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Um pequeno ensaio sobre o sentido de Constituição

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Agenda 28/12/2008 às 00:00

Notas

  1. Podemos citar como defensores da distinção entre normas material e formalmente constitucionais, Carl Schmitt (SCHMITT, 1927) e Otto Bachof (BACHOF, 1977), sendo que este parte desse pressuposto para afirmar a possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais, o que não é admitido em nosso ordenamento jurídico, tendo sobre o tema já se pronunciado o Egrégio Supremo Tribunal Federal na ADIn n.º 815-3-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 10/05/1996. A mencionada distinção é também utilizada para fundamentar a Teoria da Desconstitucionalização das Leis, que surgiu na França, havendo hoje amplo consenso entre doutrinadores brasileiros pela sua não aplicação no sistema constitucional brasileiro. Sobre o tema, ver: (ROMEIRO, 1976), (MORAES, 2004:1101). Cabe ainda lembrar que a separação entre matéria e forma constitucional realizada por Schmitt foi, em certa medida, providencial para justificar a violação dos direitos individuais previstos na Constituição de Weimar de 1919 no período nazista, ou seja, para apoiar a desconsideração da Constituição formal burguesa, entendida como ideal, em favor da Constituição real, a material, caracterizada pelas decisões políticas fundamentais do povo alemão. Sobre o tema, ver: (CALDWELL, 1997:96-107).
  2. "Il paradiso era un luogo per effetuare proprio un esperimento di questo tipo, e il mondo deve al coraggio di una donna le conseguenze della violazione della norma: capacità di operare distinzioni e libertà. La conoscenza del divieto è stata sufficiente"(LUHMANN, 1998:105).
  3. O teólogo e pensador Henrique Cláudio de Lima Vaz, ao realizar uma análise do humanismo moderno coloca a questão de que o "imenso projeto cultural e pedagógico da Ilustração", que se caracterizou pela "crítica imanentista da idéia de Deus", exaltando a autonomia absoluta da razão para criar um progresso permanente, "erigido em demiurgo criador de uma história em contínuo avançar para um futuro melhor", configurando "a mais audaz e radical promoção ontológica da existência humana", acabou gerando "novos deuses", os quais "fizeram sua aparição no horizonte da imanência", sendo o primeiro deles o próprio "progresso". Dessa instigante análise, ainda que exposta de modo extremamente rápido, realizada por Padre Vaz, é que podemos aferir que a busca por uma verdade última e inquestionável na esfera das realizações humanas é contraproducente e inútil, haja vista que toda barbárie stalinista e nazista ocorrida no século XX dissolve qualquer esperança em uma evolução "linear e sem obstáculos". Em outros termos, a dimensão do absoluto, do inquestionável, só pode ser encontrada no terreno da fé, não das obras do homem, pois estas serão sempre refutáveis e imperfeitas, reflexos da condição de seu "criador". Conferir: (VAZ, 2001).
  4. Cabe ressaltar que não estamos aqui negando a possibilidade de uma verdade científica ou identificando-a com aquilo que aceitamos como verdade em determinado contexto histórico, pois acreditamos que um lugar para o "incondicionado" ainda existe nas sociedades pós-convencionais, mesmo que esse aspecto "universal" seja encontrado na faticidade social, tal como bem coloca Habermas ao falar de uma transcendência intramundana.
  5. "The power to make a constitution is the power to create a political order ex nihilo. Of course, in reality there is no such thing as a nihil, therefore new constitutions are empirically instituted on the ruins of an order which has collapsed after a revolution, a lost war, or a similar catastrophic event." (PREUSS, 1994:143) (Grifos nossos). Na mesma linha, temos: ‘Uma das características da ação humana é a de sempre iniciar algo novo, o que não significa que possa sempre partir ab ovo, criar ex nihilo. Para dar lugar à ação, algo que já estava assentado deve ser removido ou destruído, e deste modo as coisas são mudadas" (ARENDT, 2004:15).
