Podemos citar como defensores da distinção entre normas material e
formalmente constitucionais, Carl Schmitt (SCHMITT, 1927) e Otto Bachof (BACHOF,
1977), sendo que este parte desse pressuposto para afirmar a possibilidade de
existência de normas constitucionais inconstitucionais, o que não é admitido
em nosso ordenamento jurídico, tendo sobre o tema já se pronunciado o Egrégio
Supremo Tribunal Federal na ADIn n.º 815-3-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ
de 10/05/1996. A mencionada distinção é também utilizada para fundamentar
a Teoria da Desconstitucionalização das Leis, que surgiu na França, havendo
hoje amplo consenso entre doutrinadores brasileiros pela sua não aplicação no
sistema constitucional brasileiro. Sobre o tema, ver: (ROMEIRO, 1976),
(MORAES, 2004:1101). Cabe ainda lembrar que a separação entre matéria e forma
constitucional realizada por Schmitt foi, em certa medida, providencial para
justificar a violação dos direitos individuais previstos na Constituição de
Weimar de 1919 no período nazista, ou seja, para apoiar a desconsideração da
Constituição formal burguesa, entendida como ideal, em favor da
Constituição real, a material, caracterizada pelas decisões políticas
fundamentais do povo alemão. Sobre o tema, ver: (CALDWELL, 1997:96-107).
"Il paradiso era un luogo per effetuare proprio un esperimento di
questo tipo, e il mondo deve al coraggio di una donna le conseguenze della
violazione della norma: capacità di operare distinzioni e libertà. La
conoscenza del divieto è stata sufficiente"(LUHMANN, 1998:105).
O teólogo e pensador Henrique Cláudio de Lima Vaz, ao realizar uma
análise do humanismo moderno coloca a questão de que o "imenso projeto
cultural e pedagógico da Ilustração", que se caracterizou pela "crítica
imanentista da idéia de Deus", exaltando a autonomia absoluta da razão
para criar um progresso permanente, "erigido em demiurgo criador de uma
história em contínuo avançar para um futuro melhor", configurando "a
mais audaz e radical promoção ontológica da existência humana", acabou
gerando "novos deuses", os quais "fizeram sua aparição no horizonte
da imanência", sendo o primeiro deles o próprio "progresso". Dessa
instigante análise, ainda que exposta de modo extremamente rápido, realizada
por Padre Vaz, é que podemos aferir que a busca por uma verdade última e
inquestionável na esfera das realizações humanas é contraproducente e inútil,
haja vista que toda barbárie stalinista e nazista ocorrida no século XX
dissolve qualquer esperança em uma evolução "linear e sem obstáculos".
Em outros termos, a dimensão do absoluto, do inquestionável, só pode ser
encontrada no terreno da fé, não das obras do homem, pois estas serão sempre
refutáveis e imperfeitas, reflexos da condição de seu "criador". Conferir:
(VAZ, 2001).
Cabe ressaltar que não estamos aqui negando a possibilidade de uma
verdade científica ou identificando-a com aquilo que aceitamos como verdade em
determinado contexto histórico, pois acreditamos que um lugar para o
"incondicionado" ainda existe nas sociedades pós-convencionais, mesmo que esse
aspecto "universal" seja encontrado na faticidade social, tal como bem coloca
Habermas ao falar de uma transcendência intramundana.
"The power to make a constitution is the power to create a
political order ex nihilo. Of course, in reality there is no such
thing as a nihil, therefore new constitutions are empirically
instituted on the ruins of an order which has collapsed after a
revolution, a lost war, or a similar catastrophic event." (PREUSS,
1994:143) (Grifos nossos). Na mesma linha, temos: ‘Uma das características
da ação humana é a de sempre iniciar algo novo, o que não significa que possa
sempre partir ab ovo, criar ex nihilo. Para dar lugar à ação,
algo que já estava assentado deve ser removido ou destruído, e deste modo as
coisas são mudadas" (ARENDT, 2004:15).
É óbvio que nos Estados Unidos da América também existiram, como
ainda existem, operadores do direito influenciados por essa crença exacerbada
na racionalidade do legislador, trata-se dos denominados originalistas
que, como os exegetas, não possuem consciência de nossa condição hermenêutica.
