3 – A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais
Assevera Paulo Gonet Branco que a força vinculante e a eficácia imediata dos direitos fundamentais, além de sua posição no topo da hierarquia das normas jurídicas, reforçaram a idéia de que os princípios informadores dos direitos fundamentais também seriam aplicáveis na esfera privada. Tal se daria em virtude da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que exprime os valores básicos da ordem jurídica e social, fazendo com que o Estado não só deva respeitar estes direitos, mas também os particulares, nas suas relações entre si. [29]
Essa vinculação às normas jusfundamentais no âmbito das relações jurídicas entre particulares foi denominada pela doutrina como a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, eficácia privada ou eficácia externa, tendo encontrado seu maior desenvolvimento na doutrina e jurisprudência constitucional alemã da segunda metade do século XX, atraindo mais recentemente a atenção da doutrina européia em geral. [30]
Conquanto atualmente indiscutível a mencionada vinculação, por força da aludida perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, não tão pacífica é a questão de sua precisa delimitação, pois, como lembra Ingo Sarlet, se até no direito lusitano, em que há expressa disposição constitucional declarando a vinculação das entidades privadas, não há consenso quanto à forma e o alcance dessa vinculação, maior controvérsia há em nosso sistema, dada a ausência de norma similar. [31]
Para o autor, estariam excluídas de uma eficácia direta entre os particulares, todos os direitos fundamentais que tenham por destinatário exclusivo os órgãos estatais, como os direitos políticos, parte dos direitos fundamentais sociais, como os direitos à assistência e previdência social, e algumas garantias fundamentais de cunho processual, como habeas corpus e mandado de segurança. [32]
No entanto, como será adiante mais aprofundado, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já foi reconhecida como necessária a observância do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório no caso de exclusão de associado de uma cooperativa [33], bem assim no caso de afastamento de associados em uma sociedade civil. [34]
Além disso, também é possível sustentar a eficácia dos direitos sociais no âmbito das relações privadas, especialmente no que concerne ao seu conteúdo em dignidade humana, no contexto do que se designou de mínimo existencial. [35]
Por outro lado, há hipóteses de direitos fundamentais que, claramente, vinculam os particulares, como o direito à indenização por dano moral ou material em caso de abuso do direito de livre manifestação do pensamento (art. 5º, incisos IV e V, da Constituição), o direito à inviolabilidade de domicílio (art. 5º, XI, da Carta), o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas (art. 5º, XII). [36] Contudo, o maior exemplo parece ser o dos direitos dos trabalhadores, elencados sobretudo no art. 7º, do texto magno. Com efeito, os destinatários, por essência, dos direitos trabalhistas são os empregadores, geralmente, entes privados, sendo, pois, indiscutível sua vinculação a esses direitos. [37]
Entretanto, entre um e outro extremo, surgem inúmeros casos em que o alcance e a forma de tal vinculação não se demonstram tão claros.
È preciso reconhecer, como esclarece Ingo Sarlet, que o Estado Social de Direito, ao contrário do Estado Liberal clássico, ampliou suas atividades e funções. Além disso, a sociedade também participa cada vez mais ativamente do exercício do poder, de forma que a liberdade individual necessita de proteção não mais apenas contra o poder público, mas também contra os que detêm o poder social e econômico, já que as liberdades individuais também aqui se encontram sob constante ameaça de serem afetadas. [38] Desponta, nessa esteira, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, como expressão de determinados valores que o Estado deve respeitar e, também, promover e zelar pelo seu respeito, por meio de uma postura ativa de proteção global dos direitos fundamentais.
Desta forma, de acordo com Vieira de Andrade, são dois os principais aspectos da vinculação dos particulares. O primeiro é a constatação de que os direitos fundamentais, como princípios constitucionais que são, e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, são aplicáveis a toda a ordem jurídica, inclusive privada. O segundo aspecto trata da necessidade de se protegerem os particulares contra atos provenientes de outros particulares que atentem contra seus direitos fundamentais. [39]
A partir daí, duas teorias buscam esclarecer se a questão dessa vinculação dos particulares se dá de forma direta, demonstrando uma eficácia imediata, ou se ocorre de maneira indireta, no contexto de uma eficácia mediata.
