Em que pesem todas as argumentações referentes a impossibilidade da investigação conduzida por membro do Ministério Público, há um aspecto que merece ser debatido com mais vagar. Qual o caminho tomado pela nossa nova legislação processual penal após a promulgação da CF/88, em que ela nos conduz na busca da implementação de suas garantias?
Podemos verificar que, desde que entrou em vigor a CF/88, os doutrinadores vêm se posicionando por uma perspectiva constitucional do processo penal. O artigo 5º da CF/88, com seus princípios garantistas não recepcionou diversos artigos do Código Processual Penal vigente, como por exemplo a incomunicabilidade do acusado, prevista no artigo 21 do CPP., e o artigo 20 do CPP, que trazia a possibilidade da decretação do sigilo no bojo do IP durante as investigações através de despacho fundamentado pela Autoridade Policial. Após a Carta Magna de 1988 este sigilo ficou mitigado, pois não havia mais sigilo em face do advogado, situação agora pacificada pela edição da Súmula Vinculante 14. Diz a Súmula "é direito do defensor, no interesse do representado,ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa". O enunciado acima demonstra claramente a constitucionalização das garantias na seara processual penal.
Desde a edição da CF/88, as regras processuais penais vêm se modificando para poder se adequar às garantias constitucionais. Doutrinadores discutem atualmente a existência de um direito processual penal constitucional, e isto nos leva a observar uma maior proteção dos direitos individuais daqueles envolvidos num processo penal.
Diante deste panorama verificamos que as leis recentemente promulgadas trouxeram diversos institutos que visaram ampliar a paridade de armas das partes dentro do processo penal. Assim, é inconcebível imaginar que os mesmo legisladores que buscaram equiparar as partes na fase do processo viriam a permitir que houvesse um desequilíbrio na fase pré-processual, permitindo que a investigação fosse conduzida pela acusação, com todo o aparato estadual a sua disposição.
Ainda que se crie uma norma neste sentido, estaríamos ofendendo a nossa Constituição, pois retroceder nos avanços alcançados pelos direitos e garantias individuais seria uma ofensa ao "efeito cliquet" das normas fundamentais.
O inquérito policial, ainda que visto como dispensável ou simples procedimento administrativo, é antes de qualquer coisa, um instrumento contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares. Um inquérito policial bem feito pode ensejar tanto a justa causa para a subseqüente ação penal, quanto a absolvição do inocente. Mais ainda agora com a nova sistemática do procedimento processual penal, que prevê após o recebimento da denúncia o prazo de resposta, momento em que então o juiz irá fazer uma análise de admissibilidade, com a instauração da ação ou a possibilidade de uma absolvição sumária. Não é difícil vislumbrar que para esta decisão será de suma importância a apreciação pelo juiz do contido no inquérito policial, em especial o relatório final do Delegado de Polícia. Devemos nos lembrar que a apuração dos fatos dentro de um inquérito policial é isenta e se busca a verdade real, respeitando os interesses da acusação e da defesa.
Há muito que a doutrina deixou de ver o averiguado apenas como um objeto da investigação e passou a vê-lo como sujeito de direitos. Hoje já se contempla a defesa dentro do inquérito policial, uma defesa mitigada, mas presente, assim como a obrigatoriedade da comunicação ao juiz, família e advogado da prisão em flagrante, as novas regras do interrogatório, o direito ao silêncio, de não ser obrigado a fazer prova contra si.
A CF/88 consagrou o direito de permanecer calado, e numa análise sistemática decorreu que o interrogatório deixou de ser apenas um meio de prova para se tornar um meio de defesa, como muito bem nos coloca a Profª. Ada Pelegrini Grinover, mostrando que a Lei 10.792/03, que alterou o interrogatório, buscou se adequar ao novo sistema constitucional vigente. Apesar do interrogatório estar nos artigos 186 e seguintes do CPP, ele é aplicável na fase do inquérito policial, sem qualquer discordância dos doutrinadores neste sentido. O mesmo dispositivo constitucional trouxe ainda a possibilidade do acusado ter entrevista prévia com seu defensor. Em que pese algumas vozes contrárias, a tese pacificamente aceita é que isso se aplique também na fase do interrogatório policial estando presente o defensor, apesar de não ser obrigatória como na fase processual, onde pode inclusive ensejar a nulidade absoluta no caso de seu descumprimento. Também não se prevê mais sanção alguma àquele que exercer o direito ao silêncio, numa mostra clara da mudança de parâmetros trazidos pelas garantias constitucionais.
A Lei 11.449/2007 modificou o artigo 306 do CPP, trazendo agora no seu § 1º a obrigatoriedade de informar a Defensoria Pública, no prazo de 24 horas, a prisão em flagrante daquele que não indicar advogado. Isto nada mais é do que possibilitar a atuação da defesa do indivíduo que foi preso em flagrante, em atendimento aos preceitos constitucionais que protegem o cidadão contra o arbítrio do Estado.
Na recente Lei 11.689/2008, que alterou o procedimento do Júri, introduziu-se os apartes, os quais permitem a interferência de uma parte na fala da outra durantes os debates, numa demonstração clara que as partes no processo tem direitos iguais. Esta reforma trouxe ainda a vedação a certas referências durante os debates, como o uso ou não de algemas, o silêncio do acusado ou sua ausência no interrogatório, visando impedir que a acusação faça uso da condição de leigos dos jurados para influenciá-los numa decisão de condenação.
Já a Lei 11.690/2008, que alterou as normas relativas às provas, trouxe a possibilidade de nomear assistente técnico para rebater os laudos oficiais, permitindo assim que a defesa produza parecer contrariando o perito oficial e facilitando a defesa do acusado, mais uma demonstração clara do equilíbrio entre as partes que se busca atualmente dentro do processo penal.
