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Por uma nova cultura dialógica no processo.

O princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa

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27/02/2009 às 00:00
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6.O PRINCÍPIO DA ESCUTA OU O DIREITO DE SER OUVIDO

O princípio da escuta pode ser encontrado sob outra denominação na doutrina e nos textos normativos. Na Constituição Federal de 1988 o direito de ser escutado faz parte do devido processo legal, habita tanto no direito à ampla defesa quanto no direito ao contraditório.

Tratando os direitos humanos em uma perspectiva mais ampla, Luis Aberto Warat refere-se aos mesmos como Direitos Humanos da Alteridade. E o direito de ser escutado é um dos mais relevantes destes direitos. (CARVALHO;GOULART, 2007, p. 176).

Segundo Warat, o direito de ser ouvido é de grande relevância, pois é a partir do contato com o outro que produzimos a diferença e construímos a nossa subjetividade. Ouvir o outro é uma forma do sujeito construir sua própria identidade.

Porém, exercitar a escuta é um dos direitos mais complexos de serem observados, pois resta-nos pouco tempo para exercitar a escuta, falta qualificação profissional, falta vontade de escuta. Sendo assim, além de vontade, precisamos de profissionais aptos à formação de novos operadores. Só assim é possível pensar no desenvolvimento de uma cultura dialógica no processo.

Analisando a legislação e a jurisprudência, podemos perceber que o lugar da escuta e da oralidade é um elo perdido, um lugar da falta. Duas ilhas que precisam se encontrar para desenvolver a cultura da diferença. A partir dessa conjugação surgirá o novo e encontraremos abertura para a criatividade.

Sabe-se que essa falta de escuta na cultura jurídica se deve pela falta de exercício do saber ouvir. O homem sempre preferiu pensar em mecanismos para exercer seu individualismo. Exercitamos muito pouco ou quase nada a escuta criativa nos lugares comuns do direito, ou seja, nos Fóruns, nos Tribunais, nos Cartórios etc. Porém, não podemos ser injustos com alguns que já exercem esta tarefa social como é o caso da Escola Judicial e de Administração Judiciária do TRT/SC [09], que oportuniza aos juízes e aos funcionários da Justiça do Trabalho de Santa Catarina atividades de visita aos locais de trabalho de empregados de diversas profissões, cursos de aperfeiçoamento e de discussão de questões teóricas, práticas e interdisciplinares, aproximando diferentes realidades vivenciadas, humanizando a Justiça.

No ano de 2007, foi veiculada uma reportagem de televisão que mostrou a visita por juízes da referida Escola Judicial a uma mina de carvão localizada no Município de Forquilhinha, no sul do Estado de Santa Catarina, com o objetivo de conhecer com mais profundidade alguns dos aspectos daquela atividade, que são objeto de discussão na sala de audiências. A partir deste encontro com a diferença os juízes exercitam seus sentidos, o que lhes proporciona novos nuances e novos olhares sobre as causas postas a seu julgamento.

Outro exemplo de escuta nos é dada pelo juiz Gersino Donizete do Prado. Segundo o site www.exjure.com.br [10], especializado em temas jurídicos, o ato de sair do Fórum para realizar uma inspeção, antes de dar um parecer sobre a situação de mais de 500 famílias carentes residentes em uma área de manancial no Jardim Scaff, em São Bernardo do Campo, região do ABC paulista, fez com que o referido juiz da 7ª Vara Cível do município, recebesse indicação para o Prêmio Nobel da Paz.

Segundo o referido site de notícias, a ação que motivou a indicação foi a suspensão do processo de reintegração de posse dos moradores do Jardim Scaff - a desapropriação havia sido solicitada para a construção do trecho sul do Rodoanel. O magistrado percebeu que no Jardim Scaff há moradores que não invadiram a região, mas sim que compraram o terreno em que vivem, fatos que podem ser comprovados por documentação. Segundo ele, os que pagaram pela propriedade não serão retirados do local, e caso haja necessidade de desocupação, para ele é preciso criar estratégias para se evitar o confronto.

