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Por uma nova cultura dialógica no processo.

O princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa

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Agenda 27/02/2009 às 00:00

3.A SALA DE AUDIÊNCIAS: EM BUSCA DE UMA MELHOR CONVIVÊNCIA

Já destacamos que a sala de audiência é um dos locais do grande aprendizado sobre a convivência humana. Mas não é o único. O aprendizado sobre novos caminhos para a realização da Justiça Dialógica, nos é ensinada nos corredores dos Fóruns, nas filas dos Cartórios, na ante-sala dos Gabinetes dos Juízes e dos Desembargadores, nos elevadores dos Prédios da Justiça, na sala dos advogados, no suor e nas lágrimas das partes, transeuntes dos Fóruns. Basta observar, ouvir esses ruídos, perceber com todos os sentidos que nos falta "vontade de escuta". Só assim transformaremos a experiência em aprendizado apto a colaborar na construção de identidades cidadãs.

Nas palavras de Carolina Pinheiro:

A audiência de instrução e julgamento é um dos momentos mais importantes do processo no qual, pretensamente em busca da descoberta da verdade, as provas orais são produzidas, as escritas são completadas, e em tese há o debate entre as partes. Inicialmente, os peritos e assistentes técnicos respondem os quesitos da perícia; seguem-se os depoimentos do autor, do réu e as declarações das testemunhas arroladas por cada parte, respectivamente. Durante qualquer depoimento, somente com a autorização do juiz pode haver intervenções. Ao fim, o juiz permite que ambos os procuradores façam perguntas ao depoente, que se realizam tradicionalmente de forma indireta. As perguntas são dirigidas ao juiz, que as defere ou não. Em caso de deferimento, o magistrado repete a questão ao depoente. O caminho da resposta é o mesmo: o depoente responde e o juiz repete suas palavras em discurso indireto para o escrevente. (PINHEIRO, 2006, p. 24-25)

O ritual das audiências é, assim, formal e monótono. O juiz fica no centro, o que expressa uma relação vertical. Os juízes são chamados de Vossa Excelência, os procuradores de doutor e doutora e as partes de senhora e senhor. O juiz exerce o poder de polícia podendo retirar da sala de audiências os que não se comportarem convenientemente. (PINHEIRO, 2006, p. 25).

Esse ritual e a forma de tratamento utilizadas nas salas de audiências, desprezam os sentimentos sob o pretexto de preservá-los. Obrigam o juiz e o Ministério Público a serem imparciais em suas decisões e pareceres. Um processo frio e hostil que acaba desumanizando a justiça, afastando o juiz das partes e o Ministério Público de sua mais importante missão: a de proteger os interesses e o convívio da sociedade.

A mudança de símbolos das salas de audiência pode desestabilizar alguns dos estados de dominação que obstruem os fluxos de comunicação. É possível mudar o texto alterando o contexto. Modificar as posições dos corpos e a linguagem presa a jargões técnicos pode transformar as relações. Tais mudanças movimentam imaginários, pois fragilizam os lugares comuns e abrem espaço para a criatividade. (PINHEIRO, 2006, p. 27).

Nestes termos, usando a criatividade e sensibilidade, podemos utilizar meios que desestabilizem os lugares comuns e seguros organizados pelos rituais jurídicos e, desta forma, poderemos pensar em mudanças e ações transformadoras que humanizem a justiça e melhorem as relações sociais.


4.ORALIDADE E ESCUTA: EM BUSCA DA CULTURA DIALÓGICA

Buscamos agora uma compreensão sobre os princípios da oralidade e da escuta, conjugando-os de uma forma criativa, para que juntas, sejam capazes de forjar uma nova cultura dialógica no processo. Analisaremos os princípios, principalmente, sob o prisma do paradigma dominante, ou seja, individualmente, a fim de conjugá-los, ao final, em busca de uma ação transformadora que nos indique caminhos para a criação de condições materiais para uma nova cultura que evidencie e privilegie o diálogo.


5.O PRINCÍPIO DA ORALIDADE

O princípio da oralidade é uma das bases para uma escuta criativa. Porém encontramos muitas barreiras na legislação pátria e nos rituais jurídicos, que impedem e dificultam o exercício da fala. A dificuldade reside, em parte, no tempo curto que se dispõe para exercitar a oralidade nas audiências. Outra dificuldade é o exercício da escuta.

Quem fala não quer falar para as paredes. E mais, quem fala não quer ser mal julgado. Sabemos que prolifera na nossa sociedade a cultura de que quem fala demais é bobo, de péssima educação. Porém, uma coisa parece certa: quem fala quer ser ouvido. E, assim, dá-se conta da relação entre oralidade e escuta, ou seja, não existe outra forma de exercitar um sem o outro.

A oralidade pressupõe a palavra, mas o que é a palavra? Conjunto de fonemas que possuem um significado? Palavra vem do grego parabole e significa fala, meio pelo qual podemos mudar algo, permissão ou direito de falar. Também está ligada à palavra grega logos; vem também do latim, verbum, que pode significar linguagem oral ou escrita.