Para exemplificar, cabe lembrar que a Constituição de 1791, em seu
Título VII, determinava que as revisões deveriam ser aprovadas por três
Assembléias Legislativas consecutivas, sendo que os membros da terceira não
poderiam ser eleitos para a quarta, esta sim autorizada a realizar a alteração
constitucional.
Um outro exemplo de como texto algum é capaz de conter o contexto
nos é dado pela infrutífera pretensão das Constituição do Peru de 1979 (art.
307) , do México de 1917 (art. 136) e da Venezuela de 1961 (art. 250) , as
quais, apesar de expressamente proibirem a sua substituição, afirmando
sua própria intangibilidade mesmo que houvesse interrupção de sua vigência por
qualquer forma de imposição violenta, foram deturpadas, senão aniquiladas,
seja através de golpes de Estado, como o ocorrido no Peru em 1992, seja por
meio de um grande número de reformas do texto original, como no caso do
México, tendo havido mais de 400 manifestações do poder constituinte derivado
nesses mais de 90 anos de vigência de sua Constituição. Sobre o tema,
conferir: (HORTA, 1995:107-108) e (LABORDE, 2002).
"La situación del último cuarto del siglo XVIII podía
representar-se así en los siguientes términos: por una parte, la tradición
constitucionalista del poder limitado; por otra, la aspiración naciente de
poner en discusión la forma política y la misma tradición por el mismo pueblo,
que en el caso de Rousseau era sin medias tintas definido como soberano" (FIORAVANTI,
2001:102).
Referimo-nos aqui à noção de Constituição como "aquisição
evolutiva" tal como foi pensada por Niklas Luhmann, sendo um
"acoplamento estrutural" entre direito e política que surgiu na
modernidade como resposta à diferenciação funcional que a caracteriza. O
conceito requer necessariamente a idéia de formalidade, rigidez e supremacia
constitucional, configurando, respectivamente, a existência de um documento
escrito e solene, que prevê os mecanismo através dos quais poderá ser
alterado, e que opera uma distinção entre direito constitucional e os demais
direitos, em outros termos, entre normas constitucionais e ordinárias. Sobre o
tema, conferir (LUHMANN, 1996).
Nesse sentido, ver: (ROSENFELD, 2003).
Para exemplificar, cabe dizer que o Código Penal Brasileiro, tendo
surgido como um Decreto-Lei em 1940, foi recepcionado pela nova ordem
Constitucional instaurada após 1988, naquilo que não a contradiga, sob a
roupagem de lei ordinária, já que não mais existe aquela espécie normativa em
nosso ordenamento jurídico. Sobre o tema, ver: (CERQUEIRA, 1995).
Não obstante a ilogicidade de uma Constituição que propusesse seu
próprio fim, devemos nos lembrar que exemplos históricos, como o artigo 146 da
Lei Fundamental Alemã de 1949, ou a EC n.º 26/85 no Brasil, cada qual com suas
específicas peculiaridades, revelam a força de rupturas que podem extrapolar o
mero observar de formas, transcendendo qualquer conceituação ou classificação
que pretendam abarcar a totalidade do fenômeno constituinte. Conferir, nesta
linha, o interessante artigo: (PREUSS, 1994: 155 – 160).
O presente artigo tem como "pano de fundo" a virada lingüística, a
qual parte de uma crítica à crença de que para se conhecer algo é necessário
se recorrer unicamente à consciência. A filosofia da linguagem, inaugurando um
novo paradigma filosófico, coloca ênfase na questão da intersubjetividade do
conhecimento na medida em que este é sempre mediado pela linguagem. "Numa
palavra, não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, não
existe mundo que não seja exprimível na linguagem. A linguagem é o espaço de
expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade"
(OLIVEIRA, 2001:13).
A identificação pejorativa da Constituição com uma simples folha
de papel, muito utilizada pelos constitucionalistas contemporâneos para se
referir à ausência de efetividade das normas constitucionais, tem sua origem,
conforme nos lembra Lassale, na seguinte frase de Frederico Guilherme IV,
antigo rei prussiano (1840-1861): "Julgo-me obrigado a fazer agora,
solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei
que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel
escrita como se fosse uma segunda Providência" (Grifos Nossos) (LASSALE,
1998:37).