  6. É óbvio que nos Estados Unidos da América também existiram, como ainda existem, operadores do direito influenciados por essa crença exacerbada na racionalidade do legislador, trata-se dos denominados originalistas que, como os exegetas, não possuem consciência de nossa condição hermenêutica.
  7. Para exemplificar, cabe lembrar que a Constituição de 1791, em seu Título VII, determinava que as revisões deveriam ser aprovadas por três Assembléias Legislativas consecutivas, sendo que os membros da terceira não poderiam ser eleitos para a quarta, esta sim autorizada a realizar a alteração constitucional.
  8. Um outro exemplo de como texto algum é capaz de conter o contexto nos é dado pela infrutífera pretensão das Constituição do Peru de 1979 (art. 307) , do México de 1917 (art. 136) e da Venezuela de 1961 (art. 250) , as quais, apesar de expressamente proibirem a sua substituição, afirmando sua própria intangibilidade mesmo que houvesse interrupção de sua vigência por qualquer forma de imposição violenta, foram deturpadas, senão aniquiladas, seja através de golpes de Estado, como o ocorrido no Peru em 1992, seja por meio de um grande número de reformas do texto original, como no caso do México, tendo havido mais de 400 manifestações do poder constituinte derivado nesses mais de 90 anos de vigência de sua Constituição. Sobre o tema, conferir: (HORTA, 1995:107-108) e (LABORDE, 2002).
  9. "La situación del último cuarto del siglo XVIII podía representar-se así en los siguientes términos: por una parte, la tradición constitucionalista del poder limitado; por otra, la aspiración naciente de poner en discusión la forma política y la misma tradición por el mismo pueblo, que en el caso de Rousseau era sin medias tintas definido como soberano" (FIORAVANTI, 2001:102).
  10. Referimo-nos aqui à noção de Constituição como "aquisição evolutiva" tal como foi pensada por Niklas Luhmann, sendo um "acoplamento estrutural" entre direito e política que surgiu na modernidade como resposta à diferenciação funcional que a caracteriza. O conceito requer necessariamente a idéia de formalidade, rigidez e supremacia constitucional, configurando, respectivamente, a existência de um documento escrito e solene, que prevê os mecanismo através dos quais poderá ser alterado, e que opera uma distinção entre direito constitucional e os demais direitos, em outros termos, entre normas constitucionais e ordinárias. Sobre o tema, conferir (LUHMANN, 1996).
  11. Nesse sentido, ver: (ROSENFELD, 2003).
  12. Para exemplificar, cabe dizer que o Código Penal Brasileiro, tendo surgido como um Decreto-Lei em 1940, foi recepcionado pela nova ordem Constitucional instaurada após 1988, naquilo que não a contradiga, sob a roupagem de lei ordinária, já que não mais existe aquela espécie normativa em nosso ordenamento jurídico. Sobre o tema, ver: (CERQUEIRA, 1995).
  13. Não obstante a ilogicidade de uma Constituição que propusesse seu próprio fim, devemos nos lembrar que exemplos históricos, como o artigo 146 da Lei Fundamental Alemã de 1949, ou a EC n.º 26/85 no Brasil, cada qual com suas específicas peculiaridades, revelam a força de rupturas que podem extrapolar o mero observar de formas, transcendendo qualquer conceituação ou classificação que pretendam abarcar a totalidade do fenômeno constituinte. Conferir, nesta linha, o interessante artigo: (PREUSS, 1994: 155 – 160).
  14. O presente artigo tem como "pano de fundo" a virada lingüística, a qual parte de uma crítica à crença de que para se conhecer algo é necessário se recorrer unicamente à consciência. A filosofia da linguagem, inaugurando um novo paradigma filosófico, coloca ênfase na questão da intersubjetividade do conhecimento na medida em que este é sempre mediado pela linguagem. "Numa palavra, não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na linguagem. A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade" (OLIVEIRA, 2001:13).
  15. A identificação pejorativa da Constituição com uma simples folha de papel, muito utilizada pelos constitucionalistas contemporâneos para se referir à ausência de efetividade das normas constitucionais, tem sua origem, conforme nos lembra Lassale, na seguinte frase de Frederico Guilherme IV, antigo rei prussiano (1840-1861): "Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita como se fosse uma segunda Providência" (Grifos Nossos) (LASSALE, 1998:37).