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Aristóteles, ao proferir sua famosa frase de que o homem é um animal político, referiu:

Que o homem é um animal político em um grau muito mais elevado que as abelhas e os outros animais que vivem reunidos é evidente. A natureza, conforme freqüentemente dizemos, não faz nada em vão; ela deu somente ao homem o dom do discurso (lógos). (ARISTÓTELES, 2007, p. 56).

No direito, porém, o discurso tem sido mais utilizado para manter relações de poder do que veículo para emancipação e autonomia dos indivíduos. Neste ínterim, a doutrina processual tradicional estabeleceu algumas verdades e mitos sobre a oralidade, as quais tentaremos desconstruir. Tal, não é tarefa fácil, pois os apegados ao paradigma hegemônico não acreditam em novas perspectivas, vendo-as como utopias, sonhos, subversão ou algo inatingível.

As salas dos Tribunais e das audiências também não parecem dispostas a tornar o diálogo agradável. Pelo contrário, conforme lembra Calamandrei,

As grandes salas, onde a intimidade é nula, incitam naturalmente o orador a levantar a voz, tal como a solidão convida a cantar. Como se pode deixar de levantar a voz e de ampliar os gestos na grande sala das câmaras reunidas do Supremo Tribunal? Aí, o advogado sente-se minúsculo e perdido entre a majestade das colunas; enxerga os juízes ao longe, lá no fim, por detrás da bancada alta, tal como ídolos imóveis no fundo de um templo, olhados por um binóculo ao contrário. Esta sala com a sua ornamentação solene é um convite à grande eloqüência.[...] (CALAMANDREI, 2006, p.40).

Outra questão proposta por Calamandrei a qual nos filiamos é sobre o discurso de defesa. Segundo o referido autor, "o discurso de defesa não deve ser um monólogo estirado, mas um diálogo vivo com o juiz, que é o verdadeiro interlocutor e que responderia com seus olhos, os seus gestos e suas interrupções". (CALAMANDREI, 2006, p. 43).

Apenas acrescentamos que, em nosso entendimento, não só o juiz é o verdadeiro interlocutor, mas também o Ministério Público, os advogados, testemunhas e, principalmente, as partes, que são os maiores interessados em uma solução para seus conflitos, pois neles incidirão diretamente os reflexos da decisão judicial.

Segundo Calamandrei o advogado deve gostar das interrupções feitas pelo juiz, porque provam que seu discurso não deixa o magistrado inerte e indiferente. Interromper quer dizer: reagir, e a reação é o melhor reconhecimento da ação estimulante. O discurso deve ser substituído por um diálogo: a arte oratória perde mas a justiça há de ganhar. (CALAMANDREI, 2006, p. 43)

Segundo o processualista italiano, "o discurso dos advogados é considerado por muitos juízes como um momento de férias mentais. Quando o advogado se cala, o juiz volta em espírito à sala". (CALAMADREI, 2006, p. 44).

Mas porque o discurso tornou-se desinteressante? Será pela repetição e pela falta de criatividade destes mesmos advogados? Será que todos nós também não somos responsáveis por essa compulsão repetidora?

Esta é uma questão delicada que esbarra em muitos temas, como no código de ética do advogado, na práxis jurídica, ou seja, em algo que foi historicamente solidificado e ritualizado. O novo e o diferente podem causar estranhamento e até repulsa. Mudar os papéis, possibilitar o novo, abrir caminho para que uma cultura dialógica traga mudança nos papéis dos advogados, juízes e promotores, encontrará resistência como costuma ocorrer em qualquer mudança. Mas não parece que temos outra alternativa. Aliás, uma cultura dialógica caracteriza-se por sua abertura, por sua incompletude, por sua capacidade de transformação e de acompanhar o eterno devir do mundo. A cultura dialógica no processo é uma construção, possui uma capacidade imaginativa, lúdica, carnavalizadora.

Luis Alberto Warat, inspirado na obra de Bakhtin, viu a possibilidade de carnavalizar as práticas discursivas jurídicas para outorgar-lhes as capacidades criadora e transformadora. Para o referido autor:

O primeiro traço decisivo, a meu ver, de uma prática discursiva carnavalizadora passa por seu auto-estabelecimento como uma ordem semiológica democrática. Pode-se dizer que, a partir do momento em que nos situamos no interior de um processo de significações carnavalizadas, não é mais possível a sociedade representar-se na imagem de uma comunidade orgânica e unificada, na imagem de um mundo "um" firmemente definido na razão e na imagem de uma sociedade que conta papéis claramente determinados.

Busca-se, assim, uma versão democrática do mundo, num exercício de democracia participativa, pois só desta forma poderemos abrir espaço para que o Direito crie. Para tanto, precisamos de meios processuais que aumentem a participação social. Assim, o processo deixaria de ser um processo de regras instituídas para ser um local de invenção permanente, um lugar de escuta, que possam ser levadas sugestões, críticas e quem sabe, na própria sentença, pudessem constar essas inconformidades, sugestões e críticas, aptas a colaborar em outros processos.