Esse papel secundário atribuído à linguagem, que pressupõe uma
distinção entre pensamento e linguagem, possuindo esta uma função meramente
designativa, isto é, de "designar com sons o imediatamente percebido
sem ela" (OLIVEIRA, 2001:22) tem origem na divisão dos dois mundos
realizada por Platão, passando por Aristóteles, chegando até mesmo aos
pensadores modernos que integravam o paradigma da filosofia da consciência.
"Na história do Ocidente, sempre se questionou um ou outro aspecto isolado
desse processo, conservando-se, porém, intocada a concepção da linguagem como
algo secundário no conhecimento da realidade. Tal concepção faz-se presente
nos tempos modernos, quando, por exemplo, Descartes admite a possibilidade de
uma reflexão radical independente da tradição e da linguagem. Para ele, a
consciência pode atingir a certeza plena, o problema fundamental da
teoria do conhecimento, sem a mediação lingüística, isto é, por pura
auto-intuição, sem nenhuma referência a uma comunidade lingüística. De modo
geral, pode-se dizer que só o segundo Wittgenstein questionou radicalmente os
fundamentos dessa concepção" (OLIVEIRA, 2001:33-34).
É interessante a metáfora utilizada por Loewenstein para
caracterizar os diferentes tipos de Constituição. O autor afirma que uma
Constituição normativa seria "un traje que se sienta bien y que lleva
realmente" (LOEWENSTEIN, 1970:217), a Constituição nominal seria aquela na
qual "el traje cuelga durante cierto tiempo en el armario y será puesto
cuando el cuerpo nacional haya crecido" (LOEWENSTEIN, 1970:218) e na
Constituição semântica "el traje no es en absoluto un traje, sino un
disfraz" (LOEWENSTEIN, 1970:219). Somente a título de curiosidade, cabe
lembrar que metáfora semelhante aparece na capa do livro de Caldwell
(CALDWELL, 1997) sobre o constitucionalismo alemão, fazendo referência à
Constituição de Weimar de 1919, como se essa fosse um "vestido" que não
servisse por ter sido feito como uma "colcha de retalhos", cujos pedaços foram
reunidos a partir de outras tradições que não a alemã, utilizando-se, por
exemplo, a noção do parlamentarismo inglês e a idéia de separação de poderes
norte-americana, e que, por terem sido conceitos importados, não pertencentes
à tradição constitucional de tal país, não se amoldaram ao mesmo. Em tal
caricatura, que teria aparecido em jornal alemão no início da República, a
Germânia diz a seguinte frase ao se ver no espelho: "Weel, the old dress
made out of good German fabric suited me better!" (CALDWELL, 1997:IX).
"Constitucionalismo que, em último termo, se traduz na permanente
tentativa de se instaurar e de se efetivar concretamente a exigência
idealizante que inaugura a modernidade no nível da organização de sua
sociedade complexa a qual não mais pode lançar mão de fundamentos absolutos
para legitimar o seu próprio sistema de direitos e a sua organização política:
a crença de que constituímos uma comunidade de homens livres e iguais,
co-autores das leis que regem o nosso viver em comum" (CARVALHO NETTO,
2001a:12).
"A construção da cidadania, seja na França ou nos Estados Unidos,
no Japão ou na Alemanha, foi, e continua sendo, um processo complexo, sofrido,
ziguezagueante, que não pode ser reduzido à perspectiva estática e estilizada
das últimas décadas do século XX. Isso, portanto, não autoriza uma simples
contraposição entre uma relativa homogeneidade (vista da periferia) das
instituições democráticas dos países centrais e as dificuldades vividas pelos
países em desenvolvimento. (...) A conseqüência mais nociva da representação
da cidadania dos países desenvolvidos como mundo ideal e desejável é sua
contraposição a uma imagem de cidadania nos países latino-americanos como um
mundo de carências e mistificações, o reino da desigualdade e do arbítrio"
(SORJ, 2004:20). Há um esquecimento de todo um contexto, de um todo um
processo de lutas ocorridas em tais países considerados "centrais",
como o Movimento dos Direitos Civis nos EUA, capitaneado por Mather Luther
King, que conduziram à auto-compreensão cidadã dos seus integrantes.
