3ª PARTE
Duas regras têm sido atribuídas ao pensamento republicano e "socializador", desde a Revolução Francesa: 1) tanto a instituição do chamado Estado de Direito (principalmente com a Constituição de 1791); 2) quanto a perspectiva de que a educação é um direito público-subjetivo, como parte integrante do processo socializador e formador de cada indivíduo. Para Durkheim este é o cerne da questão: "Constituir esse ser social em cada um de nós — tal é o fim da educação" (1979, p. 43). Este seria o esforço social empreendido pela Função Homogeneizadora da educação:
Não há povo em que não exista certo número de idéias, de sentimentos, e de práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças, indistintamente; seja qual for a categoria social a que pertençam [...] No decurso da história, constituiu-se todo um conjunto de idéias acerca da natureza humana, sobre a importância respectiva de nossas diversas faculdades, sobre o direito e sobre o dever, sobre a sociedade, o indivíduo, o progresso, a ciência, a arte, etc., idéias essas que são a base mesma do espírito nacional; toda e qualquer educação, a do rico e a do pobre, a que conduz às carreiras liberais, como a que prepara para as funções industriais, tem por objeto fixar essas idéias na consciência dos educandos. Resulta desses fatos que cada sociedade faz do homem certo ideal, tanto do ponto de vista intelectual, quanto do físico e moral; que esse ideal é, até certo ponto, o mesmo para todos os cidadãos (Durkheim, 1979, p. 41).
Para Durkheim (1999b), "a educação é um fato social" (requisita e expõe, obrigatoriamente: coercitividade 30, exterioridade, universalidade), mas também é uma instituição. Já a escola funciona como "organização social", porque reúne "meios de "identificação sistemática", reprodução afirmativa de valores, do "dever" e das regras morais pré-estabelecidas e do próprio direito. Por isso, pais e professores são considerados como "personificação do dever": a autoridade moral é uma qualidade fundamental.
Com esta ascendência moral tem início, para o sociólogo francês, o processo de socialização primária, coadunando-se liberdade e autoridade: a liberdade é filha da autoridade que se reconhece. Ser livre implica na autogestão da vida, agindo-se conforme a razão e cumprindo-se o dever estabelecido, isto é, satisfazendo-se as expectativas sociais. Portanto, o indivíduo requer educação para socializar-se e viver em sociedade: o homem precisa de modelos sociais porque é egoísta.
A educação enquanto instituição-socializadora, atua como mecanismo essencial de reconstituição, manutenção e perpetuação da sociabilidade e dos sistemas sociais: sem a socialização, o sistema é ineficaz e se desintegra. Ocorre, porém, que esta socialização (identificação com o sistema social), além da própria escola, também se verifica fortemente na família, em igrejas (nas "tradições"), em comunidades (nas regras morais e no direito). É isto que imprime à educação um caráter processual e procedimental, mas não obrigatoriamente de "escolarização".
Para Talcott Parsons, sociólogo americano e divulgador da obra de Durkheim, além de "reproduzir o sistema" como fato social, a educação (como parte do sistema) deveria propiciar uma complementação entre o sistema social (o que inclui política, direito, economia) e o sistema da personalidade da criança. A harmonia, dizia Parsons, está neste equilíbrio, pois os dois sistemas (micro e macro) têm necessidades básicas que precisam ser resolvidas complementarmente.
Uma diferença sensível entre Durkheim e Parsons, está em estabelecer qual "o marco normativo do sistema social". A criança recebe amor e carinho dos pais e, com isso, recepciona o processo de socialização primária, uma vez que seus pais são instrumentos mediadores do sistema social, desde o momento em que se internalizaram essas regras e as transferiram a seus filhos. Assim, as necessidades dos filhos passaram a ser equivalentes, e o indivíduo tornou-se funcional ao sistema: uma correia de transmissão que passa não só pela coerção (no "mundo do adulto", pelo direito), mas também pelo afeto e educação básica da criança.
Os indivíduos precisam assimilar valores e normas que regem o funcionamento social, num processo de "contínua aceitação" e "internalização acrítica", para que haja "reprodução sincrônica do sistema". Diferenças à parte, para ambos há elementos a serem mantidos nos sistemas da educação e do direito: continuidade; conservação; ordem; harmonia; equilíbrio.
Direito e Educação Capitalista
De modo crítico, porém, a questão não é simples assim, porque a "função diferenciadora" (ao contrário da socialização básica) da educação é elitista: "Nem todos somos feitos para refletir; e será preciso que haja sempre homens de sensibilidade e homens de ação [...] Ora, o pensamento não pode ser desenvolvido senão isolado do movimento" (Durkheim, 1979, p. 35. – grifos nossos).
Os gregos também pensavam que quem trabalhava era um aneu logou ou idiotes, ou seja, aquele que não reúne capacidade e condições de pensar e de falar por si mesmo. Sem autonomia, não dispõem dos princípios da isonomia ou da isegoria (liberdade de livre-expressão 31) e, por isso, não colabora com a cidadania. O educando que aceite a condição de ser cliente (cliens = vassalo) não está imune a essas implicações.
Este também seria o "fator hegemônico" que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da sociedade. Nas sociedades capitalistas, mas democráticas e republicanas, é o fenômeno que ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do "direito a ter direitos".
