Foi aprovada nesta segunda-feira (02/02/2009) a tão aguardada súmula vinculante n° 14 do Supremo Tribunal Federal, a qual conta, com certeza, com os aplausos dos penalistas brasileiros.
Antes de qualquer coisa, quadra a leitura do enunciado: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".
Assim, acompanhando uma onda de defesas pelos direitos humanos e devido processo legal, a súmula vem consagrar o tão discutido direito de acesso ao inquérito policial.
Diz-se tão discutido porque o acesso aos inquéritos policiais sempre encontrou uma série de restrições, aliás, é fácil ler ainda hoje nos livros de processo penal que o inquérito é uma peça administrativa meramente informativa de natureza sigilosa e inquisitiva. Enfim, não é preciso dizer muito sobre os problemas do mencionado "sigilo" num país que sofreu tanto com os "segredos" dos porões da ditadura militar.
O Código de Processo Penal brasileiro, publicado em 03 de outubro de 1941, frisa-se, contando com 67 anos de existência e um título específico sobre inquérito policial, já não é a palavra a ser seguida. Lê-se em seu artigo 20 o dever de assegurar o "sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade". A Alemanha nazista também costumava justificar todas as suas crueldades como proteção do "são sentimento do povo"...
Com a mentalidade típica de um governo que se mantinha por meio de um golpe de Estado dado por Getúlio Vargas (Estado Novo) e que convivia com a segunda guerra mundial, é de se esperar que ideais democráticos e humanitários não constassem como prioridade nas leis penais brasileiras.
Mas, felizmente, respiramos hoje novos ares, e o código de processo penal brasileiro já obteve boas inovações com a mini reforma do ano passado, composta por três leis. Além disso, o país conta hoje com uma comissão de juristas instituída pelo Senado brasileiro que visa formular o novo Código de Processo Penal (ver o site: http://www.senado.gov.br/novocpp/).
Enfim, esta esperança de mudanças efetivas se fortalece mais uma vez com a acertada, porém tímida, súmula vinculante. Nesta, pode-se encontrar principalmente duas brechas que ainda devem render o suor dos advogados penalistas.
A primeira delas recai exatamente sobre os ditos elementos de prova "já documentados em procedimento investigatório". A expressão é problemática, pois ainda pode encontrar a barreira da clássica sustentação de que as diligências em curso não precisam estar disponíveis nos autos, tal como fez o art. 8° da Lei de interceptações telefônicas ( Lei n° 9.296/96). [01]
Enfim, há espaço para que a autoridade policial selecione o que pode estar disponível, lacuna incompatível com a abertura que se pretende. Obviamente, é de se entender "acesso amplo" no sentido literal, pois a restrição a critério do órgão investigador provavelmente recairá sobre os dados importantes para a defesa.
Uma segunda parte da súmula que merecia melhor explicação é de que o acesso recai somente sobre dados que "digam respeito ao exercício do direito de defesa".
Não é nova a alegação de que o advogado só pode ter acesso aos documentos que interessam ao seu cliente, havendo inúmeros julgados que vedam o acesso aos dados de outros investigados do inquérito. [02] Contudo, quem deve fazer esta seleção? Enfim, como posso saber se meu cliente tem interesse nos dados omitidos?
Não raro são imprescindíveis para a incriminação certos documentos que aparentemente tem ligação indireta com o investigado, por exemplo, basta ver que a interceptação telefônica de um dos envolvidos no inquérito pode render indícios fortes de práticas criminosas de outra pessoa.
Como resta claro, deixar a critério da autoridade policial definir qual parcela do inquérito diz respeito a cada investigado significa também inviabilizar uma defesa justa e eficaz.
Não é de esquecer, nesse processo de redemocratização, que o Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/94) já assegura aos advogados o acesso aos autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, podendo, inclusive, copiar peças que interessar ao seu cliente (art. 7º, inciso XIV). A Constituição Federal também diz em seu art. 5°, inciso LV, que os litigantes em processo administrativo e acusados em geral tem direito ao contraditório e ampla defesa.
Em outras palavras, as inovações visam ampliar o contraditório e a ampla defesa na fase pré-processual, princípios que finalmente nossos juristas tem reconhecido como peça chave para um sistema criminal que pretende apagar o histórico inquisitorial de longa data.
Nesse passo, é de se reconhecer de uma vez por todas que só há verdadeira justiça penal se a defesa tiver acesso aos dados que indicam uma possível incriminação. Como é possível se defender sem saber a acusação e o que a embasa?
Enfim, o sistema penal brasileiro precisa entender que é possível se fazer investigação sem supressão de direito fundamentais, e não se levante contra isso o interesse público de punir. Os direitos humanos mostram que o caminhar democrático põe por terra a velha sobreposição do direito público sobre o direito individual de defesa, a direção é inversa.
Ninguém duvida que uma boa tortura pode levar mais rapidamente à elucidação de um crime. Da mesma forma, não se questiona que uma investigação inquisitorial, fortalecida com o sigilo, pode ser mais eficaz na descoberta de crimes e criminosos. O ponto é: a que preço se consegue tais condenações e quais os efeitos que isso gera no sistema de liberdades individuais?
Notas
- Sobre o ponto, no STF: HC 90232. No STJ, conferir: HC 58377 / RJ.
- Sobre a questão, no STF: HC 88190. No STJ: HC 95979 / SP e HC 65303 / PR.