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Da Inconstitucionalidade da Lei Estadual de Proteção à Vítima e Testemunha

Agenda 05/03/2009 às 00:00

A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou no dia 17 de fevereiro de 2009, o projeto de lei nº. 43/2009, de autoria do conjunto de líderes dos partidos com representação no Parlamento paulista, que estabelece medidas de proteção a vítimas e testemunhas, por ocasião da elaboração dos boletins de ocorrência e da instrução dos inquéritos policiais.

Texto do projeto:

Art. 1º - Nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais devem ser adotadas, de ofício, as seguintes medidas de proteção às vítimas e testemunhas:

I – preservação de sua segurança em todos os atos;

II – restrição da divulgação de seus dados pessoais ao interesse da investigação policial, do Ministério Público e da Justiça;

III – determinação do sigilo de sua identidade, em caso de reconhecimento de indiciados.

Parágrafo único – As informações a que se referem os incisos II e III devem permanecer em envelope lacrado à disposição da Justiça. (grifei)

De acordo com a justificativa do projeto, as mencionadas providências têm como objetivo evitar que as vítimas e testemunhas sofram represálias pelo reconhecimento de indiciados e declarações e depoimentos prestados contra os investigados no procedimento criminal.

Na prática, se o projeto for sancionado pelo Chefe do Poder Executivo Paulista, os dados pessoais das vítimas e testemunhas não poderão constar expressamente nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais.

Isto significa que o advogado do investigado e os órgãos de imprensa não terão acesso à qualificação das vítimas e testemunhas, pois tais informações permanecerão ocultas em envelope lacrado à disposição da Justiça.

É importante esclarecer que o Provimento nº. 32/2000, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, disciplina a matéria em discussão, estabelecendo nos artigos 2º e 3º que:

Artigo 2º -

Quando vítimas ou testemunhas reclamarem de coação ou grave ameaça, em decorrência de depoimentos que devam prestar ou tenham prestado, Juízes de Direito e Delegados de Polícia estão autorizados a proceder conforme dispõe o presente provimento. (grifei)

Artigo 3º -

As vítimas ou testemunhas coagidas ou submetidas a grave ameaça, em assim desejando, não terão quaisquer de seus endereços e dados de qualificação lançados nos termos de seus depoimentos. Aqueles ficarão anotados em impresso distinto, remetido pela Autoridade Policial ao Juiz competente juntamente com os autos do inquérito após edição do relatório. No Ofício de Justiça, será arquivada a comunicação em pasta própria, autuada com, no máximo, duzentas folhas, numeradas, sob responsabilidade do Escrivão. (grifei)

Saliente-se, entretanto, que o art. 5º, do Provimento nº. 32/2000, permite ao advogado do indiciado o acesso a esses dados, assegurando o direito à ampla defesa.

Artigo 5º -

O acesso à pasta fica garantido ao Ministério Público e ao Defensor constituído ou nomeado nos autos, com controle de vistas, feito pelo Escrivão, declinando data. (grifei)

Indiscutivelmente, a iniciativa dos autores do projeto de lei nº. 43/2009 é digna dos maiores elogios, na medida em que pretende aperfeiçoar a justiça criminal, proporcionado maior proteção às vítimas e testemunhas.

Atualmente, os policiais civis encontram dificuldade em elucidar os delitos, principalmente, porque as vítimas e testemunhas dos crimes se negam a prestar esclarecimentos sobre o fato, com receio de sofrerem represálias.

Esse temor aumenta se o crime for praticado pelos integrantes das facções criminosas, que possuem enorme poder de intimidação.

Apesar das vantagens e do inegável avanço legislativo dessas medidas protetivas, a proposta em tela é inconstitucional.

Em primeiro lugar, porque invade a esfera de competência legislativa da União, ou seja, possui vício de origem.

De fato, as medidas alvitradas no projeto de lei nº. 43/2009 violam o inciso I, do art. 22, da Magna Carta, que confere à União a competência privativa para legislar sobre direito processual penal.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. (grifei)

É oportuno esclarecer que o inciso XI, do art. 24, da Constituição Federal, atribui aos Estados competência concorrente para legislar, especificamente, sobre procedimentos em matéria processual.

