1. Introdução.
A Constituição Federal (CF) outorgou competência aos Estados e ao Distrito Federal para instituir imposto sobre "transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos" [art. 155, I, na redação dada pela Emenda Constitucional (EC) n° 3, de 1993]. Idêntica era a redação da norma constante do art. 155, inciso I, alínea "a", não tendo a referida emenda introduzido qualquer alteração normativa.
Relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, ela estabelece que o imposto "compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal" (inciso I); quanto aos bens móveis, títulos e créditos, que o imposto "compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal" (inciso II). Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior, ou se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior, o imposto "terá a competência para sua instituição regulada por lei complementar" (inciso III).
No Estado de São Paulo esse imposto foi instituído pela Lei n° 10.705, de 28.12.2000, alterada pela Lei n° 10.992, de 21.12.2001, tendo seu regulamento sido aprovado pelo Decreto n° 46.655, de 1.4.2002, modificado pelo Decreto n° 49.015, de 6.10.2004. Segundo essa legislação, relativamente aos bens imóveis situados no Estado ou direitos a eles relativos, o imposto é devido ao Estado nas transmissões causa mortis, ainda que o inventário ou arrolamento seja processado em outro Estado ou no Distrito Federal, e nas doações, ainda que o doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência neste Estado (art. 3°, § 1°). Quanto aos móveis, o imposto é devido ao Estado nas transmissões causa mortis cujo inventário ou arrolamento se processe neste Estado; nas transmissões a título de doação quando o doador tiver domicílio neste Estado, ainda que os bens se situem em outra unidade federativa. Se o doador residir ou for domiciliado no exterior, ou se o de cujus possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país, o imposto também é devido ao Estado (i) se o bem, sendo corpóreo, se situar no território do Estado, ou, se estiver no exterior, quando o herdeiro, legatário ou donatário for domiciliado neste Estado; (ii) sendo incorpóreo o bem, quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado, ou, caso ocorra no exterior, desde que o herdeiro, o legatário ou donatário tenha domicílio neste Estado. O escopo destas notas é analisar a compatibilidade das normas da legislação paulista com a Constituição Federal relativamente à competência para instituir esse tributo.
2. Repartição constitucional de competência tributária.
A Constituição Federal fixa as normas substanciais regentes da atribuição de competência para instituir tributos. Como ensina a doutrina especializada, ela não cria tributos, "mas apenas distribui competências tributárias para as entidades da Federação criarem os respectivos tributos através de leis ordinárias" [01]. A Lei Maior determina quais são os tributos que podem ser instituídos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (impostos, taxas e contribuição de melhoria – art.145), ou apenas pela União (empréstimos compulsórios – art. 148, e contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas – art. 149) [02]. Em passo subseqüente, ela estabelece quais são os impostos de competência da União (art. 153), dos Estados (art. 155) e dos Municípios (art. 156).
Como observa José Afonso da Silva "a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências para o exercício e desenvolvimento de sua atividade normativa. Esta distribuição constitucional de poderes é o ponto nuclear da noção de Estado federal" [03]. Essa é outra razão e de envergadura incontraditável para sustentar-se que as normas constitucionais que dispõem sobre a repartição constitucional de competência tributária são de observância compulsória pelas unidades federadas. Afinal, a forma federativa, além de alicerce fundamental, foi alçada a cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4°, I). De tal sorte, as entidades federadas não podem, no exercício de sua competência tributária, contrariar as normas constitucionais que regulam sua distribuição. Se o fizerem, infringirão essas regras e contrariarão o princípio federativo.
3. A competência para instituição do imposto de transmissão.
A Constituição distinguiu entre a transmissão de bens que tem por causa o falecimento do transmitente (causa mortis) e a que decorre de ato de vontade do transmitente. Esta, por sua vez, pode resultar de ato de liberalidade ou de ato oneroso.
Para a instituição do imposto sobre a transmissão causa mortis e sobre a transmissão decorrente de ato voluntário de liberalidade, a competência foi conferida aos Estados e ao Distrito Federal, qualquer que seja a natureza dos bens (imóveis, inclusive direitos a eles relativos, ou móveis); para instituí-lo sobre a transmissão por ato voluntário oneroso, a competência foi outorgada aos Municípios, quando se tratar de bens imóveis ou direitos a eles relativos (art. 156).
