Há um ditado machista que já deu um punhado de confusões na política brasileira (proferido desastradamente por Maluf e depois, Marta Suplicy): "se é inevitável o estupro, relaxa e goza". É uma frase canalha, mas tem lá sua moral duvidosa: tire algum proveito da desgraça.
Anos 80. Sarney fez a moratória da dívida externa, que tanto o PT – que não a fez, por sinal - defendia. Era o presidente-por-acidente um corajoso, um bravo e era seu bigode um jardim socialista? Não! Ali não havia coragem, mas cofres vazios. O Brasil quebrara. Logo, moratória! Mas alguns se iludiram com o arroubo.
Tímidos cães, acuados nos becos, viram feras de ataque. São corajosos? Não. Apenas, não têm saída, e o instinto de sobrevivência os convoca. Já que para a carrocinha se vai, porque não como fera?
Problema. Nenhuma estuprada realmente se alegra, acadêmico udenista não se torna um Guevara e a regra é que viralata é necessariamente um cachorro medroso.
Essas foram as reflexões que, de pronto, me ocorreram quando do anúncio, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, da proposta discutida recentemente, na 3ª Reunião da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, de descriminalização da maconha para uso próprio. O pessoal está mesmo jogando a toalha, pensei. E com a derrota dos esforços de controle da drogadição, ainda querem posar de progressistas, continuei pensando. A proposta será levada à ONU, que, pelo seu Escritório Contra as Drogas e o Crime (UNODC), se reunirá em março, havendo possibilidades de que adote a proposição, abrandando ainda posições com relação a outras drogas.
O problema é que, quando se fala sobre o fracasso da política de combate às drogas, parte-se sempre de um raciocínio simplista: "Repressão não adianta". Bom, depende das informações de quem fala, e mais, depende das intenções do discurso. Em qualquer tentativa de tapar buracos de estrada, não basta somente jogar areia e asfalto nas crateras. É preciso ver de onde vieram. O Brasil, hoje, tem crateras estruturais e, claro, não há repressão (remendos de areia) que as feche. E a coisa vem de fundo, de baixo, de sismos subterrâneos. Por isso, repressão só, é coisa mal intencionada mesmo. Não tem como dar certo. Agora, posar de progressista com o próprio fracasso da política incompleta? Não seria melhor reconhecer, sim, suas falhas, mas, além de expurgá-la de excessos, complementá-la com o que necessita para dar certo?
Ninguém mais pretende que seja o usuário dependente tratado como criminoso, embora ainda seja polêmica aqui ou ali, esta posição. Compreende-se a controvérsia, pois na verdade, ao contrário dos crimes contra o patrimônio, em que criminaliza-se a receptação para inibir furtos e roubos, tenta-se combater o tráfico descriminalizando-se a posse para uso. De certa forma, permite-se, e até se estimula, o mercado e a demanda, e se quer fechar a fábrica! Mas até acho esse contrassenso necessário. Em tese, a receptação de res furtiva não vicia, não cria dependência nem vira doença. O usuário dependente, por sua vez, é um doente. A ele, os benefícios da Saúde Pública, com os devidos rombos no erário, afinal, que a sociedade arque, em impostos, com o ônus de ter permitido que a ambiência e o tráfico viciassem aquele sujeito.
Mas o que não dá pra aceitar é o conjunto de atitudes e propostas que, até na boa intenção de livrar o dependente da opressão policial, acabam, ingenuamente em minha opinião, contribuindo para a propagação da mazela do vício. Mais ou menos como ocorreu com a tentativa de eliminar a discriminação contra os portadores do vírus HIV. Isso, aliado ao avanço da eficácia da medicação, que melhorou a qualidade de vida dos pacientes, tem feito a nova geração retornar a comportamentos de risco que pareciam vencidos. Horrorizei-me na última semana, com um adolescente infrator que participava de um grupo numa instituição, em que eu dirigia um debate. A dada altura, o assunto passou pelo uso da camisinha. Além das queixas normais dos rapazes aos incômodos do artefato, embora confessando aqui e ali uns vacilos ou "esquecimentos", ninguém contestou sua necessidade. Entretanto, um dos mais jovens do grupo afirmou, com, todas as letras: "Não uso, senhor. Morrer de AIDS não é vergonha. É coisa de macho".