Assim, o emprego do termo hegemonia — para além de Durkheim ou quando acompanhado do sentido amplo de educação republicana, sem a imposição elitista da "diferenciação profissional" —, deve seguir o princípio grego:
O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa "conduzir", "ser guia", "ser líder", ou também do verbo eghemoneuo, que significa "ser guia", preceder, "conduzir", e do qual deriva "estar à frente", "comandar", "ser o senhor". Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar 32. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01).
Muito depois é que foi apropriado por Lênin (1905) e subseqüentemente por Gramsci. No caso deste trabalho, seguimos a lição grega: "dar boa direção ao que é público".
De modo complementar, e se cabe uma licenciosidade, a educação (primeiro com a função homogeneizadora) ainda iria conferir um aspecto massificante, mas também dominador, uma vez que se realizaria complementarmente com a Função Diferenciadora — completaria sua função no moderno mundo capitalista. Esta massificação ou socialização, a partir do ensino fundamental, por exemplo, é responsável pela transmissão dos chamados direitos da cidadania: entre eles, o próprio direito à educação, mas também o "sagrado direito à propriedade". Neste sentido, teríamos aqui a hegemonia como dominação, mas que provém da diferenciação:
Ainda hoje não vemos que a educação varia com as classes sociais e com as religiões? A da cidade não é a do campo, a do burguês não é a do operário [...] Cada profissão constitui um meio sui generis, que reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais, meio que é regido por certas idéias, certos usos, certas maneiras de ver as coisas; e, como a criança deve ser preparada em vista de certa função, a que será chamada a preencher, a educação não pode ser a mesma, desde certa idade, para todos os indivíduos (Durkheim, 1979, p. 40. – grifos nossos).
Portanto, o sentido de hegemonia aplicado à educação, deixa transparecer a idéia de que se trata de um problema complexo, difuso e multifacetado e, por isso, requer empenho e ação global: dominação ou direção?
Assim, mesmo diante deste duplo sentido, a educação é um dos temas mais caros a todo pensamento ético, republicano, suprapartidário e convincente da necessidade da mínima convivialidade. Se partirmos, principalmente, da premissa de que esta convivência é alicerçada e reforçada pela "expectativa do direito", sobretudo se temos o pensamento de que o direito nasce da necessidade de uma sociedade organizada e, por este motivo, o direito passa a abranger todas as áreas da convivência humana. Devemos lembrar também que, historicamente, nem sempre foi assim.
Por essas razões, alguns chegaram a definir o sociólogo francês E. Durkheim como um "pensador republicano" 33. Na verdade, como já esboçado, Durkheim procura ver e fortalecer (como herdeiro de Descartes, Bacon e Conte) as bases do Estado Cientificista (Pisier, 2004, p. 493). Um claro sinal das sociedades desenvolvidas está próximo à idéia de que se lucraria mais com as formas sociais mais equilibradas e desenvolvidas:
Não somente a força é a companheira inseparável do direito, mas é da força que surge o direito [...] Mas logo se descobriu que era geralmente mais econômico não pretender a completa aniquilação do adversário; daí surgiram as instituições da escravidão, os contratos e os tratados de paz, primeiras formas de direito. Todo tratado é, com efeito, uma ordem que determina um limite para o poder do conquistador (Durkheim, 2003, p. 51. – grifos nossos).
A idéia subjacente à expressão todo tratado, obviamente, passa pelo direito e mais especialmente o "direito contratual" (direito público, no século XX) e quiçá pela noção do "contrato social". No século XX, o direito público passou a envolver e a redimensionar o próprio poder, numa aliança entre "democracia representativa" e Estado de Direito. Durkheim também inventariou algumas das criações mais lógicas da modernidade, para em seguida confrontá-las com suas formas contraditórias:
Quanto à civilização, ela tem uma influência complexa sobre essa tendência. Aprimoramento dos meios de transporte e de comunicação certamente contribuíram para a aceleração desse movimento de concentração; avanços tecnológicos aliviaram o peso esmagador do trabalho mecânico sobre o desenvolvimento da mente; a educação se distribuiu entre classes que a ela não tinham acesso, e o Estado passou a exigi-la de seus cidadãos [...] Finalmente, a atual organização da indústria tem o efeito de separar os empresários mais e mais dos trabalhadores, revivendo a escravidão, que assume uma nova forma (Durkheim, 2003, p. 75).
Neste circuito não há volta possível, em razão do que nos impulsiona à autoconservação. Afinal: "Isto não é razão para fazer retroceder a humanidade – proposta tão ridícula quanto absurda -, pois o mundo avança inexoravelmente e é impossível evitar a mudança" (Durkheim, 2003, p. 75).
No fundo, é como se dissesse que a socialização necessita tanto do direito quanto da educação a fim de se obter melhores resultados do próprio "processo civilizatório". Durkheim ainda afirmava que, na Alemanha, burguês e citadino eram sinônimos, e que o direito urbano era o direito do lucro. Os termos forenses ou mercatores designavam sem distinção os habitantes das cidades: o jus civile ou direito urbano ("evolutivamente" contratual, retraindo-se o penal) era sinônimo de jus fori ou direito do mercado.
Como complemento, o direito constituído (Jus constitutum) é o direito da autoridade (pode ser o pai ou o professor), do governo, de que tem o poder (Jus empirii), e funciona como reflexo da arte do bom e do justo (Jus est ars boni et aequi). Por esta vertente funcional-sistêmica, equilíbrio e harmonia estão na não-dissensão, coibindo-se a anomia (= sem normas), como atentado contra o direito posto. É evidente como se fundem direito e capital.