Dessas disposições resulta que (i) a transmissão de quaisquer bens, inclusive imóveis e direitos reais a eles relativos, a título causa mortis ou a título de liberalidade, configura hipótese de incidência do imposto de transmissão de competência estadual e (ii) a transmissão de bens imóveis ou direitos reais a eles relativos, a título oneroso, é hipótese de incidência do imposto de transmissão de competência municipal. Não há incidência sobre a transmissão onerosa de bens móveis, razão pela qual não podem os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios instituir o imposto em causa sobre ela. Falta-lhes competência constitucional para fazê-lo.
A distribuição de competência entre os Estados e o Distrito Federal para instituição do imposto de transmissão causa mortis e sobre doações, funda-se em critérios diversos. Tratando-se de imóveis ou direitos a eles relativos, o imposto foi inserido na competência dos Estados ou do Distrito Federal da situação do bem; quanto aos móveis, que abrange também créditos e títulos, o poder jurídico de tributar, relativamente à transmissão causa mortis, foi conferido ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou ao Distrito Federal se neste tramitar a sucessão. Em hipótese de transmissão a título de doação, a competência é do Estado onde tiver domicílio o doador, ou do Distrito Federal se aí domiciliado. No entanto, se o doador for domiciliado ou residir no exterior, ou se o de cujus possuía bens, era domiciliado ou residente ou teve seu inventário processado no exterior, a Constituição não repartiu, desde logo, a competência tributária para sua instituição, cometendo à lei complementar a atribuição de fazê-lo.
4. A lei paulista e as normas constitucionais.
Como referido, ao repartir entre os Estados e o Distrito Federal a competência para a criação do imposto, a Constituição Federal, quanto aos bens imóveis, fê-lo com suporte no critério da situação do bem, tanto para a transmissão causa mortis quanto para as doações. Em qualquer delas, o imposto é de competência do Estado, ou do Distrito Federal, onde se situa o bem. Com relação aos bens móveis, utilizou-se do critério do local onde se processa a sucessão, quando se cuida de transmissão causa mortis, e do local do domicílio do doador, quando se trata de transmissão voluntária a título de liberalidade. Naquela, o imposto é de competência do Estado, ou do Distrito Federal, onde se processa a sucessão; nesta, compete ao Estado, ou ao Distrito Federal, onde tiver domicílio o doador.
4.1. Bens imóveis.
Nos termos do art. 79 do Código Civil (C. Civ. – Lei 10.406, de 10.1.2002), "são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente", considerando o art. 80 como imóveis para os efeitos legais "os direitos reais sobre imóveis e as ações que os assegurem" (inciso I) e "o direito à sucessão aberta" (inciso II).
Segundo a lei paulista (art. 3°, § 1°), o imposto é devido no caso de transmissão de propriedade ou domínio útil de bem imóvel ou de direito a ele relativo, situado no Estado, mesmo que o inventário ou arrolamento se processe em outra unidade federativa ou no exterior (transmissão causa mortis) e, tratando-se de doação, ainda que o doador, o donatário ou ambos não tenham domicílio no Estado. Assim, desde que o bem imóvel esteja situado no Estado de São Paulo, a transmissão de sua propriedade, ou de direitos a eles relativos, seja a título causa mortis ou a título de liberalidade, gera obrigação tributária em favor do Estado. Nos termos da lei bandeirante é irrelevante para a incidência do tributo o local onde se processe a sucessão do de cujus, ou onde seja domiciliado o doador, porque sendo, em tais hipóteses, a situação do bem o critério determinante da competência impositiva, se ele se localiza no Estado de São Paulo a este é devido o imposto [04].
Essa disposição legal compatibiliza-se com a norma constitucional (CF, art. 155, § 1°, I) na parte em que atribui ao Estado de São Paulo o imposto de transmissão quando o bem imóvel, ou o direito a ele relativo, se situe em seu território, ainda que a sucessão se processe, ou o doador tenha domicílio, em outro Estado ou no Distrito Federal. A leitura isolada dessa norma constitucional também ensejaria o entendimento de que o imposto seria da competência do Estado bandeirante quando a sucessão se processe no exterior, ou o doador lá for domiciliado, desde que o imóvel se situe em território paulista.