É importante lembrar que "la incompreensión del presente nace
fatalmente de la ignorancia del pasado. Pero no es, quizás, menos vano
esforzarse por comprender el pasado si no se sabe nada del presente"
(BLOCH, 1957:38).
Identidade aqui não significa que aceitamos a existência de algum
fator homogeneizador que defina a denominada brasilidade, como a
cordialidade, ou o fato de acreditarmos ser um povo ordeiro, alegre, sensual,
acolhedor, com contrates regionais ou sem preconceitos. Essa busca por
características que nos "irmanem" foi predominante nos pensadores brasileiros
do século XIX, como, por exemplo, Silvio Romero, Afonso Celso, Manoel Bonfim,
Paulo Prado, Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo, pois se tentava descobrir
fatores de identificação que nos constituiriam como uma Nação independente, em
virtude da garantia da unidade nacional ser preocupação central nesse período
de nossa história. Nessa linha, Marilena Chauí ainda hoje nos alerta sobre o
fato de que "cada um de nós experimenta no cotidiano a forte presença de
uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e de si mesmos.
Essa representação permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade
e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro, e, em outros momentos,
conceber a divisão social e a divisão política sob a forma dos amigos da nação
e dos inimigos a combater, combate que engendrará ou conservará a unidade, a
identidade e a indivisibilidade nacionais. Eis porque algumas pesquisas de
opinião indicam que uma parte da população atribui os males do país à
colonização portuguesa, à presença dos negros ou dos asiáticos e,
evidentemente, aos maus governos, traidores do povo e da pátria" (CHAUI,
2000:7-8). Dessa forma, essa representação simplista oculta as tensões reais
existentes na sociedade, gerando contradições nem sempre problematizadas,
permitindo assim, nas palavras da citada filósofa, "que uma sociedade que
tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seu
surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem
positiva de sua unidade fraterna" (CHAUI, 2000:8). Sobre a
construção da "Nação" brasileira, ver também (ODALIA, 1997). Cabe ressaltar
que, em uma sociedade plural como a atual, só podemos pensar em uma igualdade
na diferença, ou seja, só podemos falar em uma identidade brasileira se a
entendemos como a pertinência ao mesmo projeto constituinte, o qual
possibilita a existência de múltiplos modos de vida e a construção de
biografias singulares. Nessa linha, até mesmo o conceito de Nação
necessita de uma remodelação para incluir o outro, o diferente, tema este bem
trabalhado por Habermas em "O Estado nacional europeu – sobre o passado e o
futuro da soberania e da nacionalidade" (HABERMAS, 2002a).
É interessante constatarmos a enorme produtividade e riqueza do
fenômeno cultural desse período, basta lembrarmos, entre tantos outros, e
ainda que de maneira extremamente rápida, de nomes como Caio Prado Júnior,
Florestan Fernandes, Barbosa Lima Sobrinho, Oscar Niemayer, Chico Buarque de
Holanda, Caetano Veloso, Edgar da Mata Machado, Henfil, Glauber Rocha,
Martinez, Celso Furtado, Paulo Freire.
Podemos lembrar a postura do Supremo Tribunal Federal diante das
denominadas "questões políticas" como situações de auto-limitação, como se
pode ver nas seguintes decisões referentes à negação da apreciação da
inconstitucionalidade do processo legislativo sob a alegação de se tratar de
matéria "interna corporis": STF - RE 57.684-SP, Rel. Ministro Hermes
Lima, DJ de 24/06/66; STF - MS 20.471-DF, Rel. Ministro Francisco
Rezek, DJ de 22/02/85; STF - MS 22.503-DF, Rel. Ministro Marco Aurélio,
DJ de 06/06/97; STF - ADInMC 2.038-BA, Rel. Ministro Nelson Jobim,
DJ de 25/02/00. Podemos citar, apenas a título ilustrativo, já que os
exemplos são abundantes em nossa história, outro caso no qual o STF se absteve
de reconhecer o direito por questões de ordem política, trata-se do
indeferimento do STF - MS nº 896-DF, Rel. Ministro Macedo Ludolf, decisão
datada de 26/05/49, impetrado por Luiz Carlos Prestes, que requereu seu
direito líquido e certo de exercício do mandato de senador mesmo após o
cancelamento do registro do Partido Comunista. Por outro lado, a criação da
intitulada "doutrina brasileira do Habeas Corpus", ou a concessão de HC
aos Drs. Armando de Salles Oliveira, Octávio Mangabeira e Paulo Nogueira Filho
em virtude da nulidade de sua citação, pois se encontravam exilados no
exterior (STF - HC nº 29.002-DF, Rel Ministro Aníbal Freire) ou a concessão de
HC ao jornalista Hélio Fernandes, que publicou na imprensa, no dia 22 de julho
de 1963, circulares reservadas do exército (STF - HC nº 40.047-DF, Rel.