Então, este "funcionalismo" requer certa "harmonia social", e que também emerge da "solidariedade orgânica": o tipo essencial das modernas sociedades capitalistas – alicerçadas mais no "contrato" e no direito civil ou direito contratual, do que no âmbito penal. Basicamente, porque o direito contratual se aplica ao comércio, à indústria, à ciência e tecnologia (direitos autorais, por exemplo) e subseqüentemente ao Estado.
Portanto "a educação e o direito contratual são os meios pelo quais a sociedade renova continuamente suas condições de existência", mas isto só ocorre se há uma mínima homogeneidade entre seus membros. Acentuaria Durkheim: "a educação perpetua e reforça a homogeneidade, fixando muito cedo na alma da criança semelhanças básicas que a vida coletiva supõe". A vida coletiva, o "mundo adulto do trabalho e do dever", supõe exatamente o "agir social" em conformidade ao direito e às normas (Durkheim, 1979; 1983). É disto que a produção precisa, além de bons cientistas e de centros de pesquisa de excelência — o que reforça seu status de Estado Cientificista.
Enfim, está claro que, nos parâmetros restritivos do Estado Cientificista, a educação e o direito não são meios de mudança, mas sim de preservação e de continuidade. A "escola funcionalista" tem uma posição "conservadora" porque seu objetivo é conservar a homogeneidade social, preservando o status quo predominante, a partir da socialização primária dos indivíduos aptos a contribuírem com a (re)produção da "república capitalista".
Portanto, direito e educação são fundamentos ideológicos do capitalismo, assim como a base de sustentação e reformulação constantes do "pensamento produtivo" que move o Estado Cientificista. Em Weber, o que aqui é tratado como cientificismo, será definido como Estado Racional e, mesmo sob críticas do autor, tem por base a racionalização e a "legalidade moderna", da "dominação racional-legal".
4ª PARTE
Weber terá, desde muito novo, uma vida pública incomum, distinta – uma duplicidade acadêmica e política: educação humanista apurada 34. Na maioridade, já perto da morte, participa das discussões e da elaboração da conhecida Constituição de Weimar (1919), tida como um dos três documentos 35 de sustentação do Estado Social: a base jurídico-política vigente, ao menos em todos os países ocidentais desenvolvidos. Dela advém, por exemplo, os direitos sociais e trabalhistas previstos na Constituição Brasileira de 1988, especialmente os artigos 6º e 7º. Seu pensamento político, portanto, está no eixo do mundo moderno, interferindo diretamente nos pressupostos políticos atuais e ainda hoje, de certo modo, predominantes — se pensarmos que daí decorre o Estado Democrático de Direito, entre 1950 e 1970, na Espanha e em Portugal.
Desse caminho da "racionalidade crescente", retenhamos como exemplo geral a adequação dos meios aos fins e como exemplos específicos tomemos a relação custo-benefício e a planilha de contabilidade por partida dobrada – passos decisivos na direção à Política Econômica Estatal (outrora, iniciada como base do mercantilismo). A outra fonte de sustentação desse modelo social e estatal é a burocracia. A isto ainda se fundem algumas bases legais e democráticas, e com isso teremos o Estado Social e a dominação baseada na lei, a dominação legal ou estatutária (também dominada "racional-legal"):
Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua idéia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma. A associação dominante é eleita ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são expressas [...] Obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à "lei" ou "regulamento" de uma norma formalmente abstrata [...] a burocracia constitui o tipo tecnicamente mais puro da dominação legal. Nenhuma dominação, todavia, é exclusivamente burocrática, já que nenhuma é exercida unicamente por funcionários contratados [...] É decisivo todavia que o trabalho rotineiro esteja entregue, de maneira predominante e progressiva, ao elemento burocrático. Toda a história do desenvolvimento do Estado moderno, particularmente, identifica-se com a da moderna burocracia e da empresa burocrática, da mesma forma que toda a evolução do grande capitalismo moderno se identifica com a burocratização crescente das empresas econômicas [...] Na época da fundação do Estado moderno, as corporações colegiadas contribuíram de maneira decisiva para o desenvolvimento da forma de dominação legal, e o conceito de "serviço", em particular, deve-lhes a sua existência. Por outro lado, a burocracia eletiva desempenha papel importante na história anterior a da administração burocrática moderna (e também hoje nas democracias) (Weber, 1989, p. 128-129, 130-131).
Dessa experiência direta com o direito (Estado mais "social", do que "democrático") podemos distinguir, como questão de método, o debate central em torno da racionalidade. É no modelo do direito racional (herdeiro do direito romano) que encontrará a base histórica de sua argumentação. Sem dúvida, a modernidade tem uma significação para a compreensão desta cultura que estamos apontando — do mesmo modo, esta advertência deveria distanciar a análise de um sentido puramente ideal e mal-empregada, por exemplo, do conceito de Estado Democrático de Direito 36. Para nossa análise, essa racionalidade crescente (desde os mitos) tanto está no direito, quanto na educação.
Mas, diante desse quadro "teórico-evolutivo", caso tomássemos a longa trajetória de "construção do conhecimento" pela humanidade, haveria diferenças substanciais entre educação e escolarização? Para um pensador da importância de Max Weber, seria oportuno destacar algumas dessas diferenças?
Educar é revelar
Em primeiro lugar, destaca-se a intelectualização (como ação direta da educação: educare ou "desvelamento") e só depois a escolarização, porque a educação se construiu ao longo do próprio "desencantamento do mundo".