  16. Esse papel secundário atribuído à linguagem, que pressupõe uma distinção entre pensamento e linguagem, possuindo esta uma função meramente designativa, isto é, de "designar com sons o imediatamente percebido sem ela" (OLIVEIRA, 2001:22) tem origem na divisão dos dois mundos realizada por Platão, passando por Aristóteles, chegando até mesmo aos pensadores modernos que integravam o paradigma da filosofia da consciência. "Na história do Ocidente, sempre se questionou um ou outro aspecto isolado desse processo, conservando-se, porém, intocada a concepção da linguagem como algo secundário no conhecimento da realidade. Tal concepção faz-se presente nos tempos modernos, quando, por exemplo, Descartes admite a possibilidade de uma reflexão radical independente da tradição e da linguagem. Para ele, a consciência pode atingir a certeza plena, o problema fundamental da teoria do conhecimento, sem a mediação lingüística, isto é, por pura auto-intuição, sem nenhuma referência a uma comunidade lingüística. De modo geral, pode-se dizer que só o segundo Wittgenstein questionou radicalmente os fundamentos dessa concepção" (OLIVEIRA, 2001:33-34).
  17. É interessante a metáfora utilizada por Loewenstein para caracterizar os diferentes tipos de Constituição. O autor afirma que uma Constituição normativa seria "un traje que se sienta bien y que lleva realmente" (LOEWENSTEIN, 1970:217), a Constituição nominal seria aquela na qual "el traje cuelga durante cierto tiempo en el armario y será puesto cuando el cuerpo nacional haya crecido" (LOEWENSTEIN, 1970:218) e na Constituição semântica "el traje no es en absoluto un traje, sino un disfraz" (LOEWENSTEIN, 1970:219). Somente a título de curiosidade, cabe lembrar que metáfora semelhante aparece na capa do livro de Caldwell (CALDWELL, 1997) sobre o constitucionalismo alemão, fazendo referência à Constituição de Weimar de 1919, como se essa fosse um "vestido" que não servisse por ter sido feito como uma "colcha de retalhos", cujos pedaços foram reunidos a partir de outras tradições que não a alemã, utilizando-se, por exemplo, a noção do parlamentarismo inglês e a idéia de separação de poderes norte-americana, e que, por terem sido conceitos importados, não pertencentes à tradição constitucional de tal país, não se amoldaram ao mesmo. Em tal caricatura, que teria aparecido em jornal alemão no início da República, a Germânia diz a seguinte frase ao se ver no espelho: "Weel, the old dress made out of good German fabric suited me better!" (CALDWELL, 1997:IX).
  18. "Constitucionalismo que, em último termo, se traduz na permanente tentativa de se instaurar e de se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura a modernidade no nível da organização de sua sociedade complexa a qual não mais pode lançar mão de fundamentos absolutos para legitimar o seu próprio sistema de direitos e a sua organização política: a crença de que constituímos uma comunidade de homens livres e iguais, co-autores das leis que regem o nosso viver em comum" (CARVALHO NETTO, 2001a:12).
  19. "A construção da cidadania, seja na França ou nos Estados Unidos, no Japão ou na Alemanha, foi, e continua sendo, um processo complexo, sofrido, ziguezagueante, que não pode ser reduzido à perspectiva estática e estilizada das últimas décadas do século XX. Isso, portanto, não autoriza uma simples contraposição entre uma relativa homogeneidade (vista da periferia) das instituições democráticas dos países centrais e as dificuldades vividas pelos países em desenvolvimento. (...) A conseqüência mais nociva da representação da cidadania dos países desenvolvidos como mundo ideal e desejável é sua contraposição a uma imagem de cidadania nos países latino-americanos como um mundo de carências e mistificações, o reino da desigualdade e do arbítrio" (SORJ, 2004:20). Há um esquecimento de todo um contexto, de um todo um processo de lutas ocorridas em tais países considerados "centrais", como o Movimento dos Direitos Civis nos EUA, capitaneado por Mather Luther King, que conduziram à auto-compreensão cidadã dos seus integrantes.
