8 CONCLUSÃO
Para o entendimento que se buscou defender, tomou-se como ponto de partida o art. 1.641, II, do Código Civil, que trata do regime de separação de bens obrigatório aos maiores de 60 (sessenta) anos e onde está alojada a essência da injustiça normativa que se pretendeu demonstrar como instrumento de promoção de desigualdades, vez que decorrente de distinção discriminatória [100].
Com esse intuito, com a predisposição de conferir suporte à abordagem do raciocínio que se propôs construir com a transcrição de trecho de decisão jurisprudencial, tecendo-se em seguida comentários pertinentes, quando se destacou o entendimento da sua relatora, a Desembargadora Maria Berenice Dias, sobre a "afronta ao atual sistema jurídico que tutela a dignidade da pessoa humana como cânone maior da Constituição Federal, revelando-se de todo descabida a presunção de incapacidade por implemento de idade" [101].
E, justamente por mostrar-se plenamente aplicável e sincronizado com o entendimento que se demonstrou – daí a sua marcante relevância, pela visão humana da dignidade que merece ter o idoso respeitada –, não se aperceberia facilmente, senão pela data, que estaria esse decisum a se referir aos preceitos instituídos pelo revogado Código Civil de 1916.
Diante disso, salientou-se a necessidade que se cuidou de sanar, quando se traçou um paralelo entre o diploma Civil anterior e o atual. E como ilustração à corrente jurídica que não vê o caráter discriminatório dessa restrição etária à livre escolha da opção de regime de bens a ser adotado pelo sexagenário – contrariando, portanto, o cerne fundamentativo da jurisprudência transcrita, exarada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, da relatoria da Desembargadora Maria Berenice Dias – também se acrescentou ao estudo algumas breves linhas onde se pretendeu enfatizar ser flagrante a divergência do pensamento doutrinário, utilizando-se como referência as palavras de Sílvio de Salvo Venosa [102] e, como entendimento contraposto, o pensamento de Silvio Rodrigues [103].
Objetivando costurar um reforço conceitual para robustecer a demonstração quanto ao aspecto discriminatório dessa restrição etária em estudo, transcreveu-se e comentou-se sobre outra interessante jurisprudência do STJ, mais atual, e que deu ênfase à discriminação e à questão da "inconstitucionalidade da proibição da escolha do regime de bens, pois que, refere-se a desigualdade de direitos" [104].
Iniciou-se, então, a partir desse ponto o paralelo comparativo que se buscou estabelecer entre a restrição que o Código Civil instituiu ao vedar o direito de escolha do regime de bens que o sexagenário poderia adotar ao se casar, frente a inexistência de vedações limitativas à sua liberdade para os demais atos da vida civil, a exemplo de votar, trabalhar, doar, testar e adotar.
Nessa trilha, abordou-se acerca da liberdade de trabalhar, oferecendo-se à análise a matéria intitulada "TRF assegura a piloto sexagenário o direito de pilotar vôos domésticos e de co-pilotar vôos internacionais" como exemplo de que "o limite de idade não pode ser obstáculo à presunção de incapacidade por implemento de idade" [105].
Comentou-se sobre os arts. 538, 544 e 549 (liberdade para doar) e 1.789, do Código Civil (liberdade para testar), assim como dispositivos legais que os complementem e/ou com eles se combinem; e, por fim, tratou-se, em uma especial abordagem, acerca da questão da inexistência de limite de idade para adoção, recorrendo-se aos arts. 1.618 e seguintes, do Código Civil, combinados com outros dispositivos do mesmo Código, da Constituição Federal e do ECA [106].
