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Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.

Uma gravíssima violação de direitos humanos

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Agenda 01/04/2009 às 00:00

5. DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DA NÃO-PRIVAÇÃO DE DIREITOS POR MOTIVO DE CRENÇA RELIGIOSA

Objetar quer dizer recusar-se a fazer algo. Objeção de consciência é expressão que designa os casos em que um indivíduo, por alguma convicção pessoal profunda, íntima, recusa-se a praticar determinado ato ou aceitar alguma específica situação.

Infelizmente, as Testemunhas de Jeová, por motivo de crença religiosa, têm cerceado um elementar direito agasalhado constitucionalmente – o de recusar um determinado tratamento médico (transfusão de sangue) que é repleto de riscos, como já visto.

A objeção de consciência não fere o princípio da isonomia, sendo mero sofisma o argumento de que se estaria a privilegiar o direito de uma minoria. Ora, o princípio da isonomia deve ser visto dentro de um quadro amplo de direitos, liberdades e garantias. A liberdade de consciência é norma especial, que prevalece sobre a norma geral da isonomia. Para se ter justiça, ocioso dizê-lo, deve-se tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Assim, por exemplo, não fere o princípio da isonomia reserva de vagas para deficientes físicos em concursos públicos, atendimento privilegiado em várias situações para crianças, adolescentes e idosos (Leis 8.069/90 e 10.741/03).

Outra falácia encontradiça é o argumento de que o Estado dispõe de um ‘Direito superior’ ao do particular, algo como um jus imperii. Ocorre, no entanto, que a força tem limites, não podendo o Estado compelir alguém a algo pelo que sente extrema repulsa.

Também a justificar a objeção de consciência tem-se o fato de que a sociedade humana é plural, e isso é um fato irreversível.


6 – DIREITO À PRIVACIDADE

A Constituição Federal, no inciso X do artigo 5º, tutela o direito fundamental à privacidade nos seguintes termos: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’.

A privacidade é necessidade básica do ser humano, que deseja viver com sossego e tranquilidade, sem ter a sua vida íntima e privada indevidamente devassada por terceiros, nem ser sufocada por ingerências do Estado que ultrapassem imperiosas necessidades sociais.

Em fecundo parecer, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO [17] anota que o direito à privacidade é o dos que reclamam a não-ingerência do Estado, da coletividade ou de algum indivíduo, impondo um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular do direito que não pode ser violada por quem quer que seja. Agrega, com base em famoso julgado da Suprema Corte Americana, que duas são as facetas desse direito: a) evitar a divulgação de questões pessoais, e, b) independência em tomar determinada espécie de decisões importantes.

O mesmo parecerista frisou que a doutrina e jurisprudência americana incluem no direito à privacidade as decisões relativas ao próprio corpo (vacinações, testes de sangue obrigatórios); concepção e contracepção; tratamentos médicos; e estilos de vida.

Não é ocioso destacar que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), no seu artigo 11, itens 1 e 2, garante a proteção da lei contra interferências arbitrárias na vida privada, honra e dignidade do indivíduo.

O jurista CELSO RIBEIRO BASTOS [18], em parecer, bem gizou que:

"Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos."

Assim, também sob o prisma da proteção constitucional da intimidade e da privacidade, incabível forçar-se alguém a receber transfusão de sangue.


7 – DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Sob a ótica legal, plenamente admissível a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a transfusões de sangue, mesmo nos casos de iminente risco de vida.

A Constituição Brasileira, no seu artigo 5º, inciso II, prescreve que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, salvo em virtude de lei (princípio da legalidade). Assim, como no país não há lei que obrigue qualquer pessoa a aceitar transfusões de sangue como tratamento médico, a recusa será válida, devendo ser respeitada.

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CELSO RIBEIRO BASTOS [19] faz as seguintes considerações sobre esse tema:

"...a Lei Suprema dita um requisito para que exista a restrição à liberdade. Esta restrição consiste na necessidade de lei, com o que fica implícito que a restrição à liberdade pode existir. É dizer, as leis dotadas de caráter genérico e abstrato definem diversas situações, deixando uma margem de liberdade, ou melhor, um espaço para fazer ou não fazer alguma coisa."