Ao comentar sua indicação, Gersino Donizete do Prado destacou que o Judiciário precisa conhecer melhor o tema daquilo que julga. Segundo ele, é necessário que o juiz saia do castelo, e não fique apenas no Fórum. Ele precisa conhecer a população e, principalmente, saber exatamente o que está julgando. Para ele, é dever da justiça pacificar os conflitos e valorizar a dignidade das pessoas, diminuindo as desigualdades sociais.

Assim, existe luz no fim do túnel, uma luz que insiste em não apagar, que brilha, que luta, que deseja iluminar novos caminhos para a escuta e para uma perspectiva dialógica no processo. Neste trabalho pretendermos fortalecer esta luz, para torná-la uma chama capaz de iluminar as mentes dos juristas para que percebam que sua tarefa é de extrema relevância para uma boa convivência na sociedade.


7. POR UMA NOVA CULTURA OUVINTE E DIALÓGICA NO PROCESSO:

Como criar condições para uma cultura dialógica no processo, ou seja, como fazer com que a escuta se dê de forma criativa?

Joaquín Herrera Flores ensina que os produtos culturais se constroem sempre em relação a outros produtos culturais com um determinado tipo de contexto. Todos dependem de todos. Não há criação cultural sem mestiçagem e sem intercâmbio. Ninguém tem o copyright cultural. Todos somos minorias no processo de humanização do nosso mundo, das relações que vamos construindo ao longo da história. (FLORES, 2007, p. 64-66).

Segundo o referido autor:

Criamos, transformamos o mundo e construímos novas possibilidades porque não estamos sós. São os "outros" os que garantem a esfera de possibilidades do novo; são eles que afirmam a existência de "fissuras" que nos permitem canalizar tal esfera de possibilidade em um sentido ou outro. (FLORES, 2007, p. 99).

Conforme Herrera, não podemos construir a verdade partindo de nós mesmos. Assim, temos que reconhecer a imperfeição do nosso sistema de convicções, pois só desta forma poderemos construir as condições materiais de igualdade e de reconhecimento exigíveis a partir de espaços culturais nos quais todas e todos possam fazer valer suas propostas e escolhas.

Precisamos assim, repensar o processo, aceitar e escutar as propostas de alteração, a partir das diferentes experiências e espaços culturais múltiplos. É necessário criar as condições materiais para este debate, que faça valer a democracia participativa. Em nosso entendimento, o discurso tradicional deve abrir espaço a outras vozes, e isso ocorre de forma ainda muito tímida, como, por exemplo, no instituto chamado amicus curiae [11].

Porém, é preciso ir além. Segundo Joaquín Herrera é preciso partir da "vontade do encontro". Para ele, "será a partir daí que todos teremos a possibilidade de criar algo que não existia antes, algo que tenha propriedades novas". (FLORES, 2007, p. 100).

Herrera, para incitar a mudança, propõe a lógica do vulcão. Segundo o autor o mundo não é um lugar pronto, com tudo dado, devemos converter nossas vidas em um campo de possibilidades criativas.

Segundo ele,

Não negamos a necessidade de encontrar estabilidades. Rechaçamos, sim, tudo o que nos impõe como dado de uma vez para sempre. A lógica do vulcão produzirá vertigem a quem não aceitar o caráter multiforme e metamórfico da condição humana. O que se repele é que haja uma única forma de gerir essa vertigem e a tendência de se impor o estático e o homogêneo como único âmbito do político, do ético e do cultural. (FLORES, 2007, p. 32).

A lógica do vulcão causará uma mudança de cena e dará muito trabalho pois é

Lógica que deve capacitar-nos para a ação e para o movimento, para uma práxis que nos permita compreender por que e para que existem as idéias e os valores. E, sobretudo, para aceitar o fato de que toda produção cultural – seja um romance, uma teoria ou uma norma jurídica – muda e se transforma ao largo das histórias pelas quais atravessa o ser humano, nesse contínuo processo de reação cultural em meio aos sistemas de relações em que vivemos. (FLORES, 2007, p. 33).