A "escolarização", como "institucionalização do conhecimento" (digamos que tenha alguns milhares de anos), continua sendo bem mais recente do que a racionalização ou "desencantamento do mundo" (ou simplesmente "procura por explicações razoáveis, racionais para os fenômenos da vida").
Em decorrência, a escola como instituição em relação direta com o Estado, só apareceu na modernidade, com destaque para as Revoluções Industriais (a partir da "especialização do conhecimento para o trabalho" - como destacou Durkheim) e reafirmando-se com a Revolução Francesa: quando se "instituiu" a educação pública, ou seja, "a educação passou a ser responsabilidade direta e oficial do Estado".
Na modernidade, descontada a "vocação", foi isto o que Weber destacou: o desencantamento - que tanto se alimentou da educação (como processo de conhecimento, descoberta e "racionalização da vida") - culminou na escolarização ("o controle institucional e a validação do conhecimento pelo Estado"). Assim, "a educação como escolarização" (controlada e validada pela ação pública) é parte integrante da "dominação racional-legal" (burocrática).
Para Weber, diga-se que esta relação se dá no bom sentido, porque se trata de um "controle público" (ou do Estado) acerca do conhecimento que possa interessar ao "desenvolvimento da sociedade moderna" (capitalista). O controle público do conhecimento seria legítimo e conferiria ainda maior legitimidade ao aparato estatal, uma vez que se articularia ao próprio domínio do direito e da coerção (violência institucionalizada, capitaneada pelo Estado).
É difícil assegurar com todas as letras, mas é bem provável que sem esta "escolarização" a dominação racional, na modernidade, teria suas atribuições prejudicadas. A "vocação para a ciência", portanto, seria um aditivo, uma reserva (no âmbito do "individualismo metodológico") que poderia conferir resistência aos desvios e abusos cometidos contra esse mesmo "crescimento da racionalidade, mediante a escolarização", a exemplo das pressões do mercado (vistas por Weber) valorizando os tais "professores de sala cheia" (mais como pregadores do que "profissionais comprometidos com a razão").
Este seria "o outro lado da racionalização": "a social, com vistas a fins", cuja expansão conduziu à falta de valores comuns, antes efetivos e permeados pela religião. Com isso, a educação também se tornou presa da burocratização e do cálculo racional, perdendo-se em dimensão ética e ganhando em especialização.
Este seria o cume da racionalidade moderna: a educação se resumiu à escolarização (como "instituição a serviço de") e, por sua vez, acabou por gerar os especialistas. A alimentação da "divisão social do trabalho", na sociedade capitalista avançada, já seria justificada pela "ética protestante". A força instigante por um mundo moderno e mais "racionalmente equilibrado" pode-se ver nesta comparação em Weber, entre a formação da "racionalidade capitalista" e as formas sociais e "éticas" anteriores, como o confucionismo, taoísmo e outras mais.
Porém, a ciência (razão e verdade) perderia com esse afunilamento da especialização e pela burocratização excessiva, sendo mera presa do mercado - caso não fossem reintroduzidas a "esfera ética" e a própria "vocação para a ciência": essa "embriaguez singular", "paixão", "inspiração" que nada tem em comum com o cálculo frio, pois só ocorre após esforço profundo.
Concluindo-se este item com Weber (1979), e pensando a profissionalização da educação: A posição pessoal do homem de ciência nos diz que ele se dedica à ciência pela ciência, e não apenas para que da ciência possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas.
O desencantamento do mundo e a "intelectualização progressiva"
O "desencantamento do mundo" é um "apuramento intelectual progressivo e contínuo" que passa, necessariamente, pelo aprendizado e isto envolve educação, quer seja pela prática, pela observação atenta das circunstâncias, quer seja pela reflexão dos dados coletados. A intelectualização é, sem dúvida, decorrente desse aprendizado, da "educação como processo de desencantamento e de conhecimento".
Ocorre, porém, que pode-se dar (ou não) pela escolarização. A história demonstra que a escola — como temos hoje — é uma criação da modernidade. Mas, é inegável que entre civilizações antigas e diversificadas, como os Sumérios, Persas, Chineses, no Egito antigo ou nos Liceus gregos, havia educação.
Aqui compreendida a educação, como intelectualização progressiva. Essa intelectualização pressupõe um "amadurecimento intelectual-conceitual" ou mesmo um "apuramento técnico", de habilidades ou de conhecimentos práticos e empíricos e, certamente, isto envolve educação.
Mas, como dissemos, nem sempre o aprendizado e a intelectualização se dão em escolas, a exemplo das guildas ou corporações de ofício, em que o aprendizado era de ordem prática, pela ação do "refinamento da arte do trabalho" e sob a supervisão do "mestre de ofício". Esta foi a "educação do artesão", e sem escola, mas sempre "estudando" novos meios e práticas.
Nesse sentido, o conhecimento empírico contribuiu muito para a intelectualização posterior dos "inventores", como o próprio Galileu e Da Vinci, e ainda que muito distantes da "escola formal". A educação, portanto, também passa pela prática, pelo trabalho e, assim, é, enfim, uma "racionalização de métodos e de operações" (como se viu na "contabilidade por partida dobrada: essencial à escrituração racional capitalista).
De outro modo, o Narrador de W. Benjamin também não nos revela como a "oralidade" é uma manifestação da grande enciclopédia das experiências de vida e de cultura? Ao revelar sua cultura aos mais jovens, os mais velhos estão a educar: mostrando aos jovens certos sentidos da vida. E essas "histórias", como parte da cultura, são racionalizadas, isto é, "esquematizadas" para que seu enredo e conteúdo tenham sentido claro ou mais ou menos preciso. Aliás, como ocorre com o mito.
