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Reflexões sobre a extinção da punibilidade pelo parcelamento e/ou pagamento da dívida nos delitos fiscais

Agenda 03/04/2009 às 00:00

RESUMO:

O presente artigo busca estabelecer uma discussão sobre a diferença de tratamento dada à proteção do patrimônio público e do patrimônio privado pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro, criando manifesta desproporcionalidade, violadora de princípios constitucionais.

PALAVRAS-CHAVES: Extinção da punibilidade. Princípio da igualdade. Princípio da proporcionalidade. Direito Penal.


O direito de punir do Estado decorre do reconhecimento da prática de uma conduta típica, ilícita e culpável.

Uma das hipóteses de perda do direito de punir do Estado, ou seja, de extinção da punibilidade, tem sido o tratamento dado pela lei brasileira ao pagamento do tributo nos crimes fiscais.

O art. 34 da Lei 9.249/95 preconiza que:

"Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n.º 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia".

Hoje, determina-se a extinção da punibilidade igualmente para as hipóteses em que ocorre o parcelamento do débito. De início, a extinção da punibilidade para o caso de parcelamento surgiu no ano 2000, com a Lei nº 9.964 - REFIS. Em seguida, adveio a Lei nº 10.684/03 - PAES, em que algumas alterações foram realizadas.

Sem dúvida alguma, a extinção da punibilidade para tais delitos é questão afeta à Política Criminal:

"Busca-se a satisfação do débito tributário, ainda que para tal tenha, o Estado, que abrir mão de punir aquele que praticou a infração penal. Como diz José Alves Paulino, "(...) a opção mais recente foi a da extinção da punibilidade, pondo em evidência que o interesse público está na satisfação da dívida. Apenas tipificou o crime para intimidar o contribuinte, impondo-lhe uma pena caso sonegasse. A sanção penal é invocada pela norma tributária para fortalecer a idéia de cumprir a obrigação fiscal, tão-somente. A par disso, conclui-se que o interesse do Estado está em que se efetue o pagamento do débito. A intenção do agente de sonegar imposto pouco importa. Satisfazendo ele o interesse do Estado, que é a quitação do tributo, a sua conduta perde o valor". [01]

Assim, é de se indagar acerca da função da incriminação de infrações fiscais (meramente simbólica?!), que se concentram destacadamente na arrecadação, afastando-se da Teoria do Bem Jurídico, que estabelece a necessidade de proteção pelo Direito Penal de um bem jurídico relevante.

É de se destacar, a lamentável diferença de tratamento que é dada a crimes de natureza semelhante, tais como o furto, o estelionato e a apropriação indébita, que também são praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, e não recebem a mesma atenção do sistema penal, pois a clientela é outra.

Não há como deixar de reconhecer que, de fato, para efeito do benefício da extinção da punibilidade, os crimes contra o patrimônio privado, sem uso da violência ou grave ameaça e sem prejuízo material à vítima, são iguais aos crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo. Nesses casos, os agentes lesam o patrimônio de outrem visando ao proveito próprio ou alheio, ocorrendo recomposição patrimonial.

O direito à propriedade é previsto constitucionalmente no título direitos e garantias fundamentais e se revela inclusive no âmbito do Direito Penal como bem jurídico tutelado. De outra parte, a ordem jurídico-constitucional brasileira atribui idêntico valor aos bens patrimoniais públicos e privados. Assim, a partir de uma interpretação conforme a constituição, a legislação ordinária, ao estabelecer o mencionado benefício aos agentes que praticam crimes contra a ordem tributária, não pretendeu desvalorizar o patrimônio público, muito menos privilegiar determinados agentes pela sua posição de classe.

Diante disso, o caminho da equidade sugere estender a solução do mencionado art. 34 a todos os agentes em condição isonômica, para que o princípio da igualdade não se faça letra morta na Magna Carta, permitindo-se diferenciações arbitrárias que ferem o próprio conceito de Justiça.

Sobre o assunto, vale destacar o pensamento do magistrado gaúcho Clademir MISSAGGIA, esposado no exercício de sua atividade jurisdicional:

"Contra a tese da igualdade, poder-se-ia dizer que o legislador com a edição da regra que usei como paradigma, pretendeu, por razões de política legislativa momentânea (a consideração, v. g., da crise fiscal do Estado oriunda das grandes demandas decorrentes do Estado social) proteger os interesses maiores da sociedade, designadamente a reposição do patrimônio desviado com a sonegação e, assim, atenuar a sobrecarga de governo e a ingovernabilidade. Se os argumentos, porventura, ganham, em parte, respaldo nos fatos, equivale a dizer, o legislador está mais comprometido com o programa de governo e cede, por pragmatismo, à realidade imediata (na melhor das hipóteses) em detrimento do programa de Constituição, é certo, por outro lado, e no sentido da assimilação da hipótese, que a reposição do patrimônio privado interessa à paz social, fim precípuo da ordem jurídica, em detrimento da apenação.