  20. É importante lembrar que "la incompreensión del presente nace fatalmente de la ignorancia del pasado. Pero no es, quizás, menos vano esforzarse por comprender el pasado si no se sabe nada del presente" (BLOCH, 1957:38).
  21. Identidade aqui não significa que aceitamos a existência de algum fator homogeneizador que defina a denominada brasilidade, como a cordialidade, ou o fato de acreditarmos ser um povo ordeiro, alegre, sensual, acolhedor, com contrates regionais ou sem preconceitos. Essa busca por características que nos "irmanem" foi predominante nos pensadores brasileiros do século XIX, como, por exemplo, Silvio Romero, Afonso Celso, Manoel Bonfim, Paulo Prado, Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo, pois se tentava descobrir fatores de identificação que nos constituiriam como uma Nação independente, em virtude da garantia da unidade nacional ser preocupação central nesse período de nossa história. Nessa linha, Marilena Chauí ainda hoje nos alerta sobre o fato de que "cada um de nós experimenta no cotidiano a forte presença de uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e de si mesmos. Essa representação permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro, e, em outros momentos, conceber a divisão social e a divisão política sob a forma dos amigos da nação e dos inimigos a combater, combate que engendrará ou conservará a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais. Eis porque algumas pesquisas de opinião indicam que uma parte da população atribui os males do país à colonização portuguesa, à presença dos negros ou dos asiáticos e, evidentemente, aos maus governos, traidores do povo e da pátria" (CHAUI, 2000:7-8). Dessa forma, essa representação simplista oculta as tensões reais existentes na sociedade, gerando contradições nem sempre problematizadas, permitindo assim, nas palavras da citada filósofa, "que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna" (CHAUI, 2000:8). Sobre a construção da "Nação" brasileira, ver também (ODALIA, 1997). Cabe ressaltar que, em uma sociedade plural como a atual, só podemos pensar em uma igualdade na diferença, ou seja, só podemos falar em uma identidade brasileira se a entendemos como a pertinência ao mesmo projeto constituinte, o qual possibilita a existência de múltiplos modos de vida e a construção de biografias singulares. Nessa linha, até mesmo o conceito de Nação necessita de uma remodelação para incluir o outro, o diferente, tema este bem trabalhado por Habermas em "O Estado nacional europeu – sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade" (HABERMAS, 2002a).
  22. É interessante constatarmos a enorme produtividade e riqueza do fenômeno cultural desse período, basta lembrarmos, entre tantos outros, e ainda que de maneira extremamente rápida, de nomes como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Barbosa Lima Sobrinho, Oscar Niemayer, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Edgar da Mata Machado, Henfil, Glauber Rocha, Martinez, Celso Furtado, Paulo Freire.
  23. Podemos lembrar a postura do Supremo Tribunal Federal diante das denominadas "questões políticas" como situações de auto-limitação, como se pode ver nas seguintes decisões referentes à negação da apreciação da inconstitucionalidade do processo legislativo sob a alegação de se tratar de matéria "interna corporis": STF - RE 57.684-SP, Rel. Ministro Hermes Lima, DJ de 24/06/66; STF - MS 20.471-DF, Rel. Ministro Francisco Rezek, DJ de 22/02/85; STF - MS 22.503-DF, Rel. Ministro Marco Aurélio, DJ de 06/06/97; STF - ADInMC 2.038-BA, Rel. Ministro Nelson Jobim, DJ de 25/02/00. Podemos citar, apenas a título ilustrativo, já que os exemplos são abundantes em nossa história, outro caso no qual o STF se absteve de reconhecer o direito por questões de ordem política, trata-se do indeferimento do STF - MS nº 896-DF, Rel. Ministro Macedo Ludolf, decisão datada de 26/05/49, impetrado por Luiz Carlos Prestes, que requereu seu direito líquido e certo de exercício do mandato de senador mesmo após o cancelamento do registro do Partido Comunista. Por outro lado, a criação da intitulada "doutrina brasileira do Habeas Corpus", ou a concessão de HC aos Drs. Armando de Salles Oliveira, Octávio Mangabeira e Paulo Nogueira Filho em virtude da nulidade de sua citação, pois se encontravam exilados no exterior (STF - HC nº 29.002-DF, Rel Ministro Aníbal Freire) ou a concessão de HC ao jornalista Hélio Fernandes, que publicou na imprensa, no dia 22 de julho de 1963, circulares reservadas do exército (STF - HC nº 40.047-DF, Rel. Ministro Ribeiro da Costa), podem ser apresentados, dentre outros, como momentos nos quais o citado Egrégio Tribunal "levou a sério" o direito. Sobre o tema, ver: (BOECHAT, 1991, 2002).