Como a lei só estabelece restrição quanto a idade mínima que deve haver entre o adotante e o adotado, utilizou-se do teor da matéria denominada "Supremo julga primeiro caso envolvendo Direito de Família posterior a CF/88" para ilustrar uma forma legal de utilização dessa brecha normativa como argumento que serviu de suporte para abordagem que se demonstrou, ao final do item 7.1.4 retro: a possibilidade real de ser utilizada a própria lei para validar a decisão de um sexagenário que adote pessoa apenas 16 (dezesseis) anos mais jovem e, dentro da legalidade da norma, transformá-la em seu descendente civil e, portanto, seu herdeiro legítimo e com prioridade sucessória sobre todos os outros, concorrendo apenas com os outros filhos eventualmente existentes [107].
E, por fim, quando da aproximação do arremate do termo conclusivo do presente estudo, é de se esperar que se tenha conseguido aperfeiçoar a demonstração do caráter discriminatório da proibição quanto a escolha do regime de bens no casamento dos maiores de 60 (sessenta) anos.
Para tanto, vale trazer à evidência ainda algumas breves considerações que, sem pretender afastamento do aspecto jurídico que não se pode deixar de conferir ao presente estudo, clamará pela aproximação de, pelo menos, uma das muitas ciências que desde sempre impediram o equívoco de se considerar o Direito uma ciência pura, isenta da interferência de outras ciências: a sociologia – aliás, há de se reconhecer que "um homem só é só um ser; mas vários homens em convívio representam um ser social, que com-vive com outros" [108] e a esse ser social homem estão enraizadas ciências que existem em razão da existência humana.
E se sob o foco do Direito não se consegue entender, imagine-se a dificuldade da sociologia para aceitar um homem só, posto que o vê nascido para conviver com outros homens, outros seres, com o que se sabe do consenso de que sem esse convívio, a grosso modo, haveria o risco de comprometer a sociedade.
Bastaria, para materializar a construção dessa figura ilustrativa, que se imaginasse uma sociedade com características especiais, composta quase que apenas por homens em idade mais avançada e mulheres bem mais jovens que eles – dentre o universo dos solteiros ou viúvos; um querendo a companhia do outro.
E antes que se acuse essa figura ilustrativa de irreal, basta que se aguce a lembrança para as incontáveis cidadezinhas, vilas, povoados do recôndito brasileiro, onde os homens jovens vão embora para os grandes centros, deixando para trás as mulheres, as crianças e os idosos.
A vida dessas pessoas estaria fadada a evaporar-se ao calor do sol? As comunidades passariam a inexistir, ante a vedação imposta pelo Código Civil brasileiro de que esses indivíduos estariam proibidos de constituir novas células familiares? E tudo isso apenas porque os homens que têm permissão do Estado para casar não mais vivem naquela comunidade?
Novamente, antes que se imagine necessitar chamar a atenção para o que, à primeira vista, possa ter soado como um equívoco, vale informar que tem-se consciência do fato de que o Código Civil não impede, pura e simplesmente, o casamento de velho com jovem; apenas veda que escolham qualquer regime de bens. O que vem a ser basicamente a mesma coisa, quando essa restrição vem querer ditar regras que vão de encontro aos conceitos culturais de comunidades como essa que se sabe existir em abundância.
Para pessoas assim – que só conhecem a cultura dos seus pais, avós, e dos pais e avós de seus avós, e da qual se orgulham por preservar, conservando o que entendem ser a sua história – a essência do conceito do regime dotal (este, na forma adotada pelo brasileiro comum), responsável pelo instituto do dote pré-nupcial, jamais será revogada [109].
Dispor de parte do que têm, antes do casamento, como sinal de suas intenções e das posses que com sua escolhida pretende compartilhar, é cultura popular e, como se sabe, direito consuetudinário não se revoga. Mesmo com a revogação legal do instituto, permanece a cultura. E quem a pratica sequer imagina que seu ato de doar antes das núpcias é ignorado pelo positivismo normativo.
