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A prisão como instituição paradigmática da sociedade de controle

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Agenda 26/02/2009 às 00:00

5. RELACIONANDO CAPITALISMO, PUNIÇÃO E PRISÃO – DUAS HIPÓTESES FOUCAULTIANAS

Como dito, questão intrincada é saber por que e como se deu a passagem de um modelo teórico construído sobre fatos para uma prática de controle. E mais, como esse modelo adotou a prisão como meio de punição por excelência.

Foucault reporta-se à existência, na Inglaterra, de grupos sociais de natureza paramilitar criados para sua autodefesa quando das grandes mudanças ocorridas no cenário político e econômico do fim do século dezoito e início do século dezenove.

Cita, como exemplos destas associações de origem burguesa/aristocrática, a Infantaria Militar de Londres e a Companhia de Artilharia, as quais se formaram espontaneamente no seio de grupos sociais abastados para garantirem a ordem nos bairros e cidades (FOUCAULT, 2002, p. 91).

Na sociedade mais economicamente desenvolvida do século dezenove, houve movimento semelhante ao das associações paramilitares, perpetrado, desta feita, por grupos econômicos – e não sociais – através de uma polícia privada, constituída para a defesa de seu "patrimônio, seu estoque, suas mercadorias, os barcos ancorados no porto de Londres, contra os amotinadores, o banditismo, a pilhagem cotidiana, os pequenos ladrões":

essas sociedades respondiam a uma necessidade demográfica ou social, à urbanização, ao grande deslocamento de populações do campo para as cidades; respondiam também [...] a uma transformação econômica importante, a uma nova forma de acumulação da riqueza, na medida em que, quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque, de mercadoria armazenada, de máquinas, torna-se necessário guardar, vigiar e garantir sua segurança (FOUCAULT, 2002, p. 91-92).

Uma vez observando-se essa demanda por vigilância em nome da proteção do novo capital, há que se indagar como foi possível ao Estado moderno de matriz burguesa dar origem a uma sociedade baseada no controle e vigilância moral de seus membros.

5. 1. Sociedade de controle

Houve, de fato, por parte do Estado, o que se pode chamar de uma tendência à apropriação dos mecanismos sociais de controle. De certa maneira, é através desta apropriação que o Estado passa a exercer sobre o indivíduo um controle de suas ações, empenhando-se na sua correção.

Esse movimento, que ocorreu em vários países do mundo, é objeto de análise por Foucault tanto na Inglaterra quanto na França.

5.1.1. O caso inglês

No início do século dezoito havia diversos grupos sociais originados da pequena burguesia espalhados pela Inglaterra. Tais grupos, com forte apelo religioso, tinham por objetivo garantir a ordem em seu interior, através da supressão dos vícios, bem como dos hábitos contrários à moral. Exercia-se, pois, um forte controle difuso dos indivíduos, no seu aspecto moral, nas esferas populares da sociedade.

Foucault salienta, porém, que a manutenção da ordem moral empregada no interior destes pequenos grupos nada mais era do que a tentativa de escapar à sanha punitiva do Estado que, à época, contava com mais de 300 casos (infrações) que previam como punição a pena de morte.

Assim, vê-se "que era muito fácil para o poder, para a aristocracia, para os que detinham o controle sobre o aparelho judiciário exercer pressões terríveis sobre as camadas populares":

para escapar desse poder judiciário os indivíduos se organizavam em sociedades de reforma moral, proibiam a embriaguez, a prostituição, o roubo, etc, todo o que permitisse ao poder atacar o grupo, destruí-lo... Trata-se, portanto, mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva (FOUCAULT, 2002, p. 93).

Ocorre que, no decorrer do século XVIII, esse controle difuso e popularesco passou a ser suscitado, cada vez mais, pelas classes mais ricas da sociedade inglesa – aristocracia, clero, nobreza – e o que era um instrumento para a autodefesa contra o controle penal do Estado passou a ser um aliado do poder político para o controle social (FOUCAULT, 2002, p. 93).

