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Advocacia pública municipal e o princípio da simetria

Agenda 08/12/2008 às 00:00

Resumo: A grande presença de cargos comissionados na estrutura dos entes federados gera constantes e reiteradas discussões. O tema se torna ainda mais acalorado quando nos focamos nas administrações municipais e, principalmente, na análise das estruturas jurídicas dos municípios. Apesar da predileção constitucional pelo concurso público, a ausência de uma abordagem especifica da Constituição Federal acerca da carreira jurídica municipal fez surgir uma grande gama de cargos comissionados nesses setores, principalmente no âmbito municipal. Contudo, por meio de uma análise principiológica e constitucional, percebe-se que a estruturação das carreiras jurídicas municipais deve efetivar-se de forma simétrica às carreiras jurídicas da união e dos estados federados, sob pena, ao adotar-se caminho diverso, de flagrante ofensa aos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade, eficiência, isonomia e simetria.

Palavras-chave: Município. Constituição. Simetria.


1. INTRODUÇÃO

É comum, em grande parcela dos municípios brasileiros, que os cargos pertencentes à advocacia pública municipal sejam ocupados por servidores não concursados e ocupantes de cargos de confiança ou comissionados.

Esse quadro, típico e usual, é revestido de questionável legalidade e não se compatibilizaria com inúmeros princípios regentes da atividade administrativa e da Constituição Federal.

Mister se faz, portanto, um mergulhar no estudo e análise do tema, principalmente sob a ótica administrativa e constitucional, para que se possam extrair conclusões e soluções jurídicas para esse quadro fático, existente em inúmeras prefeituras brasileiras.


2. DA ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A advocacia pública municipal, ao contrário das advocacias públicas da União e dos estados membros, não foi contemplada com um tratamento constitucional, portanto, sua estruturação ficou a cargo dos municípios.

Essa estruturação, apesar da ausência de dispositivo expresso da Constituição Federal, não é dotada de total e irrestrita liberdade, mas deverá ser realizada atendendo adequadamente aos princípios e determinações constitucionais.

2.1. Princípios regentes da atividade administrativa

A construção dos quadros da administração pública deve, obrigatoriamente, obedecer ao que prescreve o art. 37, caput, da Constituição Federal, que elenca como princípios basilares da administração a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.

Acerca do princípio da impessoalidade Celso Antônio Bandeira de Melo leciona o seguinte:

"Nele se traduz a idéia de que Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O Princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia (...).

No texto constitucional há, ainda algumas referências a aplicações concretas deste princípio, como ocorre no art. 37, II, ao exigir que o ingresso em cargo, função ou emprego público depende de concurso público, exatamente para que todos possam disputar-lhes o acesso em plena igualdade."1

O principio da moralidade, nas brilhantes palavras de Hely Lopes Meireles:

A moralidade administrativa constitui hoje em dia, pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública (Const. Rep., art. 37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como "o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração". Desenvolvendo a sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de direito e de moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos – non omne quod licet honestum est. A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para a sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve, e a finalidade de sua ação: o bem comum.2

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Trilhando o raciocínio principiológico constitucional, com base nos princípios da moralidade e da impessoalidade, estaria afastada a possibilidade de criação de estruturas administrativas, principalmente na carreira jurídica, que não oportunizassem o acesso aos cargos públicos de forma isonômica e moral.

A carreira da advocacia pública municipal é composta por cargos de natureza perene e que objetivam a defesa do interesse público municipal em juízo ou fora dele, portanto, ao se permitir que seus cargos sejam ocupados por outra forma que não o concurso público, estará se criando uma estrutura que afronta os princípios constitucionais regentes da administração.

2.2. Princípio da simetria e a lei orgânica municipal

Muitos municípios, objetivando manter esse quadro de evidente ilegalidade, utilizam-se da acrobacia jurídica de afirmar que, como não houve regulamentação expressa da Constituição Federal a respeito da advocacia pública municipal, o ente político municipal poderia estruturar a carreira de qualquer forma, mesmo que em assimetria ao texto constitucional.

Sahid Maluf, em sua obra Teoria geral do Estado, afirma:

"Tornou-se a federação brasileira, cada vez mais, uma federação orgânica, de poderes sobrepostos, na qual os Estados-membros devem organizar-se à imagem e semelhança da União; suas constituições particulares devem espelhar a Constituição Federal, inclusive nos seus detalhes de ordem secundária, e suas leis acabaram subordinadas, praticamente, ao princípio da hierarquia."3

Os professores Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior ensinam:

"O princípio da simetria, segundo consolidada formulação jurisprudencial, determina que os princípios magnos e os padrões estruturantes do Estado, segundo a disciplina da Constituição Federal, sejam tanto quanto possível objeto de reprodução nos textos das constituições estaduais".

Esse princípio, de relevante importância em nossa federação, estabelece que o ente da federação deve organizar-se de forma harmônica e compatível ao texto constitucional, reproduzindo, se necessário, os princípios e diretrizes trazidas na Lei Maior, em razão de sua supremacia e superioridade hierárquica.

O princípio da simetria é um norteador dos entes federados na elaboração de suas Cartas ou Leis Orgânicas, deste modo, as mesmas limitações impostas à União devem ser estabelecidas aos Estados e Municípios.