Ministro Ribeiro da Costa), podem ser apresentados, dentre outros, como
momentos nos quais o citado Egrégio Tribunal "levou a sério" o direito. Sobre
o tema, ver: (BOECHAT, 1991, 2002).
Apenas a título ilustrativo, nada mais universal do que o local de
Guimarães Rosa, de Machado de Assis ou de Shakespeare.
"Estes os idealismos que chamaremos organicos, porque
nascem da propria evolução organica da sociedade e não são outra cousa
sinão visões antecipadas de uma evolução futura" (VIANNA, 1939:11).
Nesse sentido, ver: (TEIXEIRA, 1997). Nesse mesmo texto encontra-se
uma comparação entre a classificação ontológica de Karl Loewenstein e a de
Oliveira Vianna, identificando-se o "idealismo utópico" com as Constituições
nominais e o "idealismo orgânico" com as Constituições ditas semânticas. Tal
como Loewenstein, poderíamos dizer que Oliveira Vianna peca por realizar a
distinção entre real e ideal ao propor a opção unilateral por um tipo de
idealismo, qual seja, o orgânico.
Analisando o programa do Partido Progressista de 1862, Oliveira
Vianna afirmava que eles resolviam "o problema da organisação da
administração publica propugnando pela fiel execução do Acto Adicional. Para
elles, o que fizera falhar a experiencia do Acto Adicional fôra a sua má
execução e não a lei em si – no que se mostravam perfeitamente utópicos...(VIANNA, 1939:47) (Grifos nossos). Segundo o autor em questão, a concessão
de uma maior autonomia local, por seguir o exemplo do federalismo
norte-americano, e não a tradicional configuração política do Brasil, seria
utópica e, conseqüentemente, ineficaz.
Ao falar sobre o projeto de reforma constitucional proposto pelos
liberais de 1831, Oliveira Vianna assim se pronuncia: "Os problemas
relativos à administração publica elles os resolveram visivelmente inspirados
no idealismo americano: "Federação já e já" – diziam. E pensaram organisar o
machinismo administrativo do Paiz, propondo um regimen de larga
descentralização: primeiro, com a monarchia federativa; depois, com a
instituição das assembléas provinciaes, com duas Camaras. Tudo com o fim
confessado de reforçar, more britanico, a garantia das liberdades
locaes em face do Poder Central – velha preocupação infantil de nossos
liberaes, que nunca quizeram converncer-se de que, entre nós, é o Poder
Central que tem sido sempre o grande, e talvez o único, defensor das
liberdades individuaes" (VIANNA, 1939:43-44) (Grifos nossos).
"É claro que o Sete de Abril, a abdicação do monarca e a
instalação da Regência modificariam sensivelmente esse panorama. O triunfo das
idéias liberais, o fim do absolutismo voluntarioso de D. Pedro I e o recuo
amedrontado de seus áulicos, fizeram surgir um nítido movimento de idéias em
torno de reformas políticas e institucionais que se tornaram inevitáveis"
(NOGUEIRA, 2001:66).