Atualmente, porém, o processo ao receber seu número de origem passa pelo leito de Procusto. Ou seja, partes e advogados sabem que ali um longo e árduo caminho se inicia até a sala do juiz. No caminho, o processo será analisado superficialmente e colocado em uma pilha ou prateleira onde será acomodado com outros iguais, até que alguma nobre e generosa alma possa levá-la a julgamento. A forma como o sistema de justiça se habituou e engessou suas práticas não levou em conta a polissemia e a pluralidade da vida, que nunca se acomoda e está sempre em movimento.

Porém, ainda esbarramos em muitos outros obstáculos, um deles é o medo. Sabemos que o medo paralisa, vitimiza, distrai. O princípio da oralidade recebeu um apelido na práxis jurídica, que a nomeou como a prostituta das provas, por ser a mais fácil de ser comprada. Podemos perceber uma vontade de utilizar mais proficuamente o princípio da oralidade, mas como acima referido, esta vontade esbarra no medo e na desconfiança do homem no seu próximo. Segundo, Darcy Ribeiro,

O problema maior da oralidade não reside no campo do direito, mas sim no campo da Filosofia e, em especial, na Ética, pois, na medida em que se agrava a crise ética, agrava-se a crise nas relações humanas. Vivemos no mundo da aparência, onde os valores são facilmente alterados e dificilmente absorvidos pelo espírito humano, e, por conseguinte, na pessoa do magistrado. A oralidade corre em sentido contrário, na proporção em que pressupõe maior credibilidade, confiança na pessoa do homem juiz, porquanto um procedimento eminentemente oral significa aproximar o juiz do fato.[...] (RIBEIRO, 1999, p. 172).

Ocorre que, para nós, este não é o maior problema da oralidade. O preceito fundamental para trabalharmos a oralidade é a escuta. A oralidade para o autor acima citado esbarra na questão ética e isso é abandonar e tornar inócua a cultura dialógica.

É muito comum na doutrina processual, encontrar autores que identifiquem o campo da prova como o mais fértil para a oralidade, como é o caso do mesmo processualista Darcy Ribeiro. Segundo ele, a colheita da prova deve ser tanto quanto possível oral, visto que a oralidade permite o contato direto do juiz com a prova, trazendo, uma maior simplificação e abreviação dos processos. (RIBEIRO, 1999, p.773).

Sendo assim, concordamos que é na sala da audiência que a oralidade é efetivamente posta à prova. Lá, o local do diálogo vivo, da escuta, da atenção, do respeito à diferença. Porém, identificamos que esbarrar em estereótipos jurídicos é uma oportunidade de desqualificar preconceitos e corrigir os erros criados no sistema jurídico processual. A oralidade só foi considerada a prostituta das provas porque o ouvido do juiz desacostumou-se a ouvir e este não mais prestava atenção ao que estava sendo dito. Mas qual a participação das partes e dos advogados neste processo? Para quê ouvir se depois tudo está papelizado?

Em busca da oralidade e da escuta no processo, encontramos alguns dispositivos que têm a oralidade como escopo, como é o caso do art. 2º, da Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, escolhendo a oralidade como um de seus critérios essenciais.

Já na legislação pertinente ao Código de Processo Civil, encontramos o parágrafo 3º do artigo 454 do CPC, que refere que se a causa apresentar questões complexas de fato ou de direito, os debates orais podem ser substituídos por memorais escritos. Porém, esta prática se tornou rotina até para as causas ditas "não complexas", o que demonstra que o referido dispositivo foi distorcido.

Em busca da oralidade perdida ainda encontramos o parágrafo 3º do art. 523 do CPC, que refere que das decisões interlocutórias proferidas na audiência de instrução e julgamento caberá agravo retido, devendo este ser proferido oral e imediatamente. Essa substituição da forma escrita pela forma oral de interposição, porém, é objeto de diversas críticas por parte dos advogados, apesar de ter por finalidade desenvolver a escuta e o diálogo.

Devemos ter em mente que o processo tem mais de uma finalidade, além de dar uma solução para o caso em concreto. Deve ser também um processo de aprendizagem. Não uma forma de educação tardia ou coativa, vigilante e disciplinadora, mas um processo de aprendizagem apto a criar condições de resignificar o conflito de modo a potencializar um ideal emancipador ao processo.

Porém, para uma maior compreensão da oralidade, precisamos aliá-la à escuta, pois só assim poderemos vislumbrar a possibilidade de uma nova cultura dialógica.

Sobre a autora
Juliana Ribeiro Goulart

Advogada. Graduada em Direito pela PUC/RS. Pós-graduada em Direito Processual pelo CESUSC. Graduanda em Filosofia pela UFSC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOULART, Juliana Ribeiro. Por uma nova cultura dialógica no processo.: O princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2067, 27 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12351. Acesso em: 26 nov. 2024.

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