1.INTRODUÇÃO
Em 09 de setembro de 2008, foi editada a Lei Federal n.º 11.770, que instituiu o Programa Empresa Cidadã, visando prorrogar por 60 (sessenta) dias a duração da licença-maternidade prevista no art. 7º, XVIII, da Constituição da República (art. 1º).
Em seu artigo 2º, a referida lei também autorizou a Administração Pública direta e indireta a instituir programa que garanta a prorrogação da licença-maternidade para suas servidoras, nos mesmos moldes da regra prevista no art. 1º.
Com o fito de regulamentar a mencionada lei, o Poder Executivo Federal editou o Decreto 6.690, de 11 de dezembro de 2008, criando, no âmbito da Administração Pública, o Programa de Prorrogação da Licença à Gestante e à Adotante. Dispõe o referido Decreto que serão beneficiadas pelo Programa as servidoras públicas federais lotadas ou em exercício nos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
A partir de uma interpretação meramente literal, poder-se-ia argumentar que a lei ou decreto pretendeu beneficiar somente as servidoras públicas civis, excluindo as militares, vez que não se enquadrariam no conceito de servidor público e possuiriam regime jurídico próprio e diferenciado.
De fato, com a Emenda Constitucional n.º 18/98, foi alterada a denominação "servidores militares" para simplesmente "militares". Assim, os militares devem ser incluídos como mais uma categoria de agente público, ao lado dos servidores públicos, conforme escólio de Maria Sylvia Zanella Di Pietro [01]. Todavia, segundo esta mesma doutrinadora, conquanto tenha ocorrido uma modificação na classificação, não há de se falar em uma distinção conceitual entre servidores públicos civis e militares.
Destarte, a Lei 11.770/08, regulamentada pelo Decreto 6.690/08, ao possibilitar a prorrogação da licença-maternidade prevista no art. 7º, XVIII, da Carta Política, por mais 60 (sessenta) dias, deve abranger, em seu campo de incidência interpretativa, não apenas as servidoras públicas civis, mas também as militares.
2. DO SISTEMA ABERTO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TEOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO. DA MÁXIMA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Com efeito, a extensão dos efeitos da Lei 11.770/08 às militares se impõe, através de uma interpretação teleológica e sistemática a ser realizada pelo intérprete/aplicador do direito, com o objetivo de manter incólume a integridade do sistema (Dworkin).
Primeiramente, não se pode olvidar que o direito de licença à gestante, expressamente previsto no art. 7º, XVIII, da Constituição, é considerado um típico direito fundamental de segunda geração (direito social), assegurando a eficácia normativa do princípio da proteção à maternidade.
Tal direito fundamental, previsto para as trabalhadoras, é também aplicado às servidoras públicas civis, conforme teor do art. 39, §3º, Lei Fundamental, assim como às militares gestantes, conforme expressa previsão no art. 142, §3º, VIII, da Carta Magna de 1988.
Assim, antes do advento da Lei 11.770/08, tanto as servidoras públicas civis quanto as militares possuíam o direito de gozar a licença-maternidade com prazo de duração de 120 (cento e vinte) dias. Com a edição da referida lei, o prazo previsto na Constituição é ampliado por mais 60 (sessenta) dias, permitindo a fruição de 180 (cento e oitenta) de licença à gestante.
Consoante a inteligência do art. 5º, §2º, da CF/88, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (...). Tal dispositivo dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos direitos fundamentais no Título II da Constituição, conforme a sempre valiosa lição de Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco e Inocêncio Mártires Coelho [02].
Com tais considerações, embora o art. 7º, XVIII, da CF/88 preveja expressamente o prazo de 120 (cento e vinte) dias para o gozo da licença-maternidade, a lei ordinária pode, certamente, ampliar tal prazo, sem se falar em inconstitucionalidade, pois ela estará dando maior eficácia a um direito fundamental social. Em decorrência do art. 5º, §2º, da CF/88, estando a lei ordinária em consonância com os princípios constitucionais da proteção da maternidade e da dignidade da pessoa humana, pode ela ampliar ou estender um direito fundamental previsto na Constituição Federal. Ao contrário, restringir um direito fundamental através de lei ordinária não é admissível, salvo quando existir expressa previsão na Carta Magna (norma constitucional de eficácia restringível ou contida).
Dessa forma, a Lei ordinária 11.770/08, ao prorrogar o prazo de licença à gestante por mais 60 (sessenta) dias, ampliou o exercício de um direito fundamental. O direito fundamental, em si, continua o mesmo (licença à gestante como garantia de proteção à maternidade), modificando-se apenas o prazo do seu gozo. De igual forma, o art. 142, §3º, VIII, da CF/88, alberga o mesmo direito fundamental do art. 7º, XVIII, qual seja, o direto da militar de gozar a licença-maternidade. Portanto, se surge um lei modificando apenas o prazo de fruição, ou seja, permanecendo inalterado o conteúdo significativo do direito fundamental, tal mudança deve ser aplicada igualmente à militar, a partir de uma interpretação teleológica e sistemática do art. 142, §3º, VIII, da CF/88.
Pensar o contrário, seria admitir uma licença à gestante de 120 (cento e vinte) dias para a militar, com fulcro numa interpretação meramente literal do art. 7º, XVIII, c/c o art. 142, §3º, VIII, ambos da Constituição, e uma oura licença-maternidade para a servidora pública civil, agora com prazo de 180 (cento e oitenta) dias, com base numa interpretação infraconstitucional da Lei 11.770/08 e do Decreto 6.690/08.