Pessoas como essas, constroem e cultivam o orgulho de ter um dote para oferecer, em contrapartida à celebração de um vínculo conjugal; muitas vezes em razão das quase imensuráveis distâncias de suas casas aos grandes centros, onde têm-se acesso às informações que lhes instruiriam sobre seus direitos, somente dirigem-se ao Fórum – quando se dirigem – no dia do casamento, para estabelecem seu vínculo matrimonial na presença dos parentes, amigos e vizinhos que testemunham a sua intenção de partilhar com sua nova companheira o que conseguiu construir.
Em geral, indivíduos como esse homem nem sabem ler e também não entendem aquilo que ou tentaram lhe explicar ou até mesmo desistiram, pois sabem que eles não entenderiam jamais essa história de separação obrigatória de bens. E imagine se alguém iria lhe impedir de mostrar para sua nova mulher que ele tem condições de dividir com ela o patrimônio que conseguiu amealhar?
E não haverá quem consiga lhe convencer de que aquela cerimônia não foi o bastante para assegurar o cumprimento de sua vontade e da palavra que restou empenhada perante todos os que lhe devem respeito e consideração e sobre quem não pode passar o constrangimento de ver-se desmentido no seu compromisso de homem de uma palavra só.
Mas, e na hora que ele ou sua cônjuge precisarem argüir, em juízo, os direitos patrimoniais, sucessórios, que acreditaram ter sido sacramentado com a simples presença de familiares, amigos e vizinhos? Infelizmente, nada vale, à luz do Código Civil que veda qualquer outro regime de bens para o sexagenário, que não seja o da separação obrigatória.
Haveria de ser uma lei a fazer-lhe passar esse vexame, em desconsideração aos seus cabelos brancos? Justo uma lei, que pensou existir apenas para proteger e assegurar direitos? E imagine sua indignação, se soubesse que essa lei, representada pelo Código Civil, incorreu em afronta à própria Constituição, pelo que lhe acenaria com imposição de vedação inconstitucional?
Tem-se a seguinte situação: simplesmente porque se alcançou a idade de 60 (sessenta) anos, é proibido escolher o regime de bens que irá reger os laços patrimoniais e sucessórios da relação. Para o Código Civil, tanto faz se o indivíduo é incapaz ou se tem 60 (sessenta) anos; pois para ambos é vedada a escolha do regime de bens que irá adotar ao se casar. E isso é inaceitável; é inadmissível; é ilegal; é inconstitucional.
O fato de simplesmente ter 20 (vinte), 30 (trinta) ou 60 (sessenta) anos; de ser homem ou mulher; branco, negro, índio ou de qualquer outra cor, raça ou origem; rico ou pobre; civil ou militar; culto, ignorante ou portador de formação mental incompleta; saudável ou que apresente alguma doença, deficiência ou má formação física; e qualquer que seja seu estado civil, sua profissão, religião, credo, crença ou pensamento, nada disso pode ser tido como motivo ou argumento para que se veja um indivíduo como desigual, pois há que se "tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam" [110], mas não privá-los de direitos que aos demais permanecem intocáveis.
É certo que o idoso, no alto de sua vivência, de sua experiência de vida, portanto, muito mais que as pessoas mais jovens, possui maturidade e experiência suficientes para saber discernir e priorizar o que sente, o que quer e o que precisa. Evidente que tanto é capaz de instintivamente buscar companhia quando se sente sozinho, como o é de sentir afeição, carinho ou uma das muitas formas de amor.
Assim, não se pode conceber a utilização da configuração externa, física; da forma ou aparência de como um indivíduo se apresenta à sociedade, para determinar se é ou não capaz. Entendeu-se que não será sua idade, sexo, cor da sua pele ou cabelos, origem ou suas características, qualidades, deficiências, opções pessoais ou preferências sociais, políticas e culturais quem determinarão sua capacidade civil. Concluiu-se, por fim, que se ele é capaz, há de ser reconhecido capaz por inteiro, quer seja essa capacidade atinente aos seus direitos civis como eleitor, trabalhador, adotante, doador, testador ou cônjuge.
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