10 – DO ARTIGO 17 DO ESTATUTO DO IDOSO
Mais uma inovação legislativa chancela o direito de os pacientes, independentemente dos motivos, recusarem transfusões de sangue: está-se falando do artigo 17 do Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003), que possui a seguinte redação:
"Artigo 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.
Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:
I – pelo curador, quando o idoso for interditado;
II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil;
III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;
IV - pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.
Assim, como regra geral, o art. 17 do Estatuto do Idoso autoriza que o paciente, independentemente do seu estado clínico, mas desde que no domínio de suas faculdades mentais, escolha o tratamento de saúde que entender mais adequado.
Veja-se bem que o inciso III do parágrafo único do artigo 17 deixa evidente que não basta a situação de iminente risco de vida para que seja o médico possa escolher o tratamento. Imperioso que, antes, ocorra a impossibilidade de manifestação do paciente, familiares ou de seu representante legal. Dito de outra forma: o médico, nos casos de iminente risco de vida, só poderá agir ao próprio talante se tornar-se impossível conhecer, por qualquer meio, a vontade do paciente ou representante legal quanto ao tratamento.
Por evidente, em respeito ao princípio da isonomia, a autorização para que o paciente idoso, mesmo em situação de iminente risco de vida, possa recusar tratamento médico, deve ser estendida, em uma interpretação constitucional, aos pacientes civilmente capazes de idade inferior a 60 anos pois não há qualquer razão lógica/ética/jurídica para não se fazê-lo.
11 – DO ARTIGO 10 DA LEI DE TRANSPLANTES
O art. 10, ‘caput’, da Lei n.º 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos) prescreve que "O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento". E o § 1º desse artigo prevê que naqueles casos em que o receptor for juridicamente incapaz, ou estiver em condições de saúde que impeçam ou comprometam sua manifestação válida de vontade, o consentimento será dado pelos pais ou responsáveis legais.
Percebe-se, assim, que a legislação mencionada coloca em primeiro plano - portanto, acima da vontade do médico - o consentimento do paciente. Desta forma, mesmo que o paciente se encontre em iminente risco de vida, pode decidir se quer, ou não, se sujeitar ao transplante.
Desta maneira, como o sangue é considerado um tecido [27], devem as transfusões se submeterem ao princípio - veiculado na lei - de que ‘quem decide é o paciente’, independentemente da situação de iminente risco de vida.
Não se desconhece o teor do parágrafo único do art. 1º da Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos: "Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo, o sangue, o esperma e o óvulo’. Entretanto, a exclusão expressa do sangue ‘para os efeitos da lei’ jamais poderia significar que, de fato, sendo um tecido, pudesse ser transfundido contra a vontade do paciente.
A expressão ‘para os efeitos da lei’ deve ser interpretada no sentido de que para fazer a disposição do sangue o doador, por exemplo, não precisará de autorização judicial (art. 9º); que prescindirá de autorizar a doação preferencialmente por escrito e diante de testemunhas (art. 9º, § 4º); que o receptor não precisa estar inscrito em lista única de espera, etc.
12 – DA INEXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO JURÍDICA DE VIVER
Aos pacientes, independentemente de posicionamentos morais, filosóficos ou religiosos, não se pode impor uma obrigação jurídica de viver mediante o recebimento de uma transfusão de sangue, se considerarmos que ninguém está obrigado para com si mesmo. Deveras, para existir uma relação jurídica é necessário que hajam pelo menos duas pessoas – sujeito ativo e sujeito passivo -, podendo uma delas exigir um bem, a que a outra está obrigada a entregar.
Nesse andar, ANDRÉ FRANCO MONTORO [28], seguindo a lição de DEL VECCHIO, afirma que podemos definir a relação jurídica como o vínculo entre pessoas, por força do qual uma pode pretender ou exigir um bem de outra pessoa, que é obrigada a uma prestação (ato ou abstenção).