Haveria, portanto, a partir de uma interpretação infraconstitucional, regimes diferenciados para a concessão de licença à gestante, desvirtuando a vontade do próprio Poder Constituinte Originário e, por conseguinte, os próprios valores e interesses básicos da sociedade. É dever de todo o intérprete da Constituição, portanto, numa sociedade aberta, plural e democrática (Peter Häberle), implementar os direitos fundamentais abrigados na Carta Política, tornando-se guardião dos valores dessa mesma sociedade e das prerrogativas dos cidadãos.
Em suma, o art. 7º, XVIII, da Constituição, a partir do advento da Lei 11.770/08, deve ser interpretado da seguinte maneira:
"Licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias, `prorrogável por mais 60 dias´".
Por sua vez, o art. 142, §3º, VIII, ao remeter ao art. 7º, XVIII, está se referindo a esta leitura, numa interpretação sistemática e teleológica dos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional, e não meramente literal. Pode-se dizer, inclusive, com base em alguns doutrinadores estrangeiros, que a interpretação de direitos fundamentais há de ser sempre ampliativa.
3.DA IGUALDADE DA CONDIÇÃO MATERNA
Importa, ainda, asseverar que não estender a licença-maternidade com prazo de 180 (cento e oitenta) dias às militares, sob o argumento de possuírem regime jurídico diferenciado das servidoras civis, é admitir, por via oblíqua, discriminações ilegítimas e injustificadas. É ferir de morte o princípio constitucional da igualdade ou isonomia.
Como é cediço, a função da lei é, por excelência, discriminar. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz normas de proteção às crianças e adolescentes, haja vista a peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, que merecem cuidados no âmbito cultural, social, recreativo etc. O Código de Defesa do Consumidor traz normas protetivas para aquele indivíduo que se enquadre na definição de consumidor, tendo em vista sua condição de hipossuficiência e vulnerabilidade diante de fornecedores, normalmente grandes empresas econômicas.
Tais leis não são atentatórias ao princípio da igualdade. Ao contrário, implementam o referido princípio no contexto da realidade fática, pois tais discriminações são legítimas, se justificando em virtude de fatores lógico-racionais (v.g., crianças e adolescentes não podem ser tratados de forma idêntica a adultos, tendo em vista a incompletude no desenvolvimento físico e psicológico, merecendo, por isso, atenção especial do Estado e da sociedade civil; o consumidor, por sua vez, é, sem dúvida, a parte jurídica e economicamente mais fraca da relação de consumo, devendo incidir normas de proteção com o escopo de igualar aquela relação originariamente desigual).
Em outras palavras, só há ofensa ao princípio da isonomia se a discriminação for lógica ou racionalmente injustificada.
Na presente caso, não há fator lógico de discriminação (discrimen) que justifique um tratamento diferenciado entre gestantes militares e gestantes servidoras civis, pois a licença busca assegurar o princípio da proteção da maternidade. E o dom sagrado da maternidade é conferido indistintamente a ambas, militares e servidoras civis. A fisiologia materna é, abstratamente, a mesma, seja a mãe militar ou civil. A posição jurídica de militar ou civil é indiferente ou irrelevante para os fins da maternidade, que se refere, principalmente, à proteção de uma condição física e psicológica peculiar a toda e qualquer mulher, em transição para a posição jurídica efetivamente tutelada (mãe).
Portanto, a simples circunstância de possuírem regimes jurídicos diferenciados não justifica, por si só, uma discriminação injustificada entre militares e servidoras civis, especialmente quando o fator de discriminação a ser enfocado é a condição de gestante da mulher, fisiologicamente idêntica tanto para a militar quanto para a civil.
Nunca assaz lembrar que a igualdade, conforme escólio do jurista lusitano Jorge Miranda [03], significa intenção de racionalidade e, em última análise, intenção de justiça.
E o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a estabilidade provisória do art. 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, embora literalmente prevista apenas para as empregadas, tem aplicado tal garantia constitucional não apenas às celetistas, mas também às militares e servidoras públicas civis (RMS 22361/RJ. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª Turma do STJ. Julgado em 08.11.2007. DJ de 07.02.2008). Este raciocínio deve ser aplicado analogicamente à licença-maternidade das militares.
Com isso, a Suprema Corte efetiva concretamente valores fundamentais da sociedade e agasalhados pela Constituição, entre eles os princípios da igualdade e da proteção sagrada da maternidade. Sendo assim, que "as pequenas diferenças entre as vestes que cobrem nossos corpos débeis, em meio a todas as nossas linguagens insuficientes, todos nossos costumes ridículos, todas nossas leis imperfeitas, todas as nossas opiniões insensatas, em meio a todas nossas condições tão desproporcionais aos nossos olhos e tão iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuanças" [04] (Prece de Voltaire) não sejam sinais de discriminação e desigualdade.
4.CONCLUSÃO.
Por fim, oportuno trazer a lume alguns valiosos pensamentos filosóficos, que já nos mostram o caminho a ser trilhado pelo intérprete jurídico e que servem de inspiração e reflexão:
"Mãe é o nome de Deus nos lábios e corações dos filhos" (autor desconhecido)
"Deus não pode estar em todos os lugares, por isso fez-se as mães" (Provérbio judeu).
Notas
- DI PIETRO. Maria Sylvia Z. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 14ª ed. 2002, p. 431.
- MENDES. Gilmar Ferreira; BRANCO. Paulo Gustavo G; COELHO, Inocêncio M. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1ª ed., p. 260.
- MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, tomo IV, p. 237/238.
- ROCHA, Washington Alves da. No Coração de Antígona. João Pessoa: ACE Pinheiro e Alves Editora, 2002, p. 108.