Ainda que secundário, tendo em vista que foi o próprio abuso na
utilização do Poder Moderador que abalou a autoridade de D. Pedro I,
ocasionando sua abdicação, podemos citar o assassinato do jornalista Líbero
Badaró, a mando de um juiz ligado ao Imperador, como um dos incidentes
ocorrido no período, mais especificamente, em 20 de novembro de 1830, que
influenciou na "queda" do monarca e no conseqüente "avanço" liberal que
principia com a votação do Código de Processo Criminal em 1832 e culmina na
aprovação do Ato Adicional em 1834. É importante lembrarmos que já em 1824,
ano de outorga da Constituição do Império, tivemos um movimento liberal de
contestação do Imperador, qual seja, a Confederação do Equador ocorrida em
Pernambuco. Cabe ressaltarmos, porém, que apesar de podermos identificar
propostas políticas diferentes para liberais e conservadores, como a defesa da
República e da Federação pelos primeiros, não podemos esquecer que os
políticos do Império eram uma minoria da sociedade, na verdade, uma pequena
parcela da população a qual vulgarmente se denomina de "elite", ou seja, o
poder se alternava entre uns poucos "privilegiados", os quais, em última
instância, pretendiam permanecer no comando da Nação, evitando qualquer
verdadeira reforma, por isso ficou famosa a seguinte declaração de Holanda
Cavalcanti: "Não há nada mais parecido com um saquarema (conservador) do
que um luzia (liberal) no poder" (CAVALCANTI apud RODRIGUES,
1982:12).
Sobre o tema, assim se pronunciou o Marquês de São Vicente,
comentando a interpretaçãao legislativa da Constituição de 1824 em seu famoso
Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império: "Com
efeito, a interpretação por via de autoridade, que tem força obrigatória, em
que é distinta da lei? Em que difere da disposição que modifica ou reforma
esta? Em nada certamente, porque interpretar por esse modo é legislar, é
estabelecer a norma reguladora que deve ser obedecida" (PIMENTA BUENO,
2002:131).
"No Império houve 558 disposições relacionadas ao trabalho
escravo. Estavam representadas por decretos, leis, decisões governamentais"
(AQUINO, 2002:44). Podemos citar uma dessas disposições normativas, a Lei n.º
581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como "Lei Eusébio de Queirós", que
proibia a importação de escravos e que foi considerada como uma lei "para
inglês ver", em virtude de sua falta de efetividade, tendo sido editada em
razão da pressão inglesa pela abolição da escravidão. Uma prova de que texto
não é capaz de regular o contexto é que ainda hoje estamos tentando acabar com
a escravidão e racismo, basta lembrarmos que temos uma lei que considera como
crime o preconceito contra afro-brasileiros, Lei n.º 7.716/89 com alterações
dadas pela Lei n.º 9.459/97, e um projeto de Emenda Constitucional em
tramitação no Congresso que pune a exploração do trabalho escravo, trata-se da
PEC nº 438, de 2001.
Decreto s/n de 14 de dezembro de 1890, que "manda queimar todos
os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes
nas repartições do Ministério da Fazenda".
Reforma, em sua origem, tinha o sentido de restauração, referindo-se
também, em uma perspectiva figurada, à uma melhoria, à correção de algo já
existente. Reforma é, assim, um substantivo derivado regressivo de reformar.
"Reformar – v. Do Lat. Reformãre, "dar a forma primitiva; refazer;
restabelecer, restaurar; Fig. melhorar, corrigir" (MACHADO, 1987:61).
Esse significante também nos remete a outro, revolução, que também
originariamente se referia a uma recorrência, a um retorno a uma ordem já
determinada, um movimento cíclico, tal como o das estrelas, já que surgiu
inicialmente na esfera da astronomia, passando a significar uma ruptura, uma
inovação, somente a partir das experiências revolucionárias americana e
francesa. "Nada poderia estar mais distanciado do significado original da
palavra revolução do que a idéia que se apoderou obsessivamente de
todos os revolucionários, isto é, que eles são agentes num processo que
resulta no fim definitivo de uma velha ordem, e provoca o nascimento de um
novo mundo" (ARENDT, 1988: 34).