Assim, para o referido autor:

A reivindicação, assim, deve ser pela vida, pela alegria que produz a constatação da pluralidade, da diversidade, da multiplicidade e do contínuo movimento da realidade. Assumir o risco de viver com alegria é o que fará o vulcão do humano entrar em erupção em espaços onde as diferenças se encontrem e onde se criem as condições materiais para lutar contra todo tipo de injustiça. (FLORES, 2007, p. 33).

Mas sob que bases podemos qualificar a escuta como um habitante do processo junto com a oralidade? Como pensar em uma nova cultura processual que seja coerente e que ao mesmo tempo se mostre aberto às mudanças? O que lhe dará o ethos necessário transformador? Como mudar tristes realidades e criar paixões alegres?

Para o autor,

Somente precisamos prestar atenção ao que ocorre ao nosso lado, sentir a necessidade de vida do ser humano que grita em silêncio pelas ruas e reconhecer que, para poder desfrutar da dignidade, temos que construir elementos que potenciem nossa criatividade. Nesta tarefa, estamos envolvidos muito mais do que se pode pensar. Somente ao olhar ao nosso redor sentimos a presença de gente que segue acreditando no poder transformador da palavra e do gesto artístico como um meio de mudar mundo. Apesar do ensurdecedor ruído consumista que transforma a cultura em espetáculo, ainda podemos ouvir o pulsar de muitos corações.(FLORES, 2007, p).

Um primeiro exercício que indicamos, que mostra nossa fragilidade, finitude e sensibilidade, é ouvir o coração de outra pessoa. Encostar o ouvido no peito de alguém e ouvir o som da nossa fragilidade. Dentro de nós pulsa um coração e em poucos momentos podemos refletir sobre isto. Se você não pode ouvir, aperte o pulso de um amigo ou parente. Você vai sentir o pulsar de vida de alguém. Bem, este é um exercício para o saber ouvir. Mas isto não basta, é preciso ainda mais. O processo é contínuo, por toda a vida. Muitas vezes vai mostrar dificuldades. Ouvir, implica prestar atenção, ter tempo e disposição. É preciso sair do olhar em si mesmo e olhar o outro.

Joaquín Herrera acredita na arte a cooperar com a incitação ao movimento, ao deslocamento e à criatividade. Para ele,

[...] a grandeza da arte consiste em recordar-nos continuamente que podemos mudar de hábitos e percepções. Que podemos nos separar dos continentes – os marcos referenciais e simbólicos que aprendemos para poder atuar em nosso mundo – e rumar para a invenção constante de ilhas – novos limites, novos hábitos, enfim, novas formas criativas de entender e atuar em nossas relações com os outros, com a natureza e conosco mesmos." (FLORES, 2007, p. 19).

Assim, a arte pode cooperar na tarefa do saber ouvir e no estímulo a uma cultura dialógica no processo. Isto ocorre porque a arte estimula nossa sensibilidade, incita à imaginação, à criatividade, a inventar novos rumos, novos olhares, novas sensações aptas a nos fornecer elementos, novos símbolos, novos significados, recriação, enfim, nos mostra a infinidade de possibilidades que existem à disposição do homem. Temos que estimular nossa tarefa criativa. Já temos, pois, os elementos necessários para criar essa ação transformadora, basta que as utilizemos em nosso favor. Apenas precisamos ir, agora, em direção das condições materiais para realizar esta transformação.

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Joaquín Herrera faz coro com a advertência de Michel Maffesoli, quando este último indica que [...] é preciso, imediatamente mobilizar todas as capacidades que estão em poder do intelecto humano, inclusive os da sensibilidade. (MAFFESOLI, 2005, p.27).

Ainda segundo o autor francês,

[...] é preciso saber desenvolver um pensamento audacioso que seja capaz de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao mesmo tempo, de compreender os processos de interação, de mestiçagem, de interdependência que estão em ação nas sociedades complexas. (MAFFESOLI, 2005, p.37).

A escuta criativa apresenta-se, assim, como uma das formas de abrir efetivamente o sistema de justiça ao exercício democrático de afirmação de subjetividades, que promove a aprendizagem autônoma das pessoas que fazem parte dos processos judiciais. (PINHEIRO, 2006, p. 5).