"A recuperação da coisa no furto e promoção da reposição do patrimônio nos crimes de sonegação fiscal, v. g., dificilmente ocorrem espontaneamente. Na primeira hipótese, temos, como regra, a apreensão da res contra a vontade do agente (há, neste caso, involuntariedade) e, na segunda hipótese, a recomposição patrimonial realiza-se, como regra, após o constrangimento moral de o empresário ser flagrado no crime de falsidade para o desvio do tributo (há, neste caso, voluntariedade). As distinções, entretanto, entre voluntariedade, espontaneidade e involuntariedade, quando ocorridas, não tem a força que se pretende dar para objetar a conclusão, permissa venia. Não se nega a distinção, apenas afirma-se que não tem o poder de desfigurar a igualdade. A norma não pretende valorar um eventual arrependimento posterior visando a purificação das almas para o paraíso do imaginário judaico-cristão. O telos legislatoris é a recomposição patrimonial. Assim, a distinção que acabo de referir, oportuna na exata compreensão da regra do art. 16 do CP, não pode ser invocada aqui, pena de infringência das regras básicas da hermenêutica". [02]

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Destarte, escapa à razão jurídica que se dê um tratamento diferenciado para as mencionadas hipóteses de isenção de prejuízo pratrimonial (público ou privado). Até porque, como bem sustenta MISSAGGIA, o próprio princípio da legalidade, que nasceu para combater o poder ilimitado e arbitrário do Estado moderno, em quaisquer de suas dimensões, não proíbe, ao contrário, exige a aplicação do princípio da igualdade no Direito Penal, desde que in bonam partem.

A questão que se impõe, prossegue o nobre juiz, é a de se saber se o legislador, que tem a primazia na conformação da ordem jurídica, infringiu ou não o princípio da igualdade de criação de direito igual, ao não estender o benefício da extinção da punibilidade a todos os agentes que cometessem crimes contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça, em caso de recomposição patrimonial. E, de acordo com o aferido, ao não criar direito igual, o legislador violou, indubitavelmente, o princípio da igualdade. E a única forma de reparação razoável para integração do sistema jurídico é, por certo, a extensão do benefício.

Com propriedade, Lênio Streck manifesta-se sobre o tema:

"[...] ante os avanços e retrocessos legislativos impõe-se a releitura do artigo 16 do Código Penal. Com efeito, o dispositivo que prevê – como causa de redução de penal – o que se convencionou chamar de arrependimento posterior revela incongruência com o sistema penal de proteção de bens jurídicos. A partir da premissa de que o Direito Penal – entendido como o mais rigoroso e contundente mecanismo de controle social – só tem justificação e legitimidade no moderno Estado de Direito se dirigido à proteção de bens jurídicos que não sejam, potencial e nem suficientemente, protegidos por outros ramos jurídicos contra agressões relevantes e intoleráveis socialmente, o critério para a definição de sanções deve, necessariamente, condizer com o grau de importância do bem jurídico protegido e a com a gravidade social da afronta. Delineados tais pressupostos, inconcebível subsistirem e articularem-se, em um mesmo sistema – quando da análise de crimes de mesma natureza – hipóteses de extinção da punibilidade e hipóteses de simples diminuição da pena para o mesmo instituto do arrependimento posterior. A previsão de solução legal distinta para situações fáticas semelhantes consiste em medida atentatória ao constitucional princípio da proporcionalidade". [03]

Prossegue Lênio Streck demonstrando a violação do princípio da proporcionalidade, sob os seguintes argumentos:

"[...] o privilégio da extinção da punibilidade concedido a condutas manifestamente mais graves e danosas não se estende a crimes de notória menor repercussão e relevância sociais. Trata-se de inconcebível disparidade de tratamento de crimes patrimoniais de índole individual em detrimento de crimes que atentam contra a coletividade como um todo (delitos transindividuais) tais como sonegação de tributos e de contribuições previdenciárias [...]

Há que se indagar: se o indivíduo que sonegou milhões de reais não responde pelo crime de sonegação caso pague o valor sonegado antes do recebimento da denúncia, por que não dispensar o mesmo tratamento a alguém que comete um delito contra o patrimônio, sem violência, na hipótese da vítima não sofrer prejuízo (por devolução ou restituição dos bens/valores)?". [04]

Vale mencionar, por fim, que a função simbólica dos crimes tributários salta aos olhos quando se verifica o critério utilizado na aplicação do princípio da insignificância, consistente no desinteresse do Estado em arrecadar certos valores, conforme vem sendo estabelecido nas seguidas alterações do art. 1º da Lei nº 9.469/97.

Portanto, a questão não se reduz a ser ou não favorável à extinção da punibilidade pelo parcelamento e/ou pagamento da dívida nos delitos tributários, mas ser ou não favorável a uma estrutura penal preocupada exclusivamente com a cobrança de tributos, esquecendo-se de princípios básicos que constituem a sua razão de ser e preconizando tratamento diferenciado para condutas semelhantes.


REFERÊNCIAS

01. GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice. Reflexões e anotações sobre os crimes tributários. In Sanções penais tributárias. Coord. Hugo de Brito Machado. São Paulo: Dialética, 2005 (p. 509-526).

02. STRECK, Lênio. Parecer emitido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul nos autos da Apelação Criminal nº 70.018.891.119 – 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=50&Itemid=29. Último acesso em: 27 de fevereiro de 2009.


Notas

  1. Apud GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice. Reflexões e anotações sobre os crimes tributários. In: Sanções penais tributárias. Coord. Hugo de Brito Machado. São Paulo: Dialética, 2005. p. 509-526
  2. Apud SOARES JUNIOR, Antonio Côelho. Alegações finais produzidas nos autos do processo nº 276/2000 – 3ª Vara Criminal da Comarca de Imperatriz-MA.
  3. Parecer emitido pelo Ministério Público nos autos da Apelação Criminal nº 70.018.891.119 – 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=50&Itemid=29. Acesso em 27 de fevereiro de 2009.
  4. Idem.
Sobre o autor
Antonio Coêlho Soares Junior

Promotor de Justiça do Estado do Maranhão. Doutorando em Sistemi Punitivi e Garanzie Costituzionali pela Università degli Studi Roma Tre. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Assistente do Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES JUNIOR, Antonio Coêlho. Reflexões sobre a extinção da punibilidade pelo parcelamento e/ou pagamento da dívida nos delitos fiscais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2102, 3 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12563. Acesso em: 22 nov. 2024.

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