Recente reportagem do O Globo falou sobre a prática homossexual do "bareback" em que portadores de AIDS são "disputados" exatamente para sexo suicida, desprotegido, numa adrenalina idiota de um tempo insano, de gente insana caminhando para a cova. Evidente, como alguns especialistas notaram, que essa postura surgiu da pacificação em torno da aceitação social dos portadores. Muitos morreram para que se alcançasse esse respeito e tolerância, além de aumento da cautela. Mas está aí, o efeito colateral: uma geração jovem, que desconhece dramas recentes, talvez passando a achar a AIDS tão "normal" como uma "gripe sexual" ou algo similar.
Claro que não estou defendendo que se volte ao preconceito contra portadores do HIV. Apenas alerto para certos equívocos de discurso em termos de conteúdo ou de ênfase. Repressão às drogas não dá certo? Depende. Na Europa, a Suécia reprime tanto quanto os Estados Unidos. Nestes, a repressão não resolveu tudo, a drogadição aumenta. Já no país nórdico, o consumo e o tráfico se reduziram. Portugal fez liberalidades (descriminalizou até 10 doses). O que aconteceu? O tráfico se adequou aos limites dos pacotinhos. O crime só fez aumentar suas bancas de varejo.
Quanto ao aumento da drogadição, americana ou brasileira, vejamos. O que leva uma pessoa à escravidão das drogas? Predisposição genética, ambiência e experimentação. Da herança genética vem o veneno incubado que a ambiência favorece a experimentação dispara. E a ambiência se prova cada vez mais relevante. As angústias contemporâneas de uma sociedade vazia de valores espirituais e morais, onde o egoísmo dita os comportamentos da busca do prazer imediato, do lucro imediato, do "tudo ao mesmo tempo agora", são um fator tão extremado que se converte em circunstância inédita de ambiência, que fomenta o interesse pelo escape que tranqüiliza, ou pela "vitamina" que acelere os ritmos necessários a que o organismo suporte a insana competição com o relógio.
Os Estados Unidos, campeões de individualismo nefasto têm ambiente propício ao aumento da drogadição. Logo, dizer que lá a repressão falhou é uma afirmação que não percebe o que poderia ocorrer se a repressão não existisse: uma explosão de consumo ainda mais relevante, apocalíptica, talvez. Já no Brasil, além do individualismo, temos a desproteção social, a miséria, a incerteza do amanhã, o estreitamento das possibilidades de futuro tanto para as novas gerações quanto para os de meia-idade. Os extremos etários que não encontram colocação no mercado gerando a angústia que favorece a experimentação química. Agora, retire-se a repressão e mantenha-se o estímulo dado pelas circunstâncias contemporâneas. É a explosão. E isso significa mercado, grana, impostos, gente que embolsa lucros. Por isso, o título. Acho que FHC é um cara bem intencionado, mas que a maconha que defende não cheira bem, ah isso não cheira mesmo.
Não acho que deva cessar a repressão. Acho deve parar de ser utilizada como instrumento de dominação política. Acho que deve cessar seu uso como fator de opressão classista. Acho que deve ser tratada com a conveniente formação dos agentes de segurança em direitos humanos. Mas entendo que se deve acoplar à repressão uma firme disposição de seguir os mandamentos da Carta das Nações Unidas e da Constituição Brasileira que apontam os objetivos de construção de sociedades fraternas, igualitárias, onde todos tenham seus afetos e seu pão. Sem isso, não há prevenção que dê certo. É como educar alguém para o mundo do emprego, e ao mesmo tempo dinamitar as possibilidades da economia que geraria esses empregos. Educar alguém para a saúde, mas injetar-lhe nas veias, pela ambiência, pelas mídias, todos os estímulos à busca da depressão e da doença.
