para quem "a extrafiscalidade é uma forma de tributação que permite a valorização da liberdade do contribuinte, que deve optar por um agravamento da carga tributária, ou alteração da conduta socialmente indesejada" [71].
Cremos que a tributação extrafiscal socioambientalmente dirigida é medida adequada para complementar os mecanismos tradicionais do Estado Social de efetivação dos direitos fundamentais sociais e difusos; aqui, em especial, o direito ao meio ambiente. O Estado-Providência falhou em sua missão e deve rever seus instrumentos. Como nova estratégia de efetivação, a tributação extrafiscal tem como vantagem a influência que exerce indiscutivelmente sobre as decisões e as atividades dos agentes de mercado. Sem dúvida, a partir do momento em que o tributo faz-se presente na realidade econômica e passa a ser reconhecido pelo empreendedor como custo econômico, a finalidade social prevista na norma jurídica deixa de ser mera "lei de Direito" para ser "lei de mercado", a qual, como já se pode descobrir, é inescapável.