"Na verdade, a grande legitimidade que caracteriza a Constituição
de 1988 decorreu de uma via inesperada e, até o momento da eleição da
Assembléia Constituinte, bastante implausível. Com a morte do Presidente
eleito, Tancredo Neves, e a posse como Presidente do Vice-Presidente eleito,
José Sarney, as forças populares mobilizadas pela campanha das "diretas-já",
voltaram a sua atenção e interesse de maneira decisiva para os trabalhos
constituintes, então em fase inicial, pois a de organização ou de definição do
processo havia acabado de encerrar. Como resultado dessa renovada atenção, o
tradicional processo constituinte pré-ordenado, contra todas as previsões,
subitamente não mais pôde ser realizado em razão da enorme mobilização e
pressão popular que se seguiram, determinando a queda da denominada comissão
de notáveis – a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto inicial – e
a adoção de uma participativa metodologia de montagem do anteprojeto a partir
da coleta de sugestões populares" (CARVALHO NETTO, 2002:44). Cabe
ressaltar que as sugestões apresentadas pela população à Constituinte podem
ser encontradas no site do Senado Federal:
www.senado.gov.br/sf/legislacao/basesHist/, consultado em 19/02/2005.
É interessante lembrar, ainda, que grande polêmica gravita em torno do fato da
Assembléia Constituinte de 1988 ter sido convocada por meio de uma emenda à
Constituição anterior, no caso a EC nº 26, de 27 de novembro de 1985,
existindo autores, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que chegam a até
mesmo dizer não ter havido qualquer ruptura, afirmando ser "indiscutível
que a Constituição que está em vigor é a de 1969" (FERREIRA FILHO apud
SLAIBI FILHO, 2004:40), ou seja, tal jurista entende que houve em 1988 uma
Constituinte com poderes derivados, não tendo havido, assim, a manifestação de
um poder constituinte originário. Nesse sentido, ver também: (FERREIRA FILHO,
1985). No caso em questão, concordamos com José Adércio Leite Sampaio quando o
mesmo afirma que se a Constituinte de 1988 fosse tida como um poder
constituinte derivado então a emenda por ele realizada teria que ser
considerada inconstitucional, pois foram seguidos ritos diferentes dos
exigidos para a aprovação de uma emenda, como o quórum de votação, além do
fato de que a Assembléia Constituinte ter se intitulado "soberana e livre", ou
seja, ter-se considerado não submetida a qualquer limite. Sobre o tema, ver:
(SAMPAIO, 2004:21).
Sobre o tema, ver: (HAMBLOCH, 1981:88-89).
"Permitiu-se o veto parcial, porque, como nos EUA, o veto de 1891
só poderia ser oposto ao inteiro teor dos projetos aprovados pelo Congresso.
Agora, seria possível vetar um artigo ou parágrafo. O abuso, depois, chegou ao
ponto de vetar-se uma palavra "não", permitindo-se o que se proibira"
(BALEEIRO, 2001:63).
Nessa linha, mesmo após a emenda de 1926, encontramos decisões,
lembradas aqui apenas a título ilustrativo, que concederam HC a estrangeiros
expulsos pelo Executivo do país, em casos de naturalização ou outro
entendimento do Egrégio Tribunal sobre a circunstância do estrangeiro ser
perigoso à ordem pública ou nocivo aos interesses do Estado" (RODRIGUES,
1991:244), ou HC que garantiu o direito de reunião sem armas (RODRIGUES,
1991:253).
"Mesmo para as medidas de exceção, dentro do estado de sítio, há
necessariamente um limite, desde que o estado de sítio é uma providência
constitucional; tudo quanto exceder tal limite representará violência; e o
corretivo ao abuso de poder não é outro senão o habeas-corpus"
(RODRIGUES, 1991:279). Na mesma linha, encontramos o voto do Ministro do
Supremo Tribunal Federal, Hermenegildo de Barros, ao discutir, em 1926, no HC
nº 18.178, a validade da Reforma do mesmo ano, tendo assumido expressamente
que: "mesmo em estado de sítio, o governo não tinha poder absuluto(sic),
não podia prender indivíduos innocentes(sic) e conservá-los em prisão pelo
tempo que lhe aprouvesse".