A interpretação sistemática dos incisos do § 1°, do art. 155, da Constituição, conduz, no entanto, a outra conclusão. A Constituição no inciso III desse dispositivo atribuiu à lei complementar nacional a tarefa de dispor sobre a competência para a instituição do imposto, tanto na transmissão causa mortis como na transmissão voluntária por ato de liberalidade, qualquer que seja a natureza dos bens transmitidos, sempre que o doador tiver domicílio ou residência no exterior e sempre que o de cujus possuía bens, era domiciliado ou residia ou teve sua sucessão processada no exterior. Vale dizer, o legislador constituinte, no caso o originário, porque não houve alteração normativa com o advento da EC 3/93, distinguiu entre os fatos jurídicos ocorridos em território nacional e aqueles verificados no exterior. Sempre que um desses fatos (domicílio ou residência do doador ou do finado, posse de bens do finado ou processo de sua sucessão) ocorra fora do território nacional, isto é, no exterior, a competência para instituição do imposto deve ser disciplinada por lei complementar nacional. A interpretação do inciso I, do § 1° desse artigo não pode levar a exegese que conflite com o estatuído por seu inciso III, nem esvaziar o sentido e conteúdo desta disposição. Como argutamente observou o Ministro Sepúlveda Pertence, "na interpretação de qualquer texto normativo, mormente do texto constitucional, é impossível admitir a hermenêutica que, de um lado afirma uma exigência e de outro permite que essa exigência seja fraudada: (...)" [05].
Explicando, com outras palavras: se, situando-se o imóvel em território do Estado ou do Distrito Federal, portanto, em território nacional, o imposto for da competência da unidade federativa onde este estiver situado, ainda que a sucessão do de cujus se processe no exterior ou nele seja domiciliado o doador, a norma do inciso III que, nessas hipóteses (domicílio do doador e processo de sucessão no exterior) determina caber à lei complementar dispor a quem caberá a competência tributária, resultaria absolutamente inócua, porque o poder jurídico de criação do imposto já estaria outorgado pelo inciso I. Como não se deve presumir que a lei – e muito menos a Constituição – contenha palavras inúteis, deve o intérprete harmonizar suas disposições para evitar conflitos, contradições e a inanidade de um preceito da Lei Suprema, no caso o citado inciso III.
Nesse sentido é a lição de Ives Gandra Martins, segundo o qual "o inc. III, portanto, figura como exceção à regra do inc. I, no concernente aos bens imóveis e direitos relativos, e ao inc. II no concernente aos bens móveis, títulos e créditos". [06]
Cabe registrar, sob esse aspecto, que a norma do inciso III, do § 1°, do art. 155 é inovadora. A Constituição de 1967, na redação dada pela EC 1/69, embora tratando, unicamente, do imposto de transmissão de bens imóveis, cuja competência outorgou aos Estados e ao Distrito Federal, atribuiu-a "ao Estado onde está situado o imóvel, ainda que a transmissão resulte de sucessão aberta no estrangeiro" (art. 23, § 2°). Se o constituinte de 1988 não reproduziu essa norma é porque, sem dúvida, afastou-se da diretriz normativa até então vigente, inovação essa retratada no comando inscrito na Lei Máxima que delegou à lei complementar essa incumbência.
Por tal razão, a expressão "ou no exterior" constante do § 1°, do art. 3°, da Lei 10.705, de 20.12.2000, do Estado de São Paulo, é inconstitucional, porque conflita com o inciso III, do § 1°, do art. 155, da Constituição, que cometeu à lei complementar nacional a tarefa de regular a competência tributária para instituição do imposto de transmissão causa mortis quando o de cujus tiver o seu inventário processado no exterior.
Com relação ao imposto de transmissão decorrente de doação de imóvel, a interpretação da parte final da lei paulista deve ser conforme a Constituição. Dela deve ser excluída a hipótese de o doador ser domiciliado ou residir no exterior, caso em que também cabe à lei complementar regular a competência impositiva (CF, art. 155, § 1°, III, "a"), não podendo, destarte, o legislador ordinário, na ausência de lei dessa natureza, instituir o tributo. Mas foi o que pretendeu o legislador paulista ao asserir que o imposto é devido, "no caso de doação, ainda que o doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência neste Estado", o que abrange a hipótese de doador domiciliado ou residente no exterior. Assim, para que essa norma não transgrida o preceito constitucional dela deve ser subtraída a hipótese de doador domiciliado ou residente no exterior.
4.2. Bens móveis.
Quanto aos bens móveis, títulos e direitos em geral, prescreve o § 2°, do art. 3°, da referida lei paulista, que sua transmissão fica sujeita ao imposto, inclusive quando se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal, se o inventário ou arrolamento se processar no Estado de São Paulo ou neste for domiciliado o doador. Bens móveis, nos termos do art. 82 do Código Civil, são "os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social". Também o são, para efeitos legais, "os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes", bem como "os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações" (Cód. Civil, art. 83, II e III). Assim, os títulos e os direitos em geral, a que se refere o preceito da lei paulista, são considerados bens móveis.