Todavia, as normas do projeto em tela não ficaram circunscritas à matéria de procedimentos.

As regras da citada proposta ultrapassaram os limites estabelecidos pelo inciso XI, do art. 24, da Carta Política, criando ilicitamente obrigações e limitando direitos.

Efetivamente, o projeto, ao impedir o acesso do advogado aos dados das vítimas e testemunhas, violou o sagrado direito à ampla defesa, previsto no inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal.

Art. 5º -. ..

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (grifei)

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Além disso, o questionado dispositivo compromete o equilíbrio da relação processual, entendido como paridade de forças, que deve existir entre a acusação e a defesa.

Saliente-se, ainda, que o preceito que restringe a atuação da defesa durante a persecução criminal preliminar contraria a Súmula Vinculante nº. 14, recentemente editada pelo Supremo Tribunal Federal, que garante o acesso do advogado constituído aos autos de inquérito policial, ainda que tramitem sob sigilo.

Súmula Vinculante nº. 14

"É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa." (grifei)

Por outro lado, a proposta em debate fere o direito à liberdade de imprensa.

Com efeito, o projeto de lei nº. 43/2009, ao limitar o acesso dos órgãos de imprensa aos dados das vítimas e testemunhas, tolhe o direito à liberdade de comunicação, assegurado pelo inciso IX, do art. 5º, da Constituição Federal.

Art. 5º -

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (grifei)

Do mesmo modo, a mencionada proposta viola o § 1º, do art. 220, da Magna Carta, que proíbe a edição de lei com dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística.

Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (grifei)

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. (grifei)

É claro que o texto do § 1º, do art. 220, da Carta Política, não proíbe apenas projetos que expressamente declarem que "fica extinta a liberdade de comunicação". Na realidade, a proibição abrange todas as propostas, que, de alguma forma, limitam o pleno exercício desta relevante atividade.

Neste sentido, o brilhante voto proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito, em medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental, referente à Lei nº. 5.250, de 09 de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa).

"Diga-se mais, por necessário: a Democracia de que trata a Constituição de 1988 é tanto indireta ou representativa (parágrafo único do art. 1º) quanto direta ou participativa (parte final do mesmo dispositivo), além de se traduzir num modelo de organização estatal que se apóia em dois dos mais vistosos pilares: a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade; b) o da transparência ou visibilidade do poder. Por isso que emerge da nossa Constituição a inviolabilidade da liberdade de expressão e de informação (incisos IV, V, IX e XXXIII do art. 5º) e todo um capítulo que é a mais nítida exaltação da liberdade de imprensa. Refiro-me ao Capítulo V, do Título VIII, que principia com os altissonantes enunciados de que: a) "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão nenhuma restrição, observado o disposto nesta Constituição" (art. 220); b) "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XV" (§ 1º do art. 220). Tudo a patentear que imprensa e Democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas. Uma a dizer para a outra, solene e agradecidamente, "eu sou quem sou para serdes vós quem sois" (verso colhido em Vicente Carvalho, no bojo do poema "Soneto da Mudança"). Por isso que, em nosso País, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja". (grifei)

Por todos esses motivos, entendo que o projeto de lei nº. 43/2009 está eivado pelo vício da inconstitucionalidade e injuridicidade.

Em síntese, defendo a implementação de medidas de proteção a vítimas e testemunhas, por intermédio de lei de iniciativa do Poder Legislativo Federal, compatibilizando tal prerrogativa com os direitos à ampla defesa do indiciado e à liberdade de informação dos órgãos de imprensa.

Sobre o autor
Mário Leite de Barros Filho

Delegado de Polícia, de Classe Especial, do Estado de São Paulo. Professor da Academia de Polícia de São Paulo. Professor universitário, tutor do Ensino a Distância, da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP. Autor de quatro obras na área do Direito Administrativo Disciplinar e da Polícia Judiciária.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS FILHO, Mário Leite. Da Inconstitucionalidade da Lei Estadual de Proteção à Vítima e Testemunha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2073, 5 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12415. Acesso em: 5 nov. 2024.

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