Decorre do conceito acima que a sociedade como um todo não tem o direito subjetivo de exigir que um dos seus membros preserve sua própria vida contra a vontade e, portanto, não tem esse membro o dever de atender a essa pretensão da sociedade. E de outra quadra, ninguém está obrigado a defender seu próprio direito.
Sob outro enfoque, é de se afirmar que, em respeito às liberdades do cidadão, o Estado só pode exigir-lhe condutas, positivas ou negativas, que não violem os direitos de terceiros. E nada mais, sob pena de, em cruel inversão de valores, o homem servir ao Estado, e não este àquele.
Como bem ressaltado por J. STUART MILL [29],
"el único propósito sobre el cual el poder puede ser realmente ejercido sobre cualquier miembro de uma comunidad civilizada, contra sus deseos, es para prevenir el daño a otros. Su propio bien, ya físico o moral, no es suficiente garantía. No lo podemos forzar a llevar a cabo tal o cual acto porque el hacerlo sea lo mejor para él, porque lo hará más feliz, porque em opinión de otros sería lo más sabio o lo más correcto. Estas serían buenas razones para discutirlo o razonarlo com él, para persuadirlo, para rogarle que lo realice; pero no para obligarlo, amenazarlo o cartigarlo por haberlo realizado...La única parte de la conducta de cualquiera, por la que debe de responder a la sociedad, es aquella que concierne a los demás."
O médico DIXON cita também J. STUART MILL para expressar que é o paciente quem pode dispor sobre a própria saúde, aceitando ou rejeitando quaisquer espécie de tratamentos: ‘...cada qual é o guardião correto de sua própria saúde, seja ela física, seja mental, seja espiritual. A humanidade é que mais lucra ao permitir que cada um viva como bem lhe parecer, em vez de compelir cada pessoa a viver como parece ser bom para os demais [30].’
Mas, frise-se novamente, o paciente Testemunha de Jeová não é um suicida, quer viver, mas declina de receber tratamento que vai de encontro às suas convicções religiosas e que, ademais, repita-se vezes várias, é de alto risco.
Ainda nesse tópico, necessário tecer considerações sobre a conceituação da palavra ‘inviolabilidade’, constante no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, para que, ao final, se possa responder à indagação: a inviolabilidade do direito à vida permite – ou proíbe – que o indivíduo possa recusar tratamento médico em caso de iminente risco de vida?
Parece extremamente razoável dizer que o termo ‘inviolabilidade’ não deva ser interpretado no sentido de proibição de o indivíduo dispor da própria vida, mas sim como a impossibilidade de terceiro violar o bem da vida de outrem.
Afirmando o referido acima em outras palavras: não se pode confundir ‘inviolabilidade’ com ‘indisponibilidade’, termos que juridicamente traduzem conceitos distintos. A inviolabilidade diz respeito a direitos outorgados a certas pessoas, em virtude do que não podem ser molestadas ou atingidas. Já a indisponibilidade é atributo daquilo que não se pode dispor ou ceder.
Assim, por exemplo, o artigo 5º, ‘caput’, da Constituição Federal dispõe que a ‘propriedade’ também é inviolável. Ora, tal não impede que o indivíduo, na forma da lei, possa alienar o bem para terceiro, nem que o poder público possa fazer restrições ao direito de propriedade, inclusive por legislação infraconstitucional, como sói acontecer.
De idêntica forma, a ‘intimidade’, segundo o mesmo artigo 5º, é inviolável. Entretanto, a ‘inviolabilidade’ não proíbe que o indivíduo participe de reality shows televisionados (Big Brother, v.g.), ou então, publique autobiografia em que narre fatos pessoais e íntimos de sua pessoa.
13. A QUESTÃO DA RECUSA DE MENORES A TRATAMENTOS COM TRANSFUSÕES DE SANGUE
Segundo o artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, adotada em 20.11.1989:
"Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.
