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O deferimento do registro de candidatura e a superveniente declaração de duplicidade de vínculos partidários.

Brevíssimas considerações acerca do fenômeno da relativização da coisa julgada no Direito Eleitoral

Agenda 19/02/2009 às 00:00

Antes mesmo de tecer as sucintas considerações que seguem, impõe-se advertir, de logo, que o escopo destas linhas consiste apenas e tão-somente na provocação dos intérpretes do Direito Eleitoral (advogados, promotores, juízes e servidores da Justiça Eleitoral) quanto à possibilidade de, em havendo declaração superveniente de pluralidade de vínculos partidários, quando já deferido o registro do candidato, ser decretada a nulidade do registro já aperfeiçoado, bem como ordenar-se a cassação do diploma do candidato registrado.

A doutrina não tem se debruçado com tanto fôlego sobre o tema, daí porque nos valemos destes apontamentos para ventilar uma das possíveis respostas entre as muitas que desejamos sejam trazidas à baila pelos dedicados militantes desse apaixonante ramo da Ciência Jurídica.

Quando se questiona da possibilidade de nulificar o registro do candidato em razão da superveniente declaração de duplicidade de vínculos, somos remetidos quase que automaticamente ao caríssimo valor da segurança jurídica. É dizer, admitir a hipótese pode nos parecer, à primeira vista, algo que contraria a própria estabilidade das relações jurídicas devidamente apreciadas e sobre as quais já tenha havido pronunciamento judicial.

Avançando nos questionamentos, pode-se até mesmo esbarrar-se com o robusto argumento de que, tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão no processo de registro de candidatura a discussão restaria definitivamente suplantada pela configuração da coisa julgada, instituto de grandes préstimos à segurança jurídica.

É a partir dessas fundamentais conexões entre a fase do registro, a filiação partidária (como condição de elegibilidade constitucional) e o instituto da "coisa julgada", que se tentará esboçar uma primeira resposta à problemática sugerida.

Não há se falar em coisa julgada quanto ao processo de registro, uma vez que, advindo supervenientemente declaração de pluralidade de filiações, conclui-se pela impossibilidade daquela decisão (de registro) operar seus efeitos, posto que estará em inescondível desconformidade com o regramento constitucional que sublinha a filiação partidária como condição absoluta de elegibilidade!

Por zelo didático, impõe sejam visitadas algumas das mais abalizadas reflexões sobre as condições e elegibilidade. Segundo José Jairo Gomes (Direito Eleitoral. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 127/131), in verbis:

O termo condição, na expressão "condições de elegibilidade, deve ser bem compreendido. Do ponto de vista lógico, trata-se de requisito necessário para que algo exista validamente, em conformidade com o ordenamento jurídico. Assim, as condições de elegibilidade são exigências ou requisitos positivos que devem, necessariamente, ser preenchidos por quem queira registrar candidatura e receber votos validamente. Em outras palavras, são requisitos essenciais para que se possa ser candidato, e, pois, exercer a cidadania passiva (sem destaques no original).

Assevera o ilustrado autor, portanto, figurarem as condições de elegibilidade como requisitos de preenchimento obrigatório por parte daqueles que pretendam registrar-se como candidatos, revelando-se ilógica a existência da candidatura, com todas os seus desdobramentos, sem a fiel observância das imposições constitucionais.

Nessa mesma marcha batida, sublinha Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral. São Paulo: Verbo Jurídico, 2008, p. 132), que, in verbis:

As condições de elegibilidade devem, necessariamente, ser preenchidas por qualquer pretenso candidato ao exercício de mandato eletivo. Ao preenchimento das condições de elegibilidade acresça-se que o candidato potencial deve, ainda, não incidir em qualquer hipótese de inelegibilidade, além de preencher as condições de registrabilidade.

Evidente, dessarte, que a viabilização do fim maior colimado pelo eleitor/candidato (o exercício do mandato eletivo) só poderá efetivar-se com o atendimento de todas as condições destacadas pelo autor mencionado, tanto as positivas, quanto as negativas.