Não é difícil imaginar o interesse que teriam os detentores do poder no controle moral dos membros da sociedade. Exercendo este tipo de controle, naturalmente preventivo, evitar-se-ia a ocorrência de delitos, o que era mais vantajoso do que simplesmente remediá-los, sancionando o autor de um dano já consumado e, certamente, irreparável.

O passo seguinte a esse deslocamento vertical do controle foi conferir a ele - o controle moral - o status de controle penal, através da criação de uma legislação específica [05], permitindo, assim, a expansão da repressão penal do Estado em ambientes de cunho moral.

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Observa-se, assim, a passagem do controle exercido através de grupos e comunidades, marcadamente religiosas, desloca-se através das classes sociais, hierárquica e verticalmente estabelecidas, de modo a chegar ao ápice do Poder Político.

5.1.2. O caso francês

Na França ocorreu um processo diferente, haja vista o aparelhamento estatal mais robusto imposto pela monarquia absoluta francesa.

O país já possuía, pelo século XVIII, um instrumento para-judiciário - a polícia -, bem como grandes prisões, cujo exemplo clássico é a Bastilha. Não obstante, havia também uma forma de controle espontâneo exercido horizontalmente pelos súditos através de um instrumento monárquico. Tal era a lettre-de-cachet [06].

A lettre-de-cachet era utilizada principalmente pelo poder real, como um temível instrumento de punição. Contudo, permitia-se também ao indivíduo comum solicitar uma lettre-de-cachet, fazendo valer, em um fato cotidiano, uma punição real [07]:

a lettre-de-cachet consistia, portanto, em uma forma de regulamentar a moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou dos grupos – familiares, religiosos, paroquiais, regionais, locais, etc. – assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem (FOUCAULT, 2002, p. 97).

Porém, durante a greve de relojoeiros ocorrida em 1724, foram patrões que solicitaram uma lettre-de-cachet que ocasionou a prisão dos revoltosos. O ministro do rei, porém, recuando de sua decisão, pretendeu cancelar a ordem expedida. A corporação dos relojoeiros, então, tomou a frente na querela trabalhista e solicitou ao rei a manutenção da ordem.

Esse é um exemplo de como um instrumento de controle moral passou a ser utilizado para fins econômicos sobre a população operária incipiente.

Foucault observa que a prisão, enquanto instrumento de punição, surgiu exatamente das lettres-de-cachet. Isso porque quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, "esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente" (FOUCAULT, 2002, p. 98).

Interessante notar que a prisão se estendia até que o solicitante da lettre-de-cachet afirmasse que o preso tinha se corrigido. Surge ai, então, a idéia de aprisionar para corrigir que, nas palavras do autor francês, é uma "idéia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano" (FOUCAULT, 2002, p. 98).

Observa-se que, por uma via distinta, a França chegou a um modelo de controle semelhante ao inglês, onde a resposta punitiva do Estado está mais relacionada ao comportamento do indivíduo do que ao fato por ele praticado.

Em ambos os casos, esta forma de punição, modelo contemporâneo hegemônico de punição do Estado Democrático de Direito, não é fruto do projeto jurídico elaborado pelos primeiros jusfilósofos. Distancia-se desta formulação teórica para privilegiar os mecanismos de controle social.

5.2. O capitalismo

Foucault põe na base destes acontecimentos políticos a rápida implementação do capitalismo durante o século dezoito, o qual investe num modo de riqueza não mais estritamente monetário, como nos séculos precedentes, mas que valoriza os bens de produção, os estoques, as matérias-primas etc, produtos palpáveis e quase sempre expostos às vistas dos trabalhadores.

Isso porque a forma de produção feudal, em que o servo se ligava à terra e ao Senhor Feudal, passou a ser realizada com base na lei de oferta e procura. Nessa transição, a produção deixa de ser eminentemente agrícola e passa a ser manufatureira, deslocando-se a riqueza para as mãos dos donos dos meios de produção (ZAFFARONI, 2004, p. 248).