No presente tópico, impõem-se as seguintes perguntas: podem os pais negar autorização para transfusões de sangue em seus filhos menores? Com que idade o menor poderá recusar tratamentos médicos por objeção de consciência?
Inicialmente, refira-se que os pais são os detentores do poder familiar, a eles cabendo empreender os melhores esforços para salvaguardar a vida e a saúde dos filhos. Aos pais também pertence a iniciativa da formação religiosa dos filhos, ao menos até certa idade, quando então estes poderão decidir, por si só, qual religião adotar – caso, é claro, desejarem seguir alguma.
Para prosseguir-se, necessário fazer referência à doutrina do menor amadurecido (mature minor doctrine), do direito anglo-americano.
Considera-se menor amadurecido aquele paciente que, embora não tendo atingido a idade da maioridade civil, é dotado da capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e as consequências do tratamento médico proposto, podendo aceitá-lo ou recusá-lo.
Na teoria do menor amadurecido, o importante a considerar é a capacidade decisória, e não algum limite prefixado de idade.
Acerca do tema, importante citar que foi reconhecido pelo Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá) o direito de um paciente de 15 anos de idade recusar uma transfusão de sangue:
"Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Dra. Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico, do tratamento deste e da possibilidade mui real de que sua recusa de aceitar sangue ou hemoderivados lhe pudesse ser fatal. Todavia, ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as consequências de sua recusa de receber transfusões. A Dra. Scully disse que uma transfusão imposta seria prejudicial para a saúde de [J.] e, a menos que [J.] mudasse de idéia, ela ‘não administraria nenhuma transfusão de sangue, não importa qual fosse o resultado do tratamento dele’.
"No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as consequências do tratamento proposto. Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico [31]."
No Brasil, o jovem de 16 anos de idade, já pode votar (CF, art. 14, § 1º, inc. II, ‘c’); na órbita civil, não é mais absolutamente incapaz, podendo inclusive ser emancipado.
Assim, deflui inexoravelmente desses comandos legais que o jovem de 16 anos (que pode influir na vida política de seu país, escolhendo governantes e parlamentares, bem como, emancipado, contratar, casar, ser proprietário de empresas, etc) é, de forma ficta, indiscutivelmente amadurecido, pode exercitar a objeção de consciência, recusando tratamentos médicos mesmo com a oposição dos representantes legais.
JAYME WEINGARTNER NETO faz interessante observação sobre o que se pode denominar de ‘maioridade religiosa’:
"Pode-se presumir, juris tantum, a maioridade religiosa dos adolescentes (pessoa entre 12 e 18 anos de idade, consoante art. 2º da Lei n.º 8.069/90), afastável por demonstração imaturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos considerado, bem como a incapacidade religiosa das crianças (até 12 anos de idade incompletos, conforme o dispositivo citado), também afastável por demonstração de maturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos em apreço [32]".
No Direito Brasileiro, não se deve olvidar que a criança e o adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, crença e culto religioso, conforme dispõem os artigos 15 [33] c/c o art. 16, incisos II e III [34] do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90).
Repita-se, se o adolescente é amadurecido (possui a capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e, especialmente, as consequências do tratamento médico proposto), sua objeção de consciência deverá ser respeitada, tenha 12, 13, ou 17 anos de idade.
Em parecer, o Dr. MARCO SEGRE [35] sustenta que é eticamente aceitável que um adolescente manifeste sua recusa, e seja atendido, a uma transfusão de sangue.
Em resumo ao que foi abordado, pode-se concluir que o adolescente a partir de 16 anos de idade, pelos direitos em perspectiva que a lei lhe confere (direito de votar, direitos civis plenos com a emancipação), deve ser considerado maior amadurecido, sem perquirições adicionais, cabendo-lhe recusar ou aceitar determinados tratamentos médicos. Em relação ao adolescente entre 12 e 16 anos de idade, para verificar se deve ser respeitada sua vontade quanto a terapias médicas, necessário aferir previamente se é um ‘menor amadurecido’.