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A justificativa da idéia de Estado no idealismo transcendental de Immanuel Kant

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Agenda 02/01/2009 às 00:00

5 A JUSTIFICATIVA DA IDÉIA DE ESTADO NO IDEALISMO TRANSCENDENTAL.

Kant, adotando a teoria contratualista, admite a existência de dois estados, um da natureza e outro cívico, razão pela qual constrói sua teoria sobre essa proposição, explicando a transformação do primeiro estado no segundo. Até Kant, como foi visto, essa transformação era explicada de dois modos distintos: de um lado, Hobbes e Rousseau defendiam que a passagem para o estado cívico somente seria possível com a eliminação do estado natural, motivo pelo qual seria preciso abrir mão da liberdade em nome da segurança jurídica; lado outro, Montesquieu entendia que a liberdade somente surgiria com o advento do Estado. Quanto a Locke, contrariando Hobbes e Rousseau, não admitia que o estado cívico eliminasse o estado natural por completo, mas, ao eleger a conservação da ordem (segurança jurídica) como justificativa para a idéia de Estado, acabou por desaguar na teoria dos citados contratualistas.

Em comum com Locke, Kant tem a convicção de que o estado natural não é eliminado pelo estado civil, mas é apenas por este último qualificado através dos mecanismos de coação de que dispõe. O que muda na passagem de um estado para o outro não é a substância, mas a forma: [55]

O direito privado, segundo Kant, não deve desaparecer no direito público, mas deve usufruir de garantias que não pode ter no estado de natureza. O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o natural não estão numa relação de antítese, mas de integração. O que muda na passagem não é a substância, mas a forma; não é portanto o conteúdo da regra (o qual somente a razão pode ditar), mas o modo de fazê-la valer. E inclusive quando Kant indica como provisório o estado de natureza e como peremptório o estado civil, indica claramente que a modificação, ainda que importante, na é substancial mas formal. Seria possível dizer-se que, após a constituição do estado civil, o direito torna-se formalmente público, ainda que continue sendo substancialmente privado, ou seja, natural.

A razão pela qual o Estado é criado, ou seja, o bem-comum colimado, consiste na capacidade que só o Estado tem de, através da coação, garantir a liberdade externa. Isso fica claro na carta de Kant a Heinrich Jung-Stilling (1789), que se inicia assim: [56]

O princípio essencial supremo da legislação civil é realizar o direito natural dos homens que, no statu naturali (ou seja antes da união civil), é uma mera idéia, ou seja, de submete-lo a normas gerais públicas acompanhadas por coação adequada, com base nas quais possa ser garantido ou procurado para cada um direito próprio.

O estado da natureza é um estado provisório. Sendo provisório, já está implícita no estado da natureza a necessidade da transformação, sendo esta um dever moral. No estado provisório, a liberdade já existe enquanto idéia, mas sua realização só se dá através do Estado, com a institucionalização da ordem civil. A transformação do estado da natureza para o estado civil é, por isso mesmo, um dever:

Fica claro, portanto, que para Kant a passagem do estado de natureza para o estado civil é um dever para o homem; o que, em outros termos, significa que a constituição do Estado não é nem um capricho nem uma necessidade natural, mas uma exigência moral. Kant chama este dever de constituir o estado de postulado do direito público, e o formula desta maneira: "do direito privado no estado natural surge agora o postulado do direito público: você deve, com base na relação de coexistência que se estabelece inevitavelmente entre você e os outros homens, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, ou seja, num estado de justiça distributiva."

A transformação do estado natural em estado civil decorre, no idealismo transcendental, do imperativo categórico, universal e necessário, portanto. Entretanto, o fato de constituir dever moral não tira da transformação seu caráter de dever jurídico, visto que a distinção entre os deveres morais e jurídicos se dá apenas na forma, não no conteúdo.

Na teoria kantiana, a transformação do estado natural em estado civil ocorre por meio de um contrato originário, diferente do contrato social apenas quanto ao fato de o primeiro nunca ter existido historicamente, mas apenas racionalmente, constituindo uma idéia da razão. Visto que a liberdade externa já existia enquanto idéia no estado natural, o contrato originário apenas realiza essa liberdade, de maneira que não se pode falar na sua eliminação, mas tão somente em sua realização.