Assinala ZAFFARONI (2004, p. 249) que

durante esse processo, a população concentrada nas cidades se tornava perigosa; como não tinha trabalho e tinha fome, desprendeu-se dos controles sociais feudais, nada tinha a perder e estava geograficamente no mesmo lugar em que se concentravam as riquezas. A riqueza e a miséria concentravam-se nas cidades. Os crimes aumentavam. Era necessário apelar a um controle social exemplar, de contenção.

Tornara-se imperioso o controle dos indivíduos, uma vez que estes estavam agora diretamente ligados às riquezas das classes dominantes. Isto posto, não bastava defender a idéia de que a pena deveria reparar o dano, já que as classes desfavorecidas seriam incapazes de restituir à nobreza valores econômicos. Era necessária uma constante e efetiva vigilância dos potenciais criminosos.

Na Inglaterra, particularmente, a pilhagem dos estoques contidos nos armazéns e navios tornou-se freqüente no fim do século XVIII, fato que passou a exigir providências no sentido de impedir a ocorrência deste dano [08].

No caso da França, de outro lado, após a Revolução Francesa, ocorreu uma divisão das grandes propriedades rurais onde trabalhavam os camponeses, fragmentando-as em pequenas propriedades e inviabilizando o modo de subsistência dos trabalhadores rurais, concentrado na produção agrícola.

O aumento do grupo camponês desempregado e necessitado passou a requerer a atenção dos donos das propriedades, exigindo métodos para sua proteção. Mas as dificuldades exigiram que esses camponeses desempregados procurassem na cidade novos meios de subsistência. Assim, a propriedade a ser protegida, que no início era a rural, com o tempo passou a ser a industrial.

Deste modo, o controle da população miserável era uma necessidade. Era imperioso discipliná-la, adaptando-a ao novo modo de vida da cidade. Assim, através dos asilos foi possível albergar os pobres que não apresentavam riscos à população e através do cárcere foi possível segurar aqueles tidos por perigosos (ZAFFARONI, 2004, p. 264).

Percebeu-se que era mais vantajoso exercer uma repressão velada e difusa do que prosseguir com os espetáculos de suplícios, pautados em toda exemplaridade que podia irradiar de um bode expiatório posto no centro do teatro punitivo.

Observa-se, assim, que o desenvolvimento do capitalismo propiciou o surgimento de determinados meios de vigilância e controle do indivíduo, explicando, igualmente, a tomada dos meios de controle social difusos por parte do poder oficial.

Nota-se que o capitalismo, desenvolvido em um lento processo histórico, consistiu em mola propulsora para a criação de instrumentos destinados ao controle e repressão, ante a necessidade de proteção do capital.

5.3. A prisão

O século XIX assistiu ao desenvolvimento paulatino da prisão e ao expansionismo do modo de produção capitalista.

Nesse contexto, a prisão-pena concretizava o método adequado para se exercer o controle do indivíduo, ao passo que o capitalismo era uma das instâncias que reclamava esse controle.

Vê-se, nesse sentido, que não somente a prisão, mas a fábrica e demais instituições (escola, quartéis militares, hospitais) seguiam o modelo de controle, exercido tanto em nível moral como pedagógico, psiquiátrico, etc. A prisão nada mais era do que a instituição ideal para esse novo modelo. O supra-sumo da idéia do panoptikon.

Contextualizando, pois, a prisão, observa-se que ela possuía natureza semelhante às demais instituições sociais, diferenciando-se delas à medida em que atuava, particularmente, no indivíduo tido por criminoso. Seu mister circunscrevia-se a combater a criminalidade, segregando os agentes infratores de modo impedi-los de delinqüir.

Enquanto fruto de uma sociedade classificada por Foucault como sociedade de controle, a prisão tinha seus pressupostos assentados nos ideais presentes à época.

Releva ressaltar que tais pressupostos se baseavam, cada vez mais, no modelo econômico oriundo do capitalismo, inspirado na idéia de proteção dos bens de produção e impulsionado pela tensão decorrente dos conflitos entre classes.