  24. Apenas a título ilustrativo, nada mais universal do que o local de Guimarães Rosa, de Machado de Assis ou de Shakespeare.
  25. "Estes os idealismos que chamaremos organicos, porque nascem da propria evolução organica da sociedade e não são outra cousa sinão visões antecipadas de uma evolução futura" (VIANNA, 1939:11).
  26. Nesse sentido, ver: (TEIXEIRA, 1997). Nesse mesmo texto encontra-se uma comparação entre a classificação ontológica de Karl Loewenstein e a de Oliveira Vianna, identificando-se o "idealismo utópico" com as Constituições nominais e o "idealismo orgânico" com as Constituições ditas semânticas. Tal como Loewenstein, poderíamos dizer que Oliveira Vianna peca por realizar a distinção entre real e ideal ao propor a opção unilateral por um tipo de idealismo, qual seja, o orgânico.
  27. Analisando o programa do Partido Progressista de 1862, Oliveira Vianna afirmava que eles resolviam "o problema da organisação da administração publica propugnando pela fiel execução do Acto Adicional. Para elles, o que fizera falhar a experiencia do Acto Adicional fôra a sua má execução e não a lei em si – no que se mostravam perfeitamente utópicos... (VIANNA, 1939:47) (Grifos nossos). Segundo o autor em questão, a concessão de uma maior autonomia local, por seguir o exemplo do federalismo norte-americano, e não a tradicional configuração política do Brasil, seria utópica e, conseqüentemente, ineficaz.
  28. Ao falar sobre o projeto de reforma constitucional proposto pelos liberais de 1831, Oliveira Vianna assim se pronuncia: "Os problemas relativos à administração publica elles os resolveram visivelmente inspirados no idealismo americano: "Federação já e já" – diziam. E pensaram organisar o machinismo administrativo do Paiz, propondo um regimen de larga descentralização: primeiro, com a monarchia federativa; depois, com a instituição das assembléas provinciaes, com duas Camaras. Tudo com o fim confessado de reforçar, more britanico, a garantia das liberdades locaes em face do Poder Central – velha preocupação infantil de nossos liberaes, que nunca quizeram converncer-se de que, entre nós, é o Poder Central que tem sido sempre o grande, e talvez o único, defensor das liberdades individuaes" (VIANNA, 1939:43-44) (Grifos nossos).
  29. "É claro que o Sete de Abril, a abdicação do monarca e a instalação da Regência modificariam sensivelmente esse panorama. O triunfo das idéias liberais, o fim do absolutismo voluntarioso de D. Pedro I e o recuo amedrontado de seus áulicos, fizeram surgir um nítido movimento de idéias em torno de reformas políticas e institucionais que se tornaram inevitáveis" (NOGUEIRA, 2001:66).