Nesses termos, buscamos um caminho de superação do racionalismo, que invoque todos os sentidos para libertar as nossas pretensões de verdades eternas, em busca de um caminho emancipador ao processo, e este só pode ser pensado em uma perspectiva dialógica, capaz de fazer soltar a voz, e preparar os ouvidos para uma tarefa libertadora que nos fará construir uma nova cidadania, uma nova cultura processual dialógica.


8.A ESCUTA CRIATIVA

Já vimos que para uma nova cultura dialógica no processo precisamos aliar oralidade à escuta, o que dará vida à escuta criativa. Porém, podem surgir algumas questões importantes que precisam ser esclarecidas.

Escutar criativamente é escutar de forma sentimentalista? Segundo Carolina Pinheiro, como esta muitas outras perguntas surgem, pois existe o medo de se confundir a dimensão afetiva do processo com explosões sentimentais. Para a referida autora, estas perguntas surgem no ideário moderno, porque não sabemos lidar com sentimentos que extrapolem nossos modelos de racionalidade. Assim, nossa primeira reação é negá-las, excluí-las, ao menos no ambiente de trabalho. Porém, estes sentimentos são apenas contidos e em algum outro momento serão extravasados. (PINHEIRO, 2006, p.34).

Nas palavras da referida autora,

[...] escutar criativamente é compor uma experiência hermenêutica de perseguir sentidos polifônicos, silêncios, sentimentos, expressões, desconfortos, menos texto e mais contexto. Essa busca sensível é o que permite reconhecermos os mecanismos de coerção e controle que se materializam nos ritos judiciais. (PINHEIRO, 2006, p.36).

A escuta criativa trabalha um roteiro democrático participativo aberto, pois quando ouvimos e criamos em uma audiência ela deixa de ser apenas um ato processual-burocrático e passa a ser um momento de singularização da subjetividade, pois estaremos exercendo nossa autonomia. (PINHEIRO, 2006, p.37).

Criar é mais do que um exercício de autonomia, é um exercício de democracia. Exercitar a escuta criativa,

[...] Constrói relações democráticas no nível da disciplina dos corpos e não das leis e programas políticos, que não alcançam as capilaridades das relações de poder. Isso não significa, contudo, abandonar a lei, negar o poder judiciário, nem ceder a um relativismo anárquico com o qual não se pode minimamente operar o sistema de justiça. Trata-se de cogitar uma atuação que não considera o poder como algo que se possui, mas que se encontra em uma rede ativa e dispersa, produtora daquilo que somos. (PINHEIRO, 2006, p. 39).

A escuta criativa busca, assim,

[...] fortalecer a dimensão do reconhecimento entre os envolvidos em um processo judicial, que atualmente se olham nas salas de audiências, mas se comunicam como personagens desempenhando papéis estereotipados. Ela constitui uma proposta revolucionária em níveis moleculares porque, ao invés de propor inovações que estabelecem diferentes lugares seguros, mas igualmente imóveis, abre espaços para a edificação de subjetividades que lidem com a única certeza atual: a condição humana incerta e incompleta, e por isso mesmo, criativa. (PINHEIRO, 2006, p. 41).

Assim, a escuta criativa confere uma dimensão pedagógica ao direito. Pois ao escutar, ao iniciar uma ação transformadora, transformamos a nós mesmos. Exercitar a escuta é um processo de crescimento democrático da sociedade pós-moderna, apto a compor uma nova cultura processual. Escutar criativamente, pode ensinar sobre a nós mesmos, sobre os outros, e acima de tudo, sobre a diferença.

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Sobre a autora
Juliana Ribeiro Goulart

Advogada. Graduada em Direito pela PUC/RS. Pós-graduada em Direito Processual pelo CESUSC. Graduanda em Filosofia pela UFSC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOULART, Juliana Ribeiro. Por uma nova cultura dialógica no processo.: O princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2067, 27 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12351. Acesso em: 26 nov. 2024.

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