A disposição legal em tela tem respaldo no art. 155, § 1°, inciso II, da Constituição, porque nos termos da norma fundamental o imposto de transmissão causa mortis relativamente a bens móveis compete ao Estado onde se processar o inventário ou o arrolamento dos bens do finado, ainda que eles se localizem em outra unidade federada. A mesma regra constitucional também outorga ao Estado, ou ao Distrito Federal, onde tiver domicílio o doador a competência para a instituição do tributo, sendo irrelevante se os bens móveis objeto do ato de liberalidade se encontram em outra unidade federada.
O art. 4° da lei bandeirante, no entanto, partindo da distinção entre bens corpóreos e incorpóreos, determina:
"Art. 4° - O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o de cujus possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:
I - sendo corpóreo o bem transmitido;
a) quando se encontrar no território do Estado;
b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado;
II – sendo incorpóreo o bem transmitido:
a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado;
b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado".
Essa disposição da lei pretende, com suposto fundamento na corporalidade ou não do bem transmitido, contornar o estatuído pelo art. 155, § 1°, inciso III, da Constituição. Fá-lo partindo dos mesmos pressupostos contidos na regra constitucional, quais sejam, ter o doador domicílio ou residência no exterior ou nele existirem bens do de cujus, estar seu domicílio ou residência ou tramitar o processo de sua sucessão. Foi exatamente à luz desses fatos jurídicos que o constituinte cometeu à lei complementar federal a atribuição de regular a competência para a instituição do tributo. Conseqüentemente, não pode o legislador ordinário, sorrateiramente, com lastro na materialidade ou não do bem transmitido e em outros argumentos irrelevantes (domicílio do beneficiado, local do ato de transferência ou liquidação etc.) criar tributo para o qual não lhe foi outorgada competência constitucional, a qual somente poderá vir a ser exercitada nos limites estatuídos pela lei complementar nacional ainda não editada.
Por conseqüência, o art. 4°, da Lei 10.705, de 23.12.2000, do Estado de São Paulo, é inconstitucional.
5. A função da lei complementar na espécie.
De acordo com o art. 24 da Constituição compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário (inciso I). No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais (CF, art. 24, § 1°), atribuição essa que não exclui a competência suplementar dos Estados (CF, art. 24, § 2°). No entanto, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades (CF, art. 24, § 3°).
A interpretação literal dessas disposições e sua apressada aplicação à espécie examinada poderiam levar à conclusão de que, não tendo sido editada a lei complementar a que se refere o inciso III, do § 1°, do art. 155 da Constituição, aos Estados e ao Distrito Federal caberia, no exercício de sua competência plena, produzir a legislação necessária à instituição do tributo nas hipóteses albergadas pelo referido preceito constitucional. Dir-se-ia mesmo que a falta dessa lei complementar inibiria os Estados e o Distrito Federal de exercerem sua competência tributária, impedindo-os de instituir o tributo em tais casos, sendo de rigor, assim, a incidência da norma do § 3°, do art. 24, da Constituição, sob pena de as unidades federadas ficarem manietadas.
Apesar de sua aparente consistência, o argumento, no entanto, não prospera. Embora aplicável a outros temas abrangidos pela competência legislativa concorrente de que cuida o art. 24 da Lei Maior, em matéria tributária deve a questão ser elucidada à vista de outros preceitos constitucionais.
Não obstante a lei complementar prevista no art. 146, inciso III, da Constituição, contemple entre suas funções a de estabelecer normas gerais em matéria tributária, faceta que poderia identificá-la à lei de normas gerais referida pelo § 2°, do art. 24 da Constituição, essa não é a única atribuição da lei complementar em tema tributário. A esta cabem, além de outras, as funções, igualmente relevantes e substanciais, de dispor sobre conflitos de competência entre a União, os Estados e o Distrito Federal e de regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (CF, art. 146, I e II).