  30. Ainda que secundário, tendo em vista que foi o próprio abuso na utilização do Poder Moderador que abalou a autoridade de D. Pedro I, ocasionando sua abdicação, podemos citar o assassinato do jornalista Líbero Badaró, a mando de um juiz ligado ao Imperador, como um dos incidentes ocorrido no período, mais especificamente, em 20 de novembro de 1830, que influenciou na "queda" do monarca e no conseqüente "avanço" liberal que principia com a votação do Código de Processo Criminal em 1832 e culmina na aprovação do Ato Adicional em 1834. É importante lembrarmos que já em 1824, ano de outorga da Constituição do Império, tivemos um movimento liberal de contestação do Imperador, qual seja, a Confederação do Equador ocorrida em Pernambuco. Cabe ressaltarmos, porém, que apesar de podermos identificar propostas políticas diferentes para liberais e conservadores, como a defesa da República e da Federação pelos primeiros, não podemos esquecer que os políticos do Império eram uma minoria da sociedade, na verdade, uma pequena parcela da população a qual vulgarmente se denomina de "elite", ou seja, o poder se alternava entre uns poucos "privilegiados", os quais, em última instância, pretendiam permanecer no comando da Nação, evitando qualquer verdadeira reforma, por isso ficou famosa a seguinte declaração de Holanda Cavalcanti: "Não há nada mais parecido com um saquarema (conservador) do que um luzia (liberal) no poder" (CAVALCANTI apud RODRIGUES, 1982:12).
  31. Sobre o tema, assim se pronunciou o Marquês de São Vicente, comentando a interpretaçãao legislativa da Constituição de 1824 em seu famoso Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império: "Com efeito, a interpretação por via de autoridade, que tem força obrigatória, em que é distinta da lei? Em que difere da disposição que modifica ou reforma esta? Em nada certamente, porque interpretar por esse modo é legislar, é estabelecer a norma reguladora que deve ser obedecida" (PIMENTA BUENO, 2002:131).
  32. "No Império houve 558 disposições relacionadas ao trabalho escravo. Estavam representadas por decretos, leis, decisões governamentais" (AQUINO, 2002:44). Podemos citar uma dessas disposições normativas, a Lei n.º 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como "Lei Eusébio de Queirós", que proibia a importação de escravos e que foi considerada como uma lei "para inglês ver", em virtude de sua falta de efetividade, tendo sido editada em razão da pressão inglesa pela abolição da escravidão. Uma prova de que texto não é capaz de regular o contexto é que ainda hoje estamos tentando acabar com a escravidão e racismo, basta lembrarmos que temos uma lei que considera como crime o preconceito contra afro-brasileiros, Lei n.º 7.716/89 com alterações dadas pela Lei n.º 9.459/97, e um projeto de Emenda Constitucional em tramitação no Congresso que pune a exploração do trabalho escravo, trata-se da PEC nº 438, de 2001.
  33. Decreto s/n de 14 de dezembro de 1890, que "manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda".
  34. Reforma, em sua origem, tinha o sentido de restauração, referindo-se também, em uma perspectiva figurada, à uma melhoria, à correção de algo já existente. Reforma é, assim, um substantivo derivado regressivo de reformar. "Reformar – v. Do Lat. Reformãre, "dar a forma primitiva; refazer; restabelecer, restaurar; Fig. melhorar, corrigir" (MACHADO, 1987:61). Esse significante também nos remete a outro, revolução, que também originariamente se referia a uma recorrência, a um retorno a uma ordem já determinada, um movimento cíclico, tal como o das estrelas, já que surgiu inicialmente na esfera da astronomia, passando a significar uma ruptura, uma inovação, somente a partir das experiências revolucionárias americana e francesa. "Nada poderia estar mais distanciado do significado original da palavra revolução do que a idéia que se apoderou obsessivamente de todos os revolucionários, isto é, que eles são agentes num processo que resulta no fim definitivo de uma velha ordem, e provoca o nascimento de um novo mundo" (ARENDT, 1988: 34).