No caso dos municípios, esse princípio é trazido no art. 29. da Constituição Federal, que reza, in verbis, o seguinte:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

A Constituição, ao conceder a autonomia administrativa-política aos municípios, limitou esse poder à obediência das diretrizes constitucionalmente estabelecidas, evidenciando a necessidade de se obedecer ao princípio da simetria na elaboração das Leis Orgânicas Municipais.

A lei orgânica municipal deve, portanto, ser construída à imagem e semelhança da Carta Magna, não devendo, em hipótese alguma, se distanciar das diretrizes nela estabelecidas, sob pena de tornar-se flagrantemente inconstitucional.


3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA ADVOCACIA PÚBLICA

No tocante a advocacia pública o legislador constituinte estabeleceu as diretrizes no art.131 do texto constitucional, determinando o seguinte:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§ 1º A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

§ 2º O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.

§ 3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.

(...)

Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias.

Em análise perfunctória da Constituição Federal, verifica-se que as carreiras da advocacia pública da União e dos Estados Federados estruturam-se da seguinte forma: procuradores e advogados gerais, cargos destinados ao provimento em comissão em virtude de sua natureza política, sendo que os demais cargos, em razão da natureza perene e administrativa, são providos por meio de concurso público de provas e títulos, portanto, cargos efetivos e de carreira.

O Município não pode, em total contra-senso ao que determina a Constituição Federal, criar sua advocacia pública essencialmente com servidores comissionados, pois estaria se afastando do modelo constitucionalmente desenhado e adotando um modelo assimétrico e inconstitucional.

O modelo a ser seguido é o constitucional, que impõe o ingresso na carreira da advocacia pública por meio de concurso público de provas e títulos e que deve ser reprisado nas Leis Orgânicas municipais, em atenção ao princípio da simetria e ao regime principiológico da administração pública.

A Constituição Federal estabeleceu como regra o concurso público, sendo que, além da prescrição específica contida no art. 131. do Texto Constitucional, a predileção pelo concurso público é revestida de proteção também no art. 37. da mesma Carta.

Contudo, é importante esclarecer que o cargo de procurador geral ou advogado geral do município, também em obediência ao princípio da simetria, deverá ser ocupado obrigatoriamente por livre nomeação e exoneração.

É cediço que dentro da seara administrativa a existência de cargos em comissão é necessária, contudo, é imprescindível que a criação destes cargos seja efetuada em compatibilidade com o que prescreve a Constituição Federal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se fixado na apreciação do princípio da simetria, no que tange à advocacia pública, da seguinte forma:

"O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos." (ADI 881-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-8-93, DJ de 25-4-97)

Ainda no tocante ao princípio da simetria, urge trazer à baila julgado da nossa Corte Suprema:

"O poder constituinte outorgado aos Estados-Membros sofre as limitações jurídicas impostas pela Constituição da República. Os Estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem (CF, art. 25), submetendo-se, no entanto, quanto ao exercício dessa prerrogativa institucional (essencialmente limitada em sua extensão), aos condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal, pois é nessa que reside o núcleo de emanação (e de restrição) que informa e dá substância ao poder constituinte decorrente que a Lei Fundamental da República confere a essas unidades regionais da Federação." (ADI 507, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-2-96, DJ de 8-8-03)

O princípio constitucional da simetria, associado aos princípios constitucionais da isonomia, moralidade, impessoalidade e eficiência, impede que o legislador municipal atue de forma totalmente livre, restando evidente a necessidade da estruturação da advocacia pública municipal obedecer aos referidos princípios e ao arquétipo constitucional da advocacia pública, delineado nos artigos 131 e 132 da Carta da República.


4. CONCLUSÃO

Os princípios constitucionais que regem a atividade administrativa, tais como moralidade, impessoalidade e eficiência, se associados a outros princípios constitucionais como o da igualdade e o da simetria, são óbices intransponíveis à estruturação da carreira jurídica municipal apenas com cargos comissionados ou mesmo com a maior parte dos cargos ocupados por servidores não efetivos.

Logo, é inconcebível que o Município, à revelia do que prescreve a Constituição Federal, estruture seu quadro de carreira jurídica sem que haja concurso público, pois estaria estabelecendo regra contrária ao que prescreve a Constituição e em evidente assimetria.

Assim sendo, é intolerável a existência de cargos da advocacia pública municipal, com exceção do cargo de Procurador ou Advogado Geral, a serem providos por meio que não seja o concurso público, pois, em razão dos comandos constitucionais, não há possibilidade da estruturação da advocacia pública municipal de forma assimétrica ao texto constitucional e em arrepio ao regime principiológico da administração pública.


Referências

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional . 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.

MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 1999.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8. ed., São Paulo:Malheiros Editora, 1996.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 15. ed., São Paulo:Revista dos Tribunais, 1990.


Notas

1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8. ed., São Paulo:Malheiros Editora, 1996, p. 68.

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 15. ed., São Paulo:Revista dos Tribunais, 1990, p. 79-80.

3 MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 170.

Sobre o autor
Valério César Milani e Silva

Advogado, Procurador do Município de Cacoal - RO, formado pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR, pós-graduando em direito tributário pela Universidade Gama Filho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Valério César Milani. Advocacia pública municipal e o princípio da simetria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1986, 8 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12053. Acesso em: 24 nov. 2024.

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