O ascetismo e as "rejeições religiosas do mundo": inação ou contemplação?
Porém, Weber destaca somente o que significa para o homem médio, comum, este fardo do cotidiano, este peso e encargo trazido pelo desencantamento, que é suportar no dia-a-dia a falta do que celebrar. No texto rejeições religiosas do mundo e suas direções (em que mais se detém sobre o tema desencantamento do mundo), são várias as "esferas da vida" que corroboram para a crescente "racionalização e intelectualização": econômica, política, estética, erótica, intelectual e as três fases da teodicéia.
A própria Razão de Estado teria ganho contributo essencial com a racionalização da esfera política, encarnando-se no homo politicus. Neste sentido, o ascetismo é uma forma de racionalização (dedução lógica, coerência) do mundo prático e da própria religião. Em Weber, no entanto, esse papel esclarecedor da ciência é o que conta, é o que deve ser pensado e destacado, incluindo-se aí o trabalho do professor, como um trabalho intelectual (ou voltado à intelectualização) e que tem a grande sina de esclarecer e de elevar os espíritos.
Primeiro, é claro, a ciência contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os objetos externos bem como as atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso equivale ao verdureiro do rapaz americano [...] Segundo, a ciência pode contribuir com algo que o verdureiro não pode: métodos de pensamento, os instrumentos e o treinamento para o pensamento. Direis, talvez: Bem isso não são verduras, mas não vai, também, além dos meios para conseguir as verduras [...] Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança seu limite, com isso. Estamos em condições de levar-nos a um terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos, decerto, que nós mesmos possuímos clareza [...] Tendes, então, simplesmente de escolher entre o fim e os meios inevitáveis. Justificará o "fim" os meios? Ou não? O professor pode apresentar-vos a necessidade de tal escolha. Não pode fazer mais do que isso (Weber, 1979, pp. 177-178 – grifos nossos).
Aí estará a ética na educação? Nesta "suposta" neutralidade? Mas, será que há neutralidade em não justificar mais os "fins" do que os "meios", e vice-versa, ou não há neutralidade alguma em educação? Weber está querendo somente dizer: "O professor não poderá impor a seus alunos (discípulos ou não) um determinado caminho que ele próprio tenha definido como o método mais metódico". Quem poderá assegurar que, sempre e indubitavelmente, os meios devem ser valorizados em relação aos fins, especialmente se o "fim" ou objetivo for a autoconservação justificada legitimamente?
Educação e "cultura da vida moderna"
Inspirando-se em Weber, pode-se dizer que é a educação, como fundamento do aprendizado contínuo (e sistemático ou sistematizável), quem orienta e/ou impulsiona o "desencantamento do mundo".
Na verdade, talvez até pudéssemos dizer que ele não fala explicitamente da educação. Mas, Weber não foi um autor que tivesse se preocupado ou destacado a educação em seus trabalhos, a não ser em dois momentos e essencialmente se refere à Universidade: em A ciência como vocação e outro traduzido como Universidade.
No texto em que analisa a idéia de ciência como vocação, como sendo um conjunto de preparos, aptidões intelectuais e tirocínio pessoal, na verdade, é o papel do pesquisador-educador que está em destaque: scholar. Mas, na Alemanha, o jovem cientista era o Privatdozent.
No texto, que é uma conferência, inicia indicando explicitamente esse ponto: "No caso presente, parto da seguinte indagação: quais são, no sentido material do termo, as condições de que se rodeia a ciência como vocação?" (Weber, 1993, p. 17).
Nesta exposição, no entanto, não devemos entrar no mérito das discussões entre o paralelo do ensino na Alemanha e nos EUA, que é um dos belos exemplos de apresentação do modelo típico ideal. Quanto ao sistema em geral, há alguns pontos a ressaltar:
a) A idéia da ética profissional: quando Weber diz que seus jovens orientandos deveriam qualificar-se melhor com outros professores, igualmente titulares.
b) A escola como empresa capitalista cria problemas para a ciência, pois quem define as "prioridades" é o diretor (um burocrata ou um capitalista, mas não um "homem de ciência").
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c) Há crescente especialização e divisão do trabalho intelectual:
Por um lado o processo é benéfico, porque acirra a competição, quando se elevam as "qualificações técnicas" e também burocráticas das universidades;
Por outro, há um grande choque entre gerações e isso afeta as próprias "tradições acadêmicas" (o que não deixa de ser uma questão ética). Assim nos diz:
-"Há um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitária capitalista e o professor titular comum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneira íntima de ser" (Weber, 1993, p. 20. – grifos nossos).
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-"Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista" (Weber, 1993, p. 24. – grifos nossos).
Mas a empresa capitalista de ensino aprofunda essas relações, até o nível da maneira íntima de ser. Se a ciência e o cientista devem ser determinados por sua real vocação, acabam compungidos pelo mercado. O ideal é que tivessem vocação:
Todo jovem que acredite possuir a vocação de cientista deve dar-se conta de que a tarefa que o espera reveste duplo aspecto. Deve ele possuir não apenas as qualificações do cientista, mas também as do professor [...] É possível ser, ao mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor (Weber, 1993, p. 22).