  35. "Na verdade, a grande legitimidade que caracteriza a Constituição de 1988 decorreu de uma via inesperada e, até o momento da eleição da Assembléia Constituinte, bastante implausível. Com a morte do Presidente eleito, Tancredo Neves, e a posse como Presidente do Vice-Presidente eleito, José Sarney, as forças populares mobilizadas pela campanha das "diretas-já", voltaram a sua atenção e interesse de maneira decisiva para os trabalhos constituintes, então em fase inicial, pois a de organização ou de definição do processo havia acabado de encerrar. Como resultado dessa renovada atenção, o tradicional processo constituinte pré-ordenado, contra todas as previsões, subitamente não mais pôde ser realizado em razão da enorme mobilização e pressão popular que se seguiram, determinando a queda da denominada comissão de notáveis – a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto inicial – e a adoção de uma participativa metodologia de montagem do anteprojeto a partir da coleta de sugestões populares" (CARVALHO NETTO, 2002:44). Cabe ressaltar que as sugestões apresentadas pela população à Constituinte podem ser encontradas no site do Senado Federal: www.senado.gov.br/sf/legislacao/basesHist/, consultado em 19/02/2005. É interessante lembrar, ainda, que grande polêmica gravita em torno do fato da Assembléia Constituinte de 1988 ter sido convocada por meio de uma emenda à Constituição anterior, no caso a EC nº 26, de 27 de novembro de 1985, existindo autores, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que chegam a até mesmo dizer não ter havido qualquer ruptura, afirmando ser "indiscutível que a Constituição que está em vigor é a de 1969" (FERREIRA FILHO apud SLAIBI FILHO, 2004:40), ou seja, tal jurista entende que houve em 1988 uma Constituinte com poderes derivados, não tendo havido, assim, a manifestação de um poder constituinte originário. Nesse sentido, ver também: (FERREIRA FILHO, 1985). No caso em questão, concordamos com José Adércio Leite Sampaio quando o mesmo afirma que se a Constituinte de 1988 fosse tida como um poder constituinte derivado então a emenda por ele realizada teria que ser considerada inconstitucional, pois foram seguidos ritos diferentes dos exigidos para a aprovação de uma emenda, como o quórum de votação, além do fato de que a Assembléia Constituinte ter se intitulado "soberana e livre", ou seja, ter-se considerado não submetida a qualquer limite. Sobre o tema, ver: (SAMPAIO, 2004:21).
  36. Sobre o tema, ver: (HAMBLOCH, 1981:88-89).
  37. "Permitiu-se o veto parcial, porque, como nos EUA, o veto de 1891 só poderia ser oposto ao inteiro teor dos projetos aprovados pelo Congresso. Agora, seria possível vetar um artigo ou parágrafo. O abuso, depois, chegou ao ponto de vetar-se uma palavra "não", permitindo-se o que se proibira" (BALEEIRO, 2001:63).
  38. Nessa linha, mesmo após a emenda de 1926, encontramos decisões, lembradas aqui apenas a título ilustrativo, que concederam HC a estrangeiros expulsos pelo Executivo do país, em casos de naturalização ou outro entendimento do Egrégio Tribunal sobre a circunstância do estrangeiro ser perigoso à ordem pública ou nocivo aos interesses do Estado" (RODRIGUES, 1991:244), ou HC que garantiu o direito de reunião sem armas (RODRIGUES, 1991:253).
  39. "Mesmo para as medidas de exceção, dentro do estado de sítio, há necessariamente um limite, desde que o estado de sítio é uma providência constitucional; tudo quanto exceder tal limite representará violência; e o corretivo ao abuso de poder não é outro senão o habeas-corpus" (RODRIGUES, 1991:279). Na mesma linha, encontramos o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Hermenegildo de Barros, ao discutir, em 1926, no HC nº 18.178, a validade da Reforma do mesmo ano, tendo assumido expressamente que: "mesmo em estado de sítio, o governo não tinha poder absuluto(sic), não podia prender indivíduos innocentes(sic) e conservá-los em prisão pelo tempo que lhe aprouvesse".