Chega-se aqui a um ponto nevrálgico da teoria kantiana. Qual é realmente o conteúdo de bem-comum para Kant? em verdade, Kant vê no Estado a própria liberdade ou uma instituição que a garante? Foi essa a encruzilhada deixada a ele como herança de Rousseau e Montesquieu: [57]

Nunca podemos insistir bastante sobre o fato de que, em filosofia política, opera um duplo conceito de liberdade: de um lado, a liberdade como faculdade de fazer sem ser impedido, a liberdade da teoria liberal; de outro lado, a liberdade como obediência à própria lei, a liberdade da teoria democrática. Com relação ao primeiro conceito, é possível referir-se á definição de Montesquieu (...): a liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem". Com relação ao segundo conceito, lembramos a definição de Rousseau (...): "a liberdade consiste na obediência à lei que prescrevemos para nós.

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Vista dessa forma, pode-se falar em liberdade como não-impedimento e liberdade como autonomia: [58]

A liberdade como não-impedimento representa o momento da liberdade natural, ou seja, o momento no qual o homem é livre enquanto não é dominado por leis externas e coercitivas. A liberdade como autonomia representa o momento da liberdade política, ou seja, o momento em que o homem tornou-se cidadão e está portanto subordinado às leis do Estado, conservando-se livre somente enquanto seja ele próprio o criador das leis às quais deve obedecer.

Kant claramente se aproxima de Rousseau ao apresentar sua definição de liberdade externa: melhor definir a minha liberdade externa (ou seja, jurídica) como a faculdade de não obedecer a outras leis externas, a não ser àquelas a que pude dar o meu consenso. [59] Se, portanto, para Kant a liberdade é autonomia, como concilia-la com a definição do direito como limite das liberdades externas? Para Bobbio: [60]

(...) Na realidade, os dois conceitos de liberdades não são incompatíveis porque correspondem a dois momentos do desenvolvimento da sociedade. (...) As duas liberdades são tão pouco inconciliáveis, que a luta pelo Estado moderno foi empreendida em favor de uma e outras, e as constituições modernas dos Estados democráticos reconheceram as duas, a primeira sob a forma de atribuição dos assim chamados direitos de liberdade (liberdade de imprensa, de pensamento, de associação, de reunião), a segunda sob a forma de atribuição dos assim chamados direitos políticos (ou seja, os direitos relativos à participação direta ou indireta do cidadão na formação das leis).

Se se pode fazer uma distinção entre as duas liberdades no pensamento de Kant, esta é uma distinção de valores, no sentido de que a liberdade natural tem um valor final; e de fato, quando dizemos, com Kant, que o Estado tem por fim último o reconhecimento e a promoção da liberdade, fala-se na liberdade como não-impedimento e não como autonomia. E, pelo contrário, a liberdade política tem um valor instrumental, ou seja, é um meio, um meio político, para a consecução mais segura da primeira liberdade. Em outras palavras: enquanto não é difícil admitir-se a liberdade individual como um bem em si mesmo, é pelo menos pouco conveniente atribuir-se valor do bem em si mesmo à liberdade como autonomia.

O idealismo transcendental kantiano atribui à liberdade o valor de bem-comum universal, a qual somente deixa de ser idéia para se tornar realidade no Estado que, em verdade, não apenas garante a liberdade, mas a assume em sua própria essência:

Kant (...) coloca o problema da finalidade do Estado perguntando-se: qual é o bem público do Estado, ou seja, a lei suprema frente à qual todas as demais devem ceder? E a sua resposta é clara: o bem público, entendido como aquilo que deve ser levado em máxima consideração num Estado, é a constituição legal, que garanta para cada um a liverdade por meio da lei e portanto permita a cada um alcançar, no âmbito desta liberdade, a felicidade pessoal. E como se isto não bastasse, Kant reforça logo depois o próprio pensamento nessa frase: "se o poder supremo dita leis que visam principalmente à felicidade (o bem-estar dos cidadãos, o incremento demográfico e similares), isso tem lugar não para o fim de instituir uma constituição civil, mas somente como meio para garantir o estado jurídico, especialmente contra os inimigos externos do povo."