E quem será o bom professor, para essas "empresas da educação", que barganham por e com seus alunos? Novamente a questão ética, pois nem sempre o "melhor professor" é prestigiado, porque tudo se remete à quantificação e não, propriamente, qualificação do professor e do conhecimento que oferta:
...as universidades alemãs, particularmente as pequenas, entregam-se, entre si, à mais ridícula concorrência para atrair estudantes [...] continuará a ser na verdade que o número de estudantes constitui um critério tangível de valor, enquanto que o mérito do cientista pertence ao domínio do imponderável (Weber, 1993, pp. 22-23 – grifos nossos).
Engana-se, portanto, quem não vê em Weber a preocupação ética quanto à ciência e à "empresa particular de ensino" (via de regra, subvertendo-se valores e "razões"). Chega a ser enfático e irônico:
Avalia-se, portanto, o bom e o mau professor pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a honrá-lo. Ora, é indiscutível que os estudantes procuram um determinado professor por motivos que são em grande parte [...] alheios à ciência, motivos que dizem respeito, por exemplo, ao temperamento ou à inflexão da voz (Weber, 1993, p. 23. – grifos nossos).
Aqui, alguns acenos críticos de Weber ao Estado Racional ou ao oportunismo (do marketing) que vinha destacando-se em sua época. Hoje, em alguns casos, pode-se até dizer que é com a facilidade com que atribui notas (às vezes, em troca de certos favores que envolvem a "maneira íntima de ser"). Assim, a contra gosto das multidões, o verdadeiro cientista (e também o bom professor) é o que tenha vocação: próprio daquele que sente o despertar da "experiência viva da ciência".
Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantém afastados da ciência, sem essa paixão, sem essa certeza de que "milhares de anos se escoaram antes de você ter acesso à vida e milhares se escoarão em silêncio" se você não for capaz de formular aquela conjectura; sem isso, você não possuirá jamais a vocação de cientista e melhor será que se dedique a outra atividade. Com efeito, para o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão [...] Essa inspiração não pode ser forçada. Ela nada tem em comum com o cálculo frio [...] Normalmente, a inspiração só ocorre após esforço profundo (Weber, 1993, p. 25. – grifos nossos).
Para Weber, então, a ciência e a educação são feitos de vocação: paixão e esforço profundo. Mas ainda dirá que deve surgir e ser valorizada, a intuição:
Se a inspiração não substitui o trabalho, este, por seu lado, não pode substituir, nem forçar o surgimento da intuição, o que a paixão também não pode fazer. Mas o trabalho e a paixão fazem com que surja a intuição, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tempo [...] A intuição, ao contrário do que julgam os pedantes, não desempenha, em ciência, papel mais importante do que lhe toca no campo dos problemas da vida prática, que o empreendedor moderno se empenha em resolver. De outra parte — e é ponto também freqüentemente esquecido — o papel da intuição não é menos importante em ciência do que em arte (Weber, 1993, pp. 26-27 – grifos nossos).
Mas o que é vocação, empenho, intuição? É, em última instância, a dedicação integral (verdadeiramente) a uma causa nobre: "Só aquele que se coloca pura e simplesmente ao serviço de sua causa possui, no mundo da ciência, "personalidade" (Weber, 1993, p. 27).
Por fim, antes de abrir a discussão de que a ciência e sua contribuição ao processo de racionalização é o motor do "desencantamento do mundo", na sociedade moderna, Weber ainda fará uma ressalva quanto à "razão instrumental". Pois, a ciência e suas contribuições pertencem à humanidade, em seu esforço de crescimento pelo conhecimento (racionalizado) e não pode ser reduzido ao mercado:
...qual a posição pessoal do homem de ciência perante sua vocação? [...] Ele nos diz que se dedica à ciência "pela ciência" e não apenas para que da ciência possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas ou para que os homens possam melhor nutrir-se, vestir-se, iluminar-se ou dirigir-se (Weber, 1993, p. 29. – grifos nossos).
Quer dizer que o "homem de ciência", vocacionado, tem disposição de passar a vida atrás de uma verdade regulada por condições/proposições imponderáveis, porque poderá ao final encontrar bem poucas respostas satisfatórias, especialmente às perguntas mais contundentes e decisivas.
Da vocação ao desencantamento do mundo
Se, como veremos, o progresso científico é a mais notável contribuição da sociedade moderna ao processo de hominização (pela profunda racionalização que congregou), então, é óbvio que a educação é a chave dessa vocação moderna, e que sem educação (e ética) todo conhecimento produzido e acumulado seriam instrumentalizados sem nenhum "pudor" ou respeito pela própria humanidade:
O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios [...] Equivale isso a despojar de magia o mundo [...] O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo "desencantamento do mundo" levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes (Weber, 1993, pp. 30-51).
É tão grande nossa dívida à racionalização e à intelectualização (de que tanto se vale o "progresso científico") que, sem educação, não há intuição que desperte o homem para si mesmo. Portanto, tanto quanto o "desencantamento do mundo" (como desmagificação), a educação quer sempre (digamos por ofício) revelar, revelar-se, revelar-nos.
A educação implica no ato propositivo/positivo de educar e deriva do latim educare = revelar o que está dentro, instigar e deixar aflorar habilidades e potencialidades, explicitando-se poderes inatos ao homem. Portanto, este revelar é parte do grande esforço pela racionalização (pois só se revela o que se compreende), pelo "desencantamento do mundo".