A solução de conflitos de competência em matéria tributária é questão de importância transcendental em razão de ser a federação um dos princípios fundamentais inscritos na Lei Suprema. Conquanto tenha a Constituição delineado as linhas substanciais da repartição de competências entre as entidades componentes da federação, à evidência não logrou o constituinte, por força das imperfeições da própria natureza humana, prescrever solução para todas as hipóteses possíveis. Curial, assim, que conferisse à lei complementar constitucional, notadamente em matéria tributária, que é pilastra da própria autonomia das entidades federadas, a competência para dirimir os conflitos ocorrentes. É inegável que nas hipóteses elencadas no inciso III, do § 1°, do art. 155, da Constituição, a possibilidade de ocorrência de conflitos de competência entre as unidades federativas salta aos olhos, razão pela qual o constituinte, certamente na impossibilidade de afastá-los imediatamente, outorgou à lei complementar nacional a atribuição de regular a competência impositiva. A solução de conflitos de competência não é matéria que se confunda com o estabelecimento de normas gerais, de que são exemplos as indicadas pelas alíneas do inciso III, do art. 146, da Lei Magna. Por conseguinte, a solução desses conflitos não se compreende na competência conferida à União pelo § 2°, do art. 24, da Constituição, não dispondo os Estados, relativamente a esse tema, de competência supletiva ou complementar, porque quanto a ele não há competência concorrente.
A questão não é nova. Em sua redação primitiva, o inciso II, do art. 155, da Constituição outorgava aos Estados e ao Distrito Federal o poder jurídico de instituir "adicional de até cinco por cento do que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos territórios, a título do imposto previsto no art. 153, III, incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital". Era o denominado adicional estadual de imposto sobre a renda, conquanto sua incidência estivesse circunscrita aos lucros, ganhos e rendimentos de capital. As entidades federadas instituíram-no, editando as respectivas leis estaduais, mas não demoraram a surgir os inevitáveis conflitos de competência relacionados à exigibilidade desse adicional. Como não poderia deixar de ser, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente por meio de dois recursos extraordinários interpostos contra a lei do Estado do Rio de Janeiro. Depois através de ação direta de inconstitucionalidade aforada contra leis de vinte e um (21) diferentes Estados da Federação, que a Corte Máxima desmembrou em tantos processos quantas eram as leis impugnadas. Em sessão de 18.2.1993, o Plenário da Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da lei carioca ao acolher ambos os recursos extraordinários interpostos. Naquele de n° 136.215-RJ, publicado no Diário da Justiça de 16.4.1993, a ementa tem o seguinte teor:
"Adicional estadual do imposto sobre a renda (art. 155, II, da CF).
Impossibilidade de sua cobrança, sem prévia lei complementar (art. 146 da CF). Sendo ela materialmente indispensável à dirimência de conflitos de competência entre os Estados da Federação, não bastam, para dispensar sua edição, os permissivos inscritos no art. 24, § 3°, da Constituição e no art. 34, e seus parágrafos do ADCT.
Recurso extraordinário provido para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 1.394, de 2.12.88, do Estado do Rio de Janeiro, concedendo-se a segurança" (citação extraída da ADIN 628-AC, in RTJ 150/419).
A ementa do acórdão prolatado no Recurso Extraordinário n° 148.887, publicada no Diário da Justiça de 14.5.1993, é do seguinte teor:
"Adicional do imposto de renda, em favor dos Estados-membros. Inconstitucionalidade da Lei n° 1.394, de 2.12.88, do Estado do Rio de Janeiro.
Os Estados e o Distrito Federal só podem instituir tributos, independentemente da Lei Complementar nacional tributária a que alude o artigo 146 da Constituição Federal, com relação a tributos autônomos, de sua competência, e tributos esses que não possam ter reflexos em outros Estados, no Distrito Federal e na própria União.
Sentido e alcance dos §§ 3°, 4° e 5° do artigo 34 do ADCT, bem como do § 3° do artigo 24 da parte permanente da Constituição Federal.
O adicional previsto pela Carta Magna, no inciso II do art. 155, é tributo da competência exclusiva dos Estados e do Distrito Federal, mas não só não é ‘autônomo’ – como adicional que é, está inequivocamente vinculado ao imposto de renda como instituído e disciplinado pela União –, senão também sua disciplina pelas leis locais pode dar margem a conflitos de competência entre Estados e Distrito Federal, de um lado, e entre estes e a União Federal, de outro, pelos seus inevitáveis reflexos nacionais.
Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n° 1.394, de 2.12.88, do Estado do Rio de Janeiro" (citação extraída da ADIN 628-AC, in RTJ 150/419).
Na referida ação direta, julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar n° 20, de 29.12.1998, do Estado do Acre, o plenário do tribunal tornou a sufragar a exegese acolhida nos citados recursos, constando de sua ementa que
"o adicional de imposto de renda, de que trata o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e pelo Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no ‘caput’ do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo parágrafo 3° do art. 24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos parágrafos 3°, 4° e 5° do art. 34 do ADCT" (RTJ 150/419).