O Estado é materialização da liberdade externa que a ele precedia, por força do imperativo categórico. Assim, não é a felicidade ou qualquer outro valor que preenche o bem-comum, mas aquela ação que se respalda em uma máxima capaz de determinar-se, racionalmente, uma lei universal: a liberdade.


6 CONCLUSÃO.

Paradigma (do grego paradeigma, para + deiknymi, que significa mostrar, exemplificar) é um tipo, modelo ou exemplo a se imitar. [61] Na teoria do Estado, aduz Habermas que paradigma significa a leitura hermenêutica de determinado momento constitucional, contemplando as imagens-modelo, acolhidas por certa comunidade jurídica, para problematizar como podem ser realizados o sistema de direitos e os princípios do Estado de direito no contexto percebido de uma dada sociedade. [62]

Somente com a substituição das bases metajurídicas, tal qual é o caso da teologia, pelo Direito na justificação do Estado, a idéia de Estado se aproximou dos escopos de justiça e segurança jurídica. Esta mudança de bases decorre, essencialmente, das revoluções burguesas do século XVIII, que são responsáveis pela promoção da Carta Magna outorgada à Constituição promulgada, que preconizava os homens como livres, iguais e proprietários. [63]

Assim é que o primeiro paradigma constitucional do Estado é o do Estado de Direito, nome dado pelas constituições demo-liberais ao tipo de organização política que elas prefiguravam. [64] Na nova idéia de Estado, a justiça e a segurança jurídica eram garantidas, agora, por um documento escrito de natureza liberal, através do reconhecimento dos direitos fundamentais, a divisão de poderes e a participação do povo no Legislativo mediante uma representação popular, como destaca Soares: [65]

Mais do que um conceito jurídico, o Estado de direito, construído pelo liberalismo, é um conceito político, consistindo em instrumento da luta política da burguesia contra o Estado absolutista centralizador e os resquícios feudais e estamentais.

A economia liberal necessitava de segurança jurídica, que o monarca absoluto não assegurava devido às suas freqüentes intervenções na esfera jurídico-patrimonial dos súditos e ao execício de seu poder discricionário na alteração e revogação de leis.

A Revolução Francesa estabeleceu a passagem do Estado de Polícia para o Estado de Direito e sua triologia idealista [66] passou a qualificar o Estado, conforme o predomínio de um ou outro lema na política do Estado.

Em verdade, o Estado Liberal não surgiu em um momento distinto do Estado de Direito, mas com ele, simultaneamente. Entretanto, por serem distintas, as idéias que os concebem permitem a visualização e caracterização das duas justificativas de Estado de forma individualizada: o bem-público do primeiro é a segurança jurídica; o do segundo, é a liberdade. Numa ponta Hobbes e Rousseau; noutra, Montesquieu; entre eles, Kant, cuja teoria foi a única capaz de conciliar a liberdade como não-impedimento e como autonomia. A filosofia política kantiana é, portanto, peça chave para compreender a junção entre as idéias de Estado de Direito e Estado Liberal: [67]

Sob este ponto a doutrina de Kant é muito clara, de maneira que pode ser considerada com uma das melhores formulações, válidas ainda hoje, da concepção liberal do Estado. E é exatamente pela clareza com a qual Kant expressa este conceito da liberdade como fim do Estado que o seu pensamento político e jurídico merece ser ainda atentamente estudado. Colocando como fim do Estado a liberdade, Kant se opõe à concepção, prevalente na sua época, que atribuía ao Estado, e por isso ao príncipe, a fim principal de dirigir os súditos para a felicidade, e era a concepção que correspondia ao regime chamado despotismo (ou absolutismo) iluminado.

A construção de bem-comum na construção kantiana levaria os povos à paz-perpétua, por decorrência lógica de uma Estado que é e que, ao mesmo tempo, assegura e garante o que é, nada mais sendo do que a liberdade externa. Kant constrói, pois, a ponte entre o Estado real e o ideal.


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Sobre o autor
Leonardo Tibo Barbosa Lima

Servidor Público Federal e Professor da Faculdade de Pará de Minas - FAPAM. Mestre em Direito do Trabalho pela PUCMinas e especialista em Direito Público pela UGF/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leonardo Tibo Barbosa. A justificativa da idéia de Estado no idealismo transcendental de Immanuel Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2011, 2 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12146. Acesso em: 5 nov. 2024.

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