Aceitando-se como plausível a idéia de conflitos entre classes, remetida, aqui, à idéia de conflito de interesses, nota-se que começa a se configurar, no cenário capitalista, a imagem do sujeito que vai representar a idéia da ameaça social. Começa a se desenvolver a figura do delinqüente que deve ser vigiado.

Tal sujeito, certamente, identificar-se-á, de alguma forma, com aqueles que não tomaram parte privilegiadamente no novo modelo de produção econômica.

Aí é possível observar o viés político da prisão, já que ela realiza um projeto de punição nascido no bojo da sociedade contratualista/burguesa.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Houve um momento em que o anseio punitivista do Estado Absolutista pós-feudal precisou ser limitado.

Atendendo a reclamos do Iluminismo houve a racionalização do poder punitivo por meio da reformulação teórica do direito penal, num contexto em que a pena só poderia ser aplicada a crimes previstos expressamente na legislação e que atingissem algum bem social relevante.

Houve, porém, seguindo-se a essa mudança penal, o abandono de seus princípios norteadores, com a simultânea valorização da prisão como forma de punição.

Ao mesmo tempo, houve uma tendência do poder não mais em punir os fatos praticados pelos criminosos, mas em controlar e corrigir quem se desviasse da norma. O instrumental para isso foi tomado dos próprios mecanismos de controle existentes nas camadas sociais populares.

Desse modo, o século XIX é marcado pela existência de um constante controle social e moral dos indivíduos. Um sem-número de instituições nascia modelado por este novo paradigma, do qual a prisão é o melhor exemplo.

Assim, para o fim do controle social exigido pela nova sociedade capitalista do século XIX, a prisão exsurge como eixo principal do esquema de punições dos modernos sistemas penais.


REFERÊNCIAS

ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem republicana: 1890-1921. São Paulo: editora Arte & Ciência/UNIP, 1997.

BECCARIA, Cesare, marchese di. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Rio Estácio de Sá, 2002.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

CARDOSO, Franciele Silva. Penas e medidas alternativas: análise da efetividade de sua aplicação. São Paulo: Método, 2004.

DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.

SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. Era a prisão eclesiástica, que excetuava a regra da prisão-custódia. Tratava-se do enclausuramento de sacerdotes infratores e hereges em mosteiros para que refletissem sobre seus erros. Nestes casos, a prisão, em si, era a punição dada aos infratores e, por isso, pode-se considerá-la antecedente da moderna pena privativa de liberdade (SCHECAIRA, 2002, p. 33-34).
  2. Mencionem-se, também, Lardizábal, Romagnosi, Carmignani e Carrara, entre outros, pensadores contratualistas que de maneiras diversas buscaram a fundamentação e justificação da pena.
  3. Art. 399 do Código Penal: Deixar de exercer profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei e manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes: Pena de prisão celular por quinze a trinta dias (ALVES, 1997, p. 25).
  4. Não mais o controle arbitrário peculiar às monarquias absolutistas, mas um exercido o mais veladamente possível, justificado cientificamente e até, certo ponto, limitado por garantias legais.
  5. Texto de 1804 escrito pelo Bispo Watson: "As leis são boas, mas infelizmente, são burladas pelas classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não as levam muito em consideração. Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas". "Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês, pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres" (FOUCAULT, 1999, p. 94).
  6. Ordem do rei dirigida diretamente a uma pessoa, obrigando-a a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
  7. Por exemplo: "maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos, famílias que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu cura" (FOUCAULT, 1999, p. 96).
  8. O criador da polícia na Inglaterra, Colquhoun, era alguém que a princípio foi comerciante, sendo depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres (FOUCAULT, 1999, p. 101).
Sobre o autor
João Carlos Carvalho da Silva

Aluno especial de Programa de Mestrado em Ciência Jurídica pela UENP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Carlos Carvalho. A prisão como instituição paradigmática da sociedade de controle. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2066, 26 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12354. Acesso em: 23 dez. 2024.

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