Para Paulo Branco, a teoria da eficácia direta ou imediata sustenta que os direitos fundamentais devem ser prontamente aplicáveis, sempre que as entidades privadas ostentarem um considerável poder social, ou seja, quando o particular estiver em uma situação de supremacia de fato ou de direito em relação ao outro. Desta forma, o princípio de que não pode haver punição sem prévia norma que defina o comportamento como censurável, e o princípio do contraditório deveriam ser aplicados nas relações disciplinares de entes privados. Esta tese, inclusive, estaria em conformidade com o disposto no art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição, que declara a aplicação imediata das normas definidoras de direitos fundamentais. [40]
Assim, esclarece Vieira de Andrade, os direitos fundamentais tornariam inválidas cláusulas que implicassem o dever de agir ou de não agir em situações em que as decisões têm que ser livres. Desta forma, a eficácia deve ser imediata sempre que os particulares se encontrarem em uma relação de subordinação fática ou jurídica. Isto porque, também na esfera privada, ocorrem situações de desigualdade geradas pelo exercício do poder social, de forma que não se podem tolerar discriminações ou agressões à liberdade individual que atentem contra o conteúdo em dignidade da pessoa humana dos direitos fundamentais, devendo existir, no entanto, equilíbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da liberdade negocial, que não podem ser totalmente suprimidos. [41]
Adverte Paulo Branco, neste contexto, que a teoria da eficácia imediata sustenta que, em se tratando de atos que expressam liberdades puras, deve predominar o princípio da autonomia da vontade. No entanto, sempre que o direito fundamental tiver maior peso, deve o mesmo ter pronta incidência, independentemente de ter sido mediado por normas de direito privado. [42]
Já a teoria da eficácia indireta ou mediata sustenta que, no âmbito das relações jurídicas privadas, os direitos fundamentais só poderiam ser aplicados após um processo de transmutação, caracterizada pela interpretação, aplicação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais, configurando-se, nesse sentido, uma recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado. [43]
Essa teoria oferece um maior resguardo do principio da autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade, não aceitando a incidência direta dos direitos fundamentais na esfera privada, uma vez que importaria em um incremento do poder estatal, levando a uma crescente ingerência na vida privada, com o pretexto de fiscalizar o cumprimento dos deveres resultantes da incidência dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Desta forma, por esta teoria, o Estado se encontra obrigado a proteger os direitos fundamentais, inclusive contra entidades privadas, porém, é atenuada a intensidade da aplicação desses direitos. [44]
Verifica-se, portanto, que a teoria da eficácia imediata confere maior relevo ao princípio da máxima efetividade dos diretos fundamentais, enquanto que a teoria da eficácia mediata sustenta a maior relevância da autonomia individual e da segurança jurídica. Ambas, pois, se baseiam em princípios acolhidos pelo texto constitucional. [45]
Esclarece, no entanto, Ingo Sarlet, que se podem destacar duas situações bem distintas. A primeira ocorre quando as partes da relação jurídica se encontram em condições de relativa igualdade. Neste caso, deve prevalecer o princípio da liberdade, sendo possível uma eficácia direta dos direitos fundamentais apenas na hipótese em que a dignidade da pessoa humana estiver sob ameaça ou diante de uma ingerência indevida na esfera da intimidade pessoal. A outra situação, a contrário senso, se verifica quando a relação se estabelece entre um indivíduo e os detentores de poder econômico ou social. No âmbito dessas relações, ocorre certo consenso a respeito da aplicação direta dos direitos fundamentais na esfera privada, uma vez que se trata de relações desiguais de poder, semelhantes às que se estabelecem entre os particulares e o poder público. [46]
Segundo o escólio de Paulo Gonet Branco, no Brasil, há diversas formas de se proteger os direitos fundamentais nas relações entre particulares. Pode ser por meio de intervenções legislativas, a exemplo da ampla legislação trabalhista e de proteção ao consumidor, assegurando a livre formação da vontade dos hipossuficientes, e prevenindo a discriminação, no âmbito das relações civis. Também pode se dar por meio da interpretação e aplicação de cláusulas gerais de direito privado, a exemplo da jurisprudência formada sobre os contratos de adesão, em que se considerou abusiva a eleição de foro inserida nesses contratos. Pode, ainda, se dar através de suscitação direta do direito fundamental para a solução de conflitos entre particulares, como será adiante demonstrado pelos precedentes colacionados, segundo os quais diversas normas de direitos fundamentais podem ter incidência direta no âmbito de relações jurídicas entre particulares. [47]
4 – A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais na Jurisprudência
Revela-se farta a jurisprudência acerca da incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.
