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O novo inciso IV do artigo 114 da Constituição Federal e a sua aplicabilidade, abrangência e procedimento na Justiça do Trabalho

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Agenda 30/04/2009 às 00:00

3 – Habeas Corpus

O primeiro dos remédios constitucionais de defesa dos direitos individuais do cidadão significa em tradução livre "tome o corpo", como forma de garantir a liberdade de permanência e locomoção do indivíduo, independentemente de autorização ou permissão de terceiros. Presta-se a atacar atos judiciais ou administrativos e até de particulares que violem ou ameacem o direito de liberdade do cidadão.

Está descrito no inciso LXVIII do artigo 5º da Carta Magna que: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;". O artigo 647 do Código de Processo Penal praticamente restringe-