  40. O que é importante lembrarmos aqui é que as ECs 7 e 8 foram elaboradas pelo Poder Executivo e não pelo Legislativo, pois foi decretado, em 1.º de abril de 1977, através do Ato Complementar n.º 102, o recesso do Congresso Nacional. Dessa forma, através das emendas em questão o governo realizou todas as reformas que entendeu necessárias, já que o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, autorizava-lhe legislar em caso de recesso parlamentar. Como medidas mais importantes dessas emendas cabe citar a criação do "senador biônico", o mandato presidencial de 6 anos, o limite máximo de 420 representantes para a Câmara Federal, a eleição indireta para governador dos Estados, a reforma do judiciário, a possibilidade de criar ou aumentar impostos a seu "bel-prazer", dentre outras disposições. Saliente-se também que tais reformas, em grande medida, foram conseqüência da vitória nas urnas do então partido de oposição, MDB.
  41. "Naquele momento ficava evidenciado que o regime estava disposto a recuar na sua proposta de distensão caso houvesse tentativas de se avançar para além dos limites que ele vinha delineando há alguns anos. As medidas tomadas por este pacote eram uma espécie de alerta de que os métodos altamente ditatoriais de solução dos problemas na esfera política estavam mais vivos do que alguns setores imaginavam" (REZENDE, 2001:221).
  42. O poder da forma é tão forte em nossa tradição jurídico-constitucional que uma ADIn, a de nº 2076-5, foi impetrada perante o Supremo Tribunal Federal para se questionar a constitucionalidade do preâmbulo da Constituição do Acre, pois o mesmo não fazia remissão a Deus, o que se entendia ser um fator impossibilitador de qualquer proteção divina àquele ente de nossa federação.
  43. "Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse marcado pelo reconhecimento de crises em curso?" (CARVALHO NETTO, 2004:281).
  44. Foi através da análise realizada por Reinhart Koselleck sobre a derrocada do Absolutismo desencadeada pela crítica burguesa que pudemos perceber que a toda crise associa-se uma crítica. Sobre o tema, ver: (KOSELLECK, 1999).
  45. Apenas a título ilustrativo, podemos citar, dentre outros, os seguintes movimentos e revoltas de nossa história, ressalvando a diversidade de propósitos dos mesmos: Confederação do Equador (1824); Motim dos Mercenários (1828); Setembrada (1831); Abrilada (1832); Guerra dos Cabanos (1832-1835); Revolta de Ouro Preto (1833); Guerra dos Farrapos (1835-1845); Sabinada (1837-1838); Revolta Praieira (1848-1850); Insurreição de Queimados (1849); Revolta do Ronco da Abelha (1851-1852); Conflito do Pano de Teatro São João (1854); Motim da Carne sem Osso, da Farinha sem Caroço e do Toucinho Grosso (1858); Revolta do Quebra-Quilos (1874-1875); Guerra das Mulheres/Motim das Mulheres (1875-1876); Revolta dos Mucker (1872-1898); Revolta Baiana (1878); Levante do Vintém (1879-1880); Revolta do Sargento Silvino (1892); Revolta Federalista do Rio Grande do Sul (1891-1892); Revolta da Armada (1893-1894); Revolta da Chibata (1910); Guerra do Contestado (1912-1916); Canudos (1896-1897); Revolta da Vacina (1904); Revolta do Forte de Copacabana (1922); Coluna Prestes (1924-1927); MST - Movimento dos Sem Terra (a partir de 1984, data de seu primeiro encontro em Cascavel/Paraná).
  46. "No processo histórico brasileiro houve crueza e incrueza, cordialidade e hostilidade, numa ambivalência comparável aos períodos libertários e liberticidas que enchem a história de São Pedro do Rio Grande do Sul com tanta repercussão no Brasil Republicano. O que pretendi refutar foi a tese do processo incruento e da cordialidade como comportamentos históricos permanentes do povo brasileiro" (RODRIGUES, 1982:16).
  47. Com Menelick de Carvalho Netto ressaltamos a "natureza pública da Constituição; uma Constituição é do interesse de todos, ou ela pertence a todos nós ou não é de ninguém" (CARVALHO NETTO, 2003d:125-126).
Sobre a autora
Ana Paula Repolês Torres

Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e bolsista da FAPEMIG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Ana Paula Repolês. Um pequeno ensaio sobre o sentido de Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2006, 28 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12137. Acesso em: 20 mai. 2024.

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