Se para racionalizar significados (para melhor compreender e assim poder explicá-los) a educação tem a força (necessidade) de revelar, isto também implica em "deslindar" sentidos e, ao final, é claro, "desligar-se" de algo já inapropriado (sinal do próprio "envelhecimento científico"). O que acelera ainda mais o "desencantamento do mundo". Porém, tanto quanto a educação nos "desliga" de "pré-conceitos", por exemplo, o mito, por seu turno, tem a força de reatar, trazer de volta, "reviver", pois o mito realiza-se ao "religar" sentidos e significados supostamente racionalizados (como adormecidos, domesticados, "controlados"). É este "ato de voltar à cena" que demonstra a força do mito — e voltar sempre como "religar" (ou religare). Este religare, entretanto, nada mais é do que o mito às vésperas de ser racionalizado como religião.
A religião, portanto (e neste sentido), é um demonstrativo do enorme esforço humano de fazer avançar o "processo civilizatório". No caso específico, a "religião" seria a prova material de que houve uma "racionalização do mito". Disso decorre a idéia-força da religião como "religare": religando-se ao mundo, ao tempo, ao passado como formação da cultura, dos sentidos, significados e sentimentos.
A religião indica que, em tempos muito remotos (assim como hoje), o homem procurou por respostas, isto é, "razões" explicativas e convincentes para suas dúvidas. Certamente, a religião é uma "resposta" mais elaborada (racionalizada) do que o mito (seu predecessor), mas guardou do mito exatamente o sentido do religare, desse religar-se, "ser presente e atuante". Isto também explicaria porque os mitos estão tão próximos e ativos na sociedade moderna.
O ascetismo funcionaria como um "método investigativo primitivo" (de ordem basicamente introspectiva): "para melhor entender um problema, é preciso afastar-se dele" (guardando distância, tem-se uma "visão mais objetiva" — "não-contaminada pelos sentimentos"). O ascetismo implica exatamente em certo distanciamento, ausência: afastar-se do sentimento "nublado" da fonte do prazer ou do desprazer. Para, enfim, refletir com a "mente limpa", sobre os problemas aflitivos, é necessário afastar tudo que venha a obnubilar ou trazer perturbação da consciência, ofuscação da vista ou obscurecimento do pensamento.
Por isso, certo ascetismo (como o Taoísmo de Lao-Tsé) não é mera fuga, resignação ou só contemplação, mas, antes de tudo, "reflexão (inação) para o agir futuro". No geral, as máximas militares de Sun Tzu sinalizam que a sabedoria (vitória) vem com a prudência (aqui reflexão). Afinal, tanto na guerra quanto na vida civil, é preciso ter "paciência com a consciência".
Também na educação (tão antiga quanto o mito) não será diferente, porque não se "pensa" e nem se aprende (ou educa) às pressas. Portanto, a educação é parte desse "religare", uma vez que, socializa e assim contribui para "racionalizar as regras e os meios da vida social". A escola, como veículo da educação, origina-se da necessidade desse "religar-se ao saber" (conhecimento que provém da razão) e ao controle social.
Assim, a educação também impulsiona o processo de "desencantamento do mundo", ao organizar e formular (meios) para a divulgação e expansão do saber constituído. Mas, esta é apenas uma forma de socialização, porque teríamos, necessariamente, de aprofundar a discussão ética, do próprio "curso do desencantamento do mundo atual", da racionalidade, da tecno-ciência, enfim, do "livre desenvolvimento material que deixou o espiritual apenas como poeira": as portas abertas ao Estado Cientificista. Isto é, ao que parece, o que o próprio Weber nos chamou a atenção a todo instante. O "sucateamento da educação", a perda da vocação do homem de ciência que não mais vive para a ciência é, sem dúvida, uma das facetas do Estado Cientificista.
Para além do Estado Cientificista
Pensar para além do modelo estatal que vem se estabelecendo tão longevamente, não é tarefa para um só, nem coisa de gabinete, tal qual é preciso recuperar a própria história como vislumbre de caminhos para esse esforço. Também sabemos que a definição formal de Estado de Direito não é suficiente, por muitas razões aqui alegadas e por outras mais que o cotidiano nos ensina sobejamente. Uma das possibilidades, e que remonta ao mesmo período contemplado como o mais efervescente da crítica ao direito à educação, é igualmente dos anos 1960-70. Trata-se do que conhecemos por Estado Democrático de Direito Social, mas que àquela altura na Espanha (e só depois em Portugal) trazia a alcunha de Estado social e democrático de Direito.
Os pressupostos fundamentais que acompanham este tipo de definição seriam: a limitação dos órgãos e das atividades do poder, mediante o princípio da legalidade; a garantia (conferida pela legalidade) da positivação dos direitos público-subjetivos (sujjekitiven öffenlichen Rechte); controle jurisdicional efetivo de toda atividade do Estado (independente de qualquer perspectiva jusnaturalista). Sob este prisma, o Estado não pode se dissociar do direito ou da legalidade, se pensarmos no direito positivo de modo mais estrito.
Mesmo Hans Kelsen, na vida madura e na segunda edição do livro Reine Rechtslehre, considerou as limitações dessa abordagem. Dizia ser um pleonasmo a conjugação de que todo Estado é Estado de Direito, se este Estado estiver identificado pelo direito — porque todo Estado está identificado de um modo ou outro a algum "conteúdo" de direito: liberal ou autocrático. Na segunda versão de Kelsen, além do pleonasmo, há que se identificar Estado de Direito com "democracia" e "expectativa do direito":
...aquele que possui um ordenamento jurídico relativamente centralizado, com base na qual a jurisdição ou a administração se vêem vinculadas pela lei, isto é, por normas gerais emanadas de um parlamento eleito pelo povo; cujos membros do governo respondem por seus atos; cujos tribunais são independentes; e onde se garantem determinadas liberdades aos cidadãos, especialmente a liberdade de religião, de consciência ou de expressão (Luño, 2003, p. 239).