Diversas decisões sobre a questão foram prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, todas no mesmo sentido (RTJ 151/50, 151/411, 151/612, 151/657, 151/726, 152/56, 152/298, 152/438, 152/756 e 153/73).
Embora o art. 155, II, da Constituição (em sua redação primitiva) claramente definisse ser dos Estados e do Distrito Federal a competência para instituir o referido adicional, sem delegar à lei complementar nacional a incumbência de dispor a respeito, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade das leis estaduais que o criaram. Para tanto, ancorou-se na inexistência da lei complementar nacional que disciplinasse os conflitos de competência decorrentes da instituição dessa exação, tendo por inaplicável à espécie da norma contida no § 3°, do art. 24 da Lei Maior.
Em se tratando do imposto de transmissão, a norma do inciso III, do § 1°, do art. 155 da Magna Lex, é por si excludente da eventual incidência do § 3° de seu art. 24, dispensando-se mesmo o auxílio da regra inscrita no inciso I do art. 146. Com efeito, ao dispor sobre a competência para a instituição do imposto de transmissão, a Constituição apenas a outorgou aos Estados e ao Distrito Federal nas hipóteses constantes dos incisos I e II, do § 1°, do art. 155, sendo explícita ao prescrever que o referido imposto "terá a competência para sua instituição regulada por lei complementar" nos casos indicados em suas alíneas "a" e "b" do inciso III, do § 1°. Vale dizer, o constituinte não definiu, de imediato, a quem compete a criação e exigibilidade do tributo em tais hipóteses, determinando, ao contrário, que a competência para tanto deverá ser definida pela lei complementar nacional. Logo, é inconteste que em se tratando de doador domiciliado ou residente no exterior, de falecido que nele possuía bens, era domiciliado ou residente ou aí tem processada sua sucessão, não desfrutam os Estados e o Distrito Federal de poder jurídico para sua instituição. Só dela gozarão se e na medida em que assim estatua a lei complementar nacional.
A questão, por conseqüência, diz respeito à própria competência para a criação do tributo e não às normas gerais a que aludem os §§ 2° e 3°, do art. 24 da Constituição. Normas gerais não se confundem com regras atributivas de competência, até porque a competência do ente é pressuposto necessário para dispor sobre normas gerais. Ora, os referidos parágrafos do art. 24 jamais conferiram aos Estados e ao Distrito Federal competência para a disciplina de conflitos entre quaisquer entidades federadas e muito menos lhes conferem poder jurídico para que eles se auto-atribuam competência que a própria Carta Magna determinou fosse regulada por lei complementar nacional.
6. Síntese conclusiva.
Das observações feitas cabe concluir:
a) pela inconstitucionalidade da expressão "ou no exterior" constante do § 1°, do art. 3°, da Lei n° 10.750, de 28.12.2000, do Estado de São Paulo;
b) pela necessidade de dar-se à parte final desse mesmo preceito, interpretação que o concilie com a Constituição, o que se obterá excluindo-se de sua compreensão a hipótese de doação feita por pessoa domiciliada ou residente no exterior;
c) pela inconstitucionalidade do estatuído pelo art. 4° da mesma lei paulista;
d) pela inaplicabilidade do disposto no 24, § 3° da Constituição, ante a ausência da lei complementar exigida pelo inciso III, do § 1°, de seu art. 155.
Notas
- MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário, 2ª ed., Forense, 1994, 2° volume, p. 19. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário, 9ª ed., Forense, 2005, p.36.
- De ressalvar, quanto às contribuições, a relativa ao custeio do regime previdenciário dos servidores públicos, que também pode ser instituída pelos Estados, Distrito Federal e Municípios (CF, art. 149, § 1°, na redação da EC 41/2003) e a de custeio do serviço de iluminação pública, que pode ser instituída pelos Municípios e pelo Distrito Federal (CF, art. 149-A acrescido pela EC 39/2002).
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 21ª ed., Malheiros, 2002, p. 475.
- Conforme preceitua o § 1°, do art. 3° da Lei paulista, "a transmissão de propriedade ou domínio útil de bem imóvel e de direito a ele relativo, situado no Estado, sujeita-se ao imposto, ainda que o respectivo inventário ou arrolamento seja processado em outro Estado, no Distrito Federal ou no exterior; e, no caso de doação, ainda que o doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência neste Estado".
- Voto proferido na ADIN 234-1-RJ, RDA 203/173.
- MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, obra conjunta com Celso Ribeiro Bastos, 1990, Saraiva, 6° volume, tomo I, p. 380.