Para o escopo do presente trabalho, serão colacionados apenas alguns dos mais relevantes e paradigmáticos casos já julgados.
De início, impende-se trazer à colação, o Recurso Extraordinário n. 158215/RS, cuja ementa encontra-se assim vazada:
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa. [48]
Neste paradigmático julgado, cujo relator foi o Em. Min. Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma, há mais de uma década, já considerou que uma pessoa jurídica de direito privado, no caso, uma cooperativa, precisava observar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório no caso de exclusão compulsória de um de seus associados.
Decisão semelhante e mais recente se deu no Recurso Extraordinário n. 201819/RJ, relatado pelo Min. Gilmar Mendes, pela Segunda Turma, encontrando-se a ementa com o seguinte teor:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. [49]
Verifica-se, neste julgado, um maior aprofundamento da temática da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas havidas entre particulares, tendo restado bastante clara a posição da Suprema Corte no sentido da necessidade da observância dos preceitos fundamentais, especialmente aqueles de natureza procedimental, como a ampla defesa e o contraditório, sobretudo nos casos em que o ente privado tem o poder de ingerência na vida profissional do associado.
Já o Recurso Extraordinário n. 160222/RJ, encontra-se assim ementado:
I – Recurso Extraordinário: legitimação da ofendida – ainda que equivocadamente arrolada como testemunha -, não habilitada anteriormente, o que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao términi do prazo do Ministério Público (STF, Súms. 210 e 448).
II – Constrangimento ilegal: submissão das operárias de indústria de vestuário à revista íntima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia constitucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado à intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho, questão que, malgrado a sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição superveniente, contada desde a sentença de primeira instância, e jamais interrompida desde então. [50]
Neste caso, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence, a Primeira Turma do Pretório Excelso, infelizmente, não pôde se aprofundar na questão constitucional, pois se tratava de ação penal, em que restou reconhecida a prescrição superveniente.
Não obstante, verifica-se que a primeira instância reconheceu o constrangimento ilegal, por parte do representante da empresa, enquanto que o Tribunal de Justiça entendeu que, por terem "aderido" ao contrato de trabalho, estariam as trabalhadoras anuindo com a violação de sua intimidade por parte da empregadora. Trata-se, pois, de reconhecer a primazia da autonomia negocial, em detrimento dos direitos fundamentais das trabalhadoras.
Entretanto, o próprio despacho de admissão do Recurso Extraordinário, admitiu, em princípio, que teria havido a inobservância, por parte do representante empresarial, da norma inscrita no art. 5º, inciso X, da Constituição, que resguarda a intimidade do indivíduo.
Outro julgado do Supremo Tribunal Federal de destaque neste tema é o do Recurso Extraordinário n. 161243/DF, relatado pelo Min. Carlos Velloso, pela Segunda Turma, cuja ementa se transcreve:
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido. [51]
Aqui acolheu o Eminente Ministro Relator o parecer do Ministério Público, no sentido de que a empresa privada deve respeitar o princípio isonômico, inscrito no caput do art. 5º, da atual Constituição da República, sendo reconhecidamente proibida a discriminação fundada na nacionalidade do trabalhador. Desta forma, o Pretório Excelso conferiu maior envergadura ao direito fundamental de igualdade do trabalhador do que ao princípio da autonomia, não permitindo que este legitimasse a discriminação do trabalhador quanto à distribuição de benefícios previstos no estatuto empresarial.
Revela-se especialmente evidente a necessidade da incidência das normas de direitos fundamentais na seara das relações de trabalho, sobretudo no que diz com as condutas discriminatórias adotadas por empresas empregadoras com relação a seus trabalhadores. Isto porque, diante da flagrante situação de desigualdade entre as partes, o empregador é, frequentemente, fonte de violações aos direitos fundamentais de seus trabalhadores.
Neste sentido, o acórdão da Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, relatado pelo Juiz convocado André Luís de Oliveira, cuja ementa é a seguinte:
Recurso de Revista. Dispensa Discriminatória por Idade. Nulidade. Abuso de Direito.Reintegração.