Este era o Kelsen maduro, em conflito com a "ideológica da teoria pura do direito". É nítida a influência dos mecanismos regulatórios da democracia representativa — também se vê que não se tratava de nenhuma apostasia da democracia plebiscitária. Talvez se possa dizer que, além de uma expectativa do direito, há uma "certeza do direito".
A par disso, há um sentido propriamente "ideológico" do Estado de Direito: "Esse é o sentido que deve atribuir-se às novas adjetivações de sozialer, ou demokratischer demokratischer Rechtsstaat, Stato di giustizia, Stato di equità... e nas que se dá um maior ou menor grau de utopismo com respeito ao funcionamento efetivo da práxis estatal" (Luño, 2003, p. 240).
À esquerda do debate, pode-se citar Galvano Della Volpe (no livro Rousseau e Marx) e a perspectiva de que a legalidade socialista é equivalente ao espírito liberal encarnado em Locke e Kant.
À direita, o discurso encobre uma "legalidade de exceções", principiando pelo próprio "direito de exclusão" nazi-fascista:
Pode citar-se, como caso limite neste processo de fungibilidade ideológica do Estado de Direito, o de alguns juristas fascistas e nacional-socialistas por demonstrar a predicabilidade dessa noção a respeito de suas realidades políticas. Deste modo, Koellreutter pode aludir a um nationaler Rechtsstaat para designar o sistema político totalitário do III Reich (Luño, 2003, p. 240).
O que está sugerido, portanto, é que analisemos meios e fins, ao tratar do tema Estado de Direito (mas poderia dizer, simplesmente, direito, educação, Estado e política). Seguindo Weber (1979), seria como buscar a relação entre os "valores quanto aos meios" ou a "ética da responsabilidade". O mesmo que não valorar somente os fins ideologicamente propostos e perseguidos, como também as técnicas com as quais atuamos. Há um percurso histórico paralelo, "evolutivo" entre ambos.
Em termos políticos, o resultado pode ser observado na conquista do "direito a ter direitos" (Bobbio, 1992). De modo particular ou objetivo: o próprio direito à educação, o direito de greve, o sufrágio universal, os direitos da seguridade social. São direitos ligados diretamente à luta do movimento trabalhista.
A própria democracia política, a partir mesmo do Bill of Rigths, representa este curso contínuo da longa trajetória da luta política, dos trabalhadores, dos desafortunados de poder. O Habeas corpus é um desses instrumentos de defesa, nascidos ou forjados na luta política, contra o abuso do poder de indivíduos, grupos ou classes que pudessem controlar principalmente os "aparelhos repressores do Estado". Voltemos à sugestão de Luño, para rever Della Volpe (na edição portuguesa) — a citação é longa, mas necessária pois se trata de um "tema em conflito":
A dupla face, as <duas almas>, da liberdade e da democracia moderna. A liberdade civil intitulada pela democracia parlamentar e teorizada por Locke, Montesquieu, Humboldt, Kant, Constant, e a liberdade igualitária instituída pela democracia socialista e teorizada explicitamente por Rousseau, e subentendidas por Marx, Engels e Lenine. A liberdade civil, ou propriedade burguesa, é, no seu sentido histórico e técnico, a liberdade ou conjunto das liberdades dos membros da <sociedade civil> enquanto sociedade (de classe) de indivíduos produtores: é o conjunto das liberdades ou direitos da iniciativa econômica individual, da segurança da propriedade privada (dos meios de produção), do habeas corpus, de livre culto, consciência e imprensa etc. (de alguns dos quais direitos se viu que transcendeu o Estado Burguês pela sua tendência para o universal). Instrumentos jurídico-políticos da liberdade civil: a separação dos poderes do Estado e o aparelho do poder legislativo como representativo-nacional etc.; o parlamentarismo do Estado liberal, burguês. A outra liberdade (Della Volpe, 1982, pp. 55-56).
Talvez neste sentido se apanhe e se aproveite melhor as sugestões de Della Volpe, de que a democracia socialista não substitui e nem está em contradição com os institutos políticos da democracia política (moldados na forja do liberalismo, desde os séculos XV-XVI). A democracia política seria um pré-requisito daquela, uma exigência do movimento dos trabalhadores socialistas.
Na construção do socialismo, a liberdade, a garantia dos direitos fundamentais, a Justiça, deveriam se plasmar, como esteio do próprio Estado de Direito. Com isso, não haveria melhor demonstração ou efetivo uso de práticas políticas democráticas e populares, controlativas de qualquer ímpeto autocrático de poder (ainda que fossem lançados em nome do próprio socialismo).
Por aqui também se encaminha a doutrina do "jusnaturalismo iluminista": as leis devem conter os valores de Justiça e esta certeza deve induzir o Estado de Direito. Como se a lei fosse "expressão da racionalidade histórica e produto de uma vontade majoritária, autenticamente democrática" (Luño, 2003, p. 245).
De todo modo, há um funcionamento efetivo da práxis estatal, seja à esquerda, seja à direita. Também não deixa de ser irônico que esta discussão "ideológica" tenha sobrevindo após as últimas manifestações de Kelsen, em favor de uma "adjetivação" democrática, liberal, socialista ou nazista do Estado de Direito.
Por isso, ainda hoje, podemos/devemos pensar uma "educação após Auschwitz".