Fato é que, acaso se admitisse a hipótese de coisa julgada do processo no qual o registro foi indevidamente deferido, tratar-se-ia, sem dúvida, de "coisa julgada inconstitucional". Assim, consoante lecionam Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria (In: Relativização da Coisa Julgada, Coordenação Fredie Didier Jr., Salvador: Juspodivm, 2008, p. 196), in verbis:

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a coisa julgada inconstitucional, à vista de sua nulidade, reveste-se de uma aparência de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria necessário o uso da rescisória. [...]. O certo é que ‘verificando-se a inconstitucionalidade directa de uma decisão judicial, não deve haver qualquer preocupação em evitar que o tribunal seja colocado na situação de contradizer a decisão anterior desconforme com a Constituição’. Ainda segundo Paulo Otero:

‘Admitir solução contrária, significaria reconhecer a autovinculação dos tribunais de um Estado de Direito Democrático a actos inconstitucionais e a ausência de uma tutela processual eficaz contra as inconstitucionalidades do poder judicial.

Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício, reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada, o que pode se dar a qualquer tempo

.

Neste mesmo rumo, Alexandre Freitas Câmara (Ob.Cit. p. 21/23), destaca em forte tracejo que:

Entre os mais graves casos de sentenças erradas estão, indubitavelmente, aqueles em que o conteúdo da sentença ofende a Constituição da República. Isto porque, como notório, a inconstitucionalidade é o mais grave vício que pode acometer um ato jurídico.

[...] À guisa de exemplos, valho-me aqui de alguns dos apresentados por José Augusto Delgado. São, pois, inconstitucionais as seguintes sentenças:

[...]

q) a que autorize alguém a assumir cargo público descumprindo os princípios fixados na Constituição da República e nas leis específicas; [...].

Ora, resta evidente que a manutenção dos efeitos da decisão de deferimento do registro, após a declaração de duplicidade de filiação, é inequivocamente inconstitucional, haja vista que o fator determinante para o seu deferimento (suposta regularidade das filiações) foi ao depois afastado.

Em outras palavras: a decisão que reconhece a duplicidade não constitui nova situação desfavorável ao candidato eleito, apenas declara a pluralidade de vínculos desde o momento do pedido do registro existente. O candidato eleito, que teve o seu registro deferido indevidamente, está no exercício de cargo público eletivo por força de decisão flagrantemente inconstitucional!

O deferimento do registro do candidato não se sobrepõe, ou mesmo faz desaparecer, a inelegibilidade supervenientemente declarada, portanto, sempre existente (desde o registro).

É que, por ter natureza declaratória, entende-se facilmente que a inelegibilidade não passou a existir a partir do pronunciamento judicial nos autos da duplicidade, estando presente ab initio.

Não se pode olvidar, ademais, que coisas diferentes são o registro de candidatura e a elegibilidade. Olhos voltados para a precisa lição da lavra de Pedro Henrique Távora Niess (Direitos Políticos – Elegibilidade, Inelegibilidade e Ações Eleitorais. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2000) e conclui-se que é a candidatura que nasce com o registro, e não a elegibilidade.

E outro não é o entendimento de Djalma Pinto (Direito Eleitoral, Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2008, p. 157 e 172), ipsis litteris:

Elegibilidade é o credenciamento do cidadão para postulação do registro de sua candidatura. Representa o primeiro estágio a ser percorrido por alguém para exercitar o seu direito de ser votado.

É de se ter na retentiva, destarte, que o candidato que prossegue na eleição, sendo até mesmo eleito, mas consciente da sua vinculação a mais de uma bandeira partidária, assume o risco de arcar com todas as conseqüências advindas de uma eventual declaração de duplicidade de vínculos.

E que não se alegue suposta violação ao princípio da celeridade, tão caro ao Direito Eleitoral, pois que nada, definitivamente nada (nem mesmo as imposições relevantes de ordem prática) podem relativizar o comando expresso da Carta Política de 1988 quanto à essencialidade da filiação partidária como condição positiva de elegibilidade, ou, como bem alinhavado pelo mestre cearense Djalma Pinto, "primeiro estágio a ser percorrido por alguém para exercitar o seu direito de ser votado".

Aliás, a jurisprudência do Colendo Tribunal Superior (TSE) tem sido assaz criteriosa no enfrentamento do tema, senão veja-se, por todas, a decisão que segue, in verbis:

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 4.556 – CLASSE 2ª – SÃO PAULO (213ª Zona – Osasco).