As reformas trazidas pela Lei 11.719/2008 talvez sejam as que mais nos interessam, pois tratou diretamente das funções do Ministério Público e foi enfática em limitá-la a apenas duas atribuições. A primeira foi a de promover privativamente a ação penal pública, e a segunda a de fiscalizar a execução da lei. Assim, deixou explicitamente de acrescentar a possibilidade de "instaurar procedimento de investigação e apuração de infrações penais" . Na sua devida proporção com a temática constitucional, teríamos aqui um "silêncio eloqüente" do legislador infraconstitucional, não podendo os doutrinadores e muito menos qualquer membro do MP ampliar suas funções dentro do processo penal.
Esta mesma lei que alterou o artigo 396 do CPP fala da rejeição da denúncia pelo Juiz, que poderá ocorrer liminarmente ou após o defensor apresentar a resposta no prazo de 10 dias. Analisando este artigo mais detidamente, verificamos que o Juiz irá fazer esta rejeição com base na certeza da materialidade e nos indícios de autoria contido na peça que dá sustentação à denúncia, que nada mais é senão o inquérito policial. Em especial, se não for apresentada a resposta no prazo fixado, pois o Juiz não poderá simplesmente receber a denúncia, deverá ele nomear um defensor dativo para oferecer tal resposta. E novamente, em que se baseará o defensor? Nas peças contidas naquele procedimento pré-processual chamado inquérito policial.
Alterado o artigo 397 do CPP passou a permitir a absolvição sumária do acusado no caso de excludente de ilicitude, excludente de culpabilidade (exceto inimputabilidade), se não constituir crime ou estiver extinta da punibilidade do agente. Novamente do que irá se valer o Juiz para esta análise? Do inquérito policial, que é o paradigma para as alegações do acusado.
Se esta peça for produzida por aquele que oferece a denúncia, nada dela se poderá extrair para a defesa do acusado, impedindo inclusive a atuação da Defensoria Pública. Ou seria dada a possibilidade da Defensoria Pública produzir uma investigação preliminar negativa?
Assim, vejo claramente que o Ministério Público não pode conduzir as investigações, pois as vicissitudes do homem o impedem de manter a equidade que se exige na condução da investigação preliminar. Caso esta investigação seja conduzida por alguém que tem interesse na causa acabará por produzir as provas que lhe forem convenientes, buscando apenas a verdade que lhe interessar. É inconcebível que posteriormente, já na fase processual, se iguale o tratamento dado as partes, permitindo somente então a discussão do anteriormente colimado.
A investigação preliminar deve ser conduzida por um ente imparcial que busque a verdade real, não visando absolvição ou condenação e sim garantindo ao cidadão e a sociedade que os fatos serão apurados dentro dos preceitos legais constitucionais e atendendo a dignidade da pessoa humana. Para isso temos o inquérito policial conduzido por um Delegado de Polícia.
O Delegado de Polícia não é um mero aplicador da lei, atado as "Regras do Monstro Frio", para empregar a expressão de Nietzche em "Assim falou Zaratustra", e sim um operador do direito que deverá fazer uma análise entre os fatos apresentados e as normas vigentes, para somente então extrair as circunstâncias que lhe permita agir dentro da lei, colhendo as provas que se apresentarem importantes, sem se deixar levar por qualquer outra paixão que não a de trazer a verdade dos fatos à tona.
Na condução da investigação por membro do Ministério Público teríamos o risco de que a coleta de provas fosse feita em prejuízo ao acusado e sua defesa, pois é do ser humano buscar provas para embasar suas opiniões, e disso não está isento nem mesmo o parquet, assim haveria uma procura orientada de prova para alicerçar suas convicções, numa imparcialidade visivelmente viciada. Não há como dizer que haveria imparcialidade na primeira fase, enquanto se buscam provas de materialidade e autoria, e que ao iniciar a ação penal ele se transmutaria em um acusador. Dar a investigação ao MP seria "confiar al lobo la mejor defensa del cordeiro" como nos coloca o Dr. José Pedro Zacariotto citando Guarnieri.
O Estado Democrático de Direito impõe novos valores a serem observados na aplicação das leis processuais penais, assim o legislador filiando-se a opinião de alguns dos Tribunais Superiores, optou por reformar alguns pontos da lei, valorizando ainda mais a perspectiva de ser uma garantia do cidadão ao invés de apenas um instrumento de persecução penal, dando uma coerência aos preceitos aplicáveis dentro da visão garantista constitucional.
Recente julgado da 15ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - HC 993.08.042790-9 – trouxe in verbis: "Entretanto, para se propor ação penal, é necessário se tenha a "fumaça do bom direito". Só assim poderá o juiz receber a denúncia ou a queixa-crime, submetendo o réu ou querelado aos dissabores da ação penal, aos aborrecimentos que a lide penal provoca ao acusado, mormente naqueles casos em que é absolvido, por ser inocente. Por tais razões a ação penal deve estar fundamentada em provas colhidas pelos órgãos que a Constituição Federal de 1988 designa, mormente no art. 144, § 4º, que determina sejam as infrações penais apuradas pelas "Polícias Civis, dirigidas por delegados de Polícia de carreira". (...)"
Em que pesem todas as mazelas atribuídas ao inquérito policial conduzido pelo Delegado de Polícia, ao tratar do assunto o Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho diz: "o nosso sistema, apesar dos pesares, é mais democrático".
E se assim o é, por que modificar?
Bibliografia
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