Se das premissas fáticas emergiu que a empresa se utiliza da prática de dispensar seus funcionários quando estes completam 60 anos, imperioso se impõe ao julgador coibir tais procedimentos irregulares, efetivados sob o manto do "poder potestativo", para que as dispensas não se efetivem sob a pecha discriminatória da maior idade. Embora o caso vertente não tivesse à época de sua ocorrência previsão legal especial (a Lei 9.029 que trata da proibição de práticas discriminatórias foi editada em 13.04.1995 e a dispensa do reclamante ocorreu anteriormente), cabe ao prolator da decisão o dever de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes, para solucionar os conflitos a ele impostos, sendo esse, aliás, o entendimento consagrado pelo art. 8º, da CLT, que admite que a aplicação da norma jurídica em cada caso concreto, não desenvolve apenas o dispositivo imediatamente específico para o caso, ou o vazio de que se ressente, mas sim, todo o universo de normas vigentes, os precedentes, a evolução da sociedade, os princípios, ainda que não haja omissão na norma. Se a realidade do ordenamento jurídico trabalhista contempla o direito potestativo da resilição unilateral do contrato de trabalho, é verdade que o exercício deste direito guarda parâmetros éticos e sociais como forma de preservar a dignidade do cidadão trabalhador. A despedida levada a efeito pela reclamada, embora cunhada no seu direito potestativo de resilição contratual, estava prenhe de mácula pelo seu conteúdo discriminatório, sendo nula de pleno direito, em face da expressa disposição do art. 9º da CLT, não gerando qualquer efeito, tendo como conseqüência jurídica a continuidade da relação de emprego, que se efetiva através da reintegração. Efetivamente, é a aplicação da regra do § 1º do art. 5º da Constituição Federal, que impõe a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, pois, como apontando pelo v. acórdão, a prática da dispensa discriminatória por idade confrontou o princípio da igualdade contemplado no caput do art. 5º da Constituição Federal. Inocorrência de vulneração ao princípio da legalidade e não configurada divergência jurisprudencial. Recurso de Revista não conhecido relativamente ao tema. [52]
Aqui, a mais Corte da Justiça Especializada tratou de afastar a possibilidade de a empresa praticar condutas discriminatórias, que importavam na dispensa imotivada de seus empregados, ao completarem sessenta anos de idade, ainda que a ordem jurídica permita a dispensa sem necessidade de motivação. Entretanto, havendo a conduta de dispensa se baseado em critério discriminatório, ofendido restará o direito à igualdade do trabalhador, devendo tal conduta ser prontamente rechaçada pelo Estado-Juiz, pois o poder potestativo da empresa e sua prática de promover a despedida de funcionários por motivo de idade confrontam-se aos dispositivos constitucionais dos artigos 5º, caput e 7º, inc. XXX, da Constituição Federal.
Mas a discriminação também pode se dar de forma menos contundente, como quando a empresa não admite a conduta discriminatória, mas esta se mostra presumida. Nesse sentido, desponta a questão da dispensa discriminatória de trabalhadores portadores de HIV, sem que a empresa admita que esta seja a motivação para a dispensa.
Nesse contexto, encontra-se o seguinte julgado, proferido pela Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, relatado pelo Min. João Oreste Dalazen:
Reintegração. Empregado Portador do Vírus HIV. Dispensa Discriminatória.
Caracteriza atitude discriminatória ato de Empresa que, a pretexto de motivação de ordem técnica, dispensa empregado portador do vírus HIV sem a ocorrência de justa causa e já ciente, à época, do estado de saúde em se encontrava o empregado.
O repúdio à atitude discriminatória, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, inciso IV), e o próprio respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III), sobrepõem-se à própria inexistência de dispositivo legal que assegure ao trabalhador portador do vírus HIV estabilidade no emprego.
Afronta aos artigos 1º, inciso III, 5º, caput e inciso II, e 7º, inciso I,da Constituição Federal não reconhecida na decisão de Turma do TST que conclui pela reintegração do Reclamante no emprego.
Embargos de que não se conhece. [53]
Verifica-se do julgado que, a despeito da ausência de norma positiva que assegurasse estabilidade ao portador de HIV, deveriam incidir, naquele caso concreto, as normas fundamentais assecuratórias da igualdade, da vedação à discriminação e da dignidade da pessoa humana, não se podendo permitir ao empregador a possibilidade de, com base na sua autonomia empresarial, desrespeitar direitos fundamentais dos trabalhadores a seu serviço.