Relator: Ministro Fernando Neves.

Agravante: Carlos Aparício Clemente.

Advogado: Dr. Arthur Luis Mendonça Rollo e outro.

Agravado: Dionísio Alvarez Mateos Filho.

Advogado: Dr. Vicente Greco Filho e outro.

Transitada em julgado a decisão que declarou a duplicidade de filiação partidária (fls. 126-133), o juiz eleitoral cancelou o seu registro, determinado o cômputo de seus votos para a respectiva legenda e diplomando o recorrido Dionísio Alvarez Mateos Filho.

Não obstante, após o trânsito em julgado da decisão que assentou a duplicidade de filiações do candidato, a cassação do registro e a consequente perda do diploma são imediatas, independente de provocação, não havendo que se falar em ofensa à coisa julgada prevista no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna.

É que, neste caso, o candidato permanece na disputa por sua conta e risco e, ainda que eleito, poderá, quando resolvida a controvérsia, ter indeferido o registro e perder o seu diploma.

De outra parte, rejeito a alegação de violação do devido processo legal previsto no art. 5º, LIV, da Constituição da República, uma vez que foi ele respeitado tanto na fase do registro de candidatura como no próprio processo em que se discutiram suas filiações.

De mais a mais, não se pode esquecer do quanto disposto no artigo 469, do Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária ao Direito Eleitoral, que reza expressamente que "não fazem coisa julgada [...] I – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença [...]".

Salta à evidência que, com a superveniente declaração da duplicidade de filiações, há uma viragem quanto ao fundamento da decisão, pois o que se tinha como verdade (existência de filiação) é posteriormente afastado.

A verdade passa a ser a seguinte: o eleitor sempre esteve em dupla filiação, o que importa declaração de não preenchimento de condição de elegibilidade constitucional (filiação partidária), indispensável requisito de acesso aos cargos eletivos!

Posta esta moldura argumentativa, e apenas em jeito de provocação, admitimos sim a hipótese de nulificação do ato de registro do candidato filiado a mais de uma agremiação partidária, quando sobrevenha declaração da própria Justiça Eleitoral reconhecendo a referida pluralidade de vínculos.

Conseqüentemente, evidencia-se também adequada ao propósito da fidelidade partidária e à preservação da consciência de livre escolha do eleitorado, a imediata perda do mandato eletivo do candidato que desde o momento do registro não preenchia a condição de elegibilidade constitucional, devendo arcar com as conseqüências da sua deliberada assunção do risco.

Portanto, não só é possível, como se alinha com perfeição à vontade constitucional, a nulificação do registro de candidatura, bem como a cassação do diploma do candidato cujo registro foi indevidamente deferido, em razão de declaração superveniente da duplicidade de vínculos partidários.


Bibliografia:

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

ZÍLIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. São Paulo: Verbo Jurídico, 2008.

JÚNIOR, Humberto Theodoro; FARIA, Juliana Cordeiro de. O Tormentoso Problema da Inconstitucionalidade da Sentença Passada em Julgado. In: DIDIER JR, Fredie (org). Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Juspodivm, 2008.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. In: DIDIER JR, Fredie (org). Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Juspodivm, 2008.

NIESS, Pedro Henrique Távora. Direitos Políticos – Elegibilidade, Inelegibilidade e Ações Eleitorais. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2000.

Pinto, Djalma. Direito Eleitoral, Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2008.

Sobre o autor
Tiago Ayres

Advogado especializado em Direito Político, Eleitoral e Administrativo. Sócio do Prates & Maia Advogados e Consultores Associados. Especialista em Direito do Estado pela Unyahna/Juspodivm. Mestrando em Direito Público pela Unversidade Federal da Bahia (UFBA).Professor de Direito Eleitoral e de Direito Administrativo da Casa dos Concursos - Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AYRES, Tiago. O deferimento do registro de candidatura e a superveniente declaração de duplicidade de vínculos partidários.: Brevíssimas considerações acerca do fenômeno da relativização da coisa julgada no Direito Eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12360. Acesso em: 23 nov. 2024.

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