O eminente parecerista, após afirmar que ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a tratamento específico contra a sua vontade, ilustra esse direito de recusa com o exemplo de pessoa que, apresentando problemas visuais, fosse obrigada a procurar um oftalmologista e a usar os óculos por ele prescritos, ou, ao passar por problemas financeiros, fosse compelida a consultar um economista e seguir suas orientações.

Também, já foi observado alhures que não se poderia abolir a opção individual de rejeitar transfusões de sangue sem ferir a Constituição, pois se isso acontecesse, estaria criada a absurda situação de alguém preferir ficar em casa para não ter a sua liberdade pessoal violada pelo médico. Mas então teria de ser criada uma lei para obrigar uma pessoa a ir ao médico...


8 – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana é o cume, o ápice do sistema jurídico brasileiro e do da maioria dos países: na verdade é um superprincípio, do qual decorrem a necessidade de respeito à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo, relacionando-se, também, à proteção da igualdade e da liberdade do ser humano.

Para INGO WOLFGANG SARLET:

"...a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional de dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos por parte de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção [20]".

Mesmo o direito fundamental à vida não é absoluto [21], encontrando limites no princípio da dignidade da pessoa humana, que, afinal, é o alicerce de todo e qualquer direito. Note-se que é a dignidade da pessoa humana – e não a vida - um dos fundamentos da República (CF/88, art. 1º, inciso III). Ainda, um dos objetivos fundamentais da República é justamente promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa.

Assim, impor uma transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová equivaleria a violentá-lo, não só no seu corpo, mas também nas suas convicções religiosas, no seu modo de ver e compreender o mundo. Em outras palavras, seria fazer tabula rasa da dignidade do aderente dessa religião.

Analisou esse ponto com muita propriedade ANA CAROLINA DODE LOPEZ, em trecho que merece detida reflexão [22] (grifos não constam do original):

"Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.

"O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez."

MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ e MAÍLA MELLO CAMPOLINA fazem a aguda afirmação de que erigir a vida como um ‘bem coletivo’ ou como pertencente ao Estado é tirar do ser humano a única coisa que deveras possui: ele próprio [23].

A conclusão inafastável, portanto, é que também pelo princípio da dignidade da pessoa humana é vedada a transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová, mesmo quando a vida corra sérios riscos.


9. DO ARTIGO 15 DO CÓDIGO CIVIL

Legitima também a recusa a tratamentos médicos, como transfusões de sangue, o disposto no artigo 15 do novel Código Civil, o qual prescreve que ‘Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica".

Essa inovadora disposição legal tem cariz protetora dos direitos individuais, devendo ser lida como ‘ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica’. Com efeito, se o médico acreditar na necessidade urgente de uma transfusão de sangue, é porque o paciente estará correndo risco de vida, o que impõe que nenhuma terapia seja realizada sem o seu prévio consentimento [24]; ou, olhando a questão de outro ângulo, refira-se que a própria transfusão de sangue é, incontestavelmente, um tratamento de risco, seja pela insegurança e precariedade dos testes sorológicos efetuados, quer pelo desconhecimento do comportamento de vírus e outros agentes potencialmente patogênicos existentes eventualmente no material biológico a ser objeto da transfusão.

Nesse passo, pede-se vênia para transcrever as judiciosas considerações de FELIPE AUGUSTO BASÍLIO [25] sobre o assunto:

"...pela nova regra do Código Reale, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.

"As conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos. Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar."

Conclui-se que o artigo 15 do Código Civil revogou, então, quaisquer normas de hierarquia igual ou inferior que autorizavam a intervenção médica contra a vontade do paciente (especialmente os artigos 46 e 56 do Código de Ética Médica, vindo a lume por mera resolução do Conselho Federal de Medicina, e o art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal), mesmo naqueles casos de iminente risco de vida [26].

Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.: Uma gravíssima violação de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2100, 1 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12561. Acesso em: 25 nov. 2024.

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