FHC refere-se também, como se tornou comum hoje em dia, à baixa lesividade da maconha, mito que precisa urgentemente ser derrubado. Se, em geral, ninguém morre de overdose de maconha, isso não a torna uma droga "branda". É uma droga-escada, é um produto alienante, e o discurso do "não faz tanto mal assim" ajuda à sua propagação. Converse com adolescentes que estão escravizados pela dependência química. Pergunte como começaram. Você, provavelmente, ouvirá: com álcool e maconha. Uma, a droga (droga, sim! conserte sua lista, ANVISA!) legalmente aceita e a outra, cada vez mais, socialmente tolerada.
Isso tem me indignado profundamente. Quem viveu de perto a experiência de lidar com drogaditos sabe dos riscos desse discurso. Por isso é que ninguém pode pretender supremacia nesse debate. O pessoal da segurança quer a liberação, porque acha – equivocadamente – que reduziria a criminalidade. A galera da educação e das ciências da mente, em geral, permanece combatendo a droga como alternativa de vida saudável, porque conhece, no maconheiro, por exemplo, as crises de ausência, a dificuldade de concentração, o isolamento social que tantas vezes ocorre. Já o pessoal do direito se divide entre maximalistas e minimalistas do penalismo. Uns querem mais repressão, outros, descriminalização geral. Ah, não esqueçamos de economistas – conservadores à frente – que pretendem abocanhar os recursos que a liberação geral traria aos cofres do mercado. Por ora, eu fico com os pais e mães conscientes, preocupados, aflitos, vendo o que o mundo de hoje está fazendo com a educação que tentam dar a seus filhos – claro que me refiro àqueles que ainda tentam educar realmente seus filhos. O mundo contemporâneo está transformando em farrapos e cinzas a educação e a autoridade familiar. Liquefazendo-as, como diria Bauman.
A ponto de, naquele grupo de meia centena de jovens traficantes de classe média presos recentemente numa operação da Polícia Federal contra o tráfico de drogas sintéticas, ter surgido um pai que confessou que seu filho consumia maconha em casa com sua autorização, nefasta posição que muitos defendem. Bom, esta aí o resultado: filho traficante.
Ok, amigos, presidentes, ex-presidentes, secretários de segurança e todo mundo, enfim: não prendamos mesmo as pessoas doentes, não ponhamos a ferros os dependentes químicos. Mas, devagar com o andor. Não façamos do combate a uma discriminação ou estigmatização social uma propaganda do equívoco. Não aumentemos o estoque de doentes. Se não tapar os furos da canoa não adianta ficar tirando água com a caneca.
Perceba, leitor, que hoje, pela Lei 11.343/06, já não se prende o usuário. Mantém-se a criminalização, apenas no sentido em que remete ao juiz criminal a advertência ou remessa do usuário a programas educativos ou terapêuticos. Mas a proposta sobre a maconha apresentada por FHC - além de esbarrar numa razão que remete ao "jogar a tolha" do início do texto: "é a droga mais consumida" - não é clara neste ponto. Pode apenas retirar o caso totalmente da esfera criminal, inclusive evitando apreensões policiais de usuários, mas pode, ainda, obrigar à definição da quantidade que seria considerada como porte para uso próprio, tema do qual a lei brasileira sempre se esquivou, delegando ao juiz o exame do caso concreto. Aí mora o risco, a exemplo do que ocorreu em Portugal do tráfico de camelotagem.
Mas, à margem dessas questões técnicas, me preocupa mesmo é o discurso como um todo. No livro que escrevi "Assim Caminha a Insensatez - a Maconha, suas marchas, contramarchas e marchas à ré" (Usina das Letras/Vermelho Marinho, 2008) busco combater essas posturas (como a própria Marcha da Maconha) que, mal compreendidas, ou divulgadas sem temperamentos, podem aumentar nosso caos social. Cansei de ver futuros emborcados na lama.