O que é importante lembrarmos aqui é que as ECs 7 e 8 foram
elaboradas pelo Poder Executivo e não pelo Legislativo, pois foi decretado, em
1.º de abril de 1977, através do Ato Complementar n.º 102, o recesso do
Congresso Nacional. Dessa forma, através das emendas em questão o governo
realizou todas as reformas que entendeu necessárias, já que o Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, autorizava-lhe legislar em caso
de recesso parlamentar. Como medidas mais importantes dessas emendas cabe
citar a criação do "senador biônico", o mandato presidencial de 6 anos, o
limite máximo de 420 representantes para a Câmara Federal, a eleição indireta
para governador dos Estados, a reforma do judiciário, a possibilidade de criar
ou aumentar impostos a seu "bel-prazer", dentre outras disposições.
Saliente-se também que tais reformas, em grande medida, foram conseqüência da
vitória nas urnas do então partido de oposição, MDB.
"Naquele momento ficava evidenciado que o regime estava disposto
a recuar na sua proposta de distensão caso houvesse tentativas de se avançar
para além dos limites que ele vinha delineando há alguns anos. As medidas
tomadas por este pacote eram uma espécie de alerta de que os métodos altamente
ditatoriais de solução dos problemas na esfera política estavam mais vivos do
que alguns setores imaginavam" (REZENDE, 2001:221).
O poder da forma é tão forte em nossa tradição
jurídico-constitucional que uma ADIn, a de nº 2076-5, foi impetrada perante o
Supremo Tribunal Federal para se questionar a constitucionalidade do preâmbulo
da Constituição do Acre, pois o mesmo não fazia remissão a Deus, o que se
entendia ser um fator impossibilitador de qualquer proteção divina àquele ente
de nossa federação.
"Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de
crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são
capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse marcado
pelo reconhecimento de crises em curso?" (CARVALHO NETTO, 2004:281).
Foi através da análise realizada por Reinhart Koselleck sobre a
derrocada do Absolutismo desencadeada pela crítica burguesa que pudemos
perceber que a toda crise associa-se uma crítica. Sobre o tema, ver: (KOSELLECK,
1999).
Apenas a título ilustrativo, podemos citar, dentre outros, os
seguintes movimentos e revoltas de nossa história, ressalvando a diversidade
de propósitos dos mesmos: Confederação do Equador (1824); Motim dos
Mercenários (1828); Setembrada (1831); Abrilada (1832); Guerra dos Cabanos
(1832-1835); Revolta de Ouro Preto (1833); Guerra dos Farrapos (1835-1845);
Sabinada (1837-1838); Revolta Praieira (1848-1850); Insurreição de Queimados
(1849); Revolta do Ronco da Abelha (1851-1852); Conflito do Pano de Teatro São
João (1854); Motim da Carne sem Osso, da Farinha sem Caroço e do Toucinho
Grosso (1858); Revolta do Quebra-Quilos (1874-1875); Guerra das Mulheres/Motim
das Mulheres (1875-1876); Revolta dos Mucker (1872-1898); Revolta Baiana
(1878); Levante do Vintém (1879-1880); Revolta do Sargento Silvino (1892);
Revolta Federalista do Rio Grande do Sul (1891-1892); Revolta da Armada
(1893-1894); Revolta da Chibata (1910); Guerra do Contestado (1912-1916);
Canudos (1896-1897); Revolta da Vacina (1904); Revolta do Forte de Copacabana
(1922); Coluna Prestes (1924-1927); MST - Movimento dos Sem Terra (a partir de
1984, data de seu primeiro encontro em Cascavel/Paraná).
"No processo histórico brasileiro houve crueza e incrueza,
cordialidade e hostilidade, numa ambivalência comparável aos períodos
libertários e liberticidas que enchem a história de São Pedro do Rio Grande do
Sul com tanta repercussão no Brasil Republicano. O que pretendi refutar foi a
tese do processo incruento e da cordialidade como comportamentos históricos
permanentes do povo brasileiro" (RODRIGUES, 1982:16).
Com Menelick de Carvalho Netto ressaltamos a "natureza pública da
Constituição; uma Constituição é do interesse de todos, ou ela pertence a
todos nós ou não é de ninguém" (CARVALHO NETTO, 2003d:125-126).
Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e bolsista da FAPEMIG
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
TORRES, Ana Paula Repolês. Um pequeno ensaio sobre o sentido de Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2006, 28 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12137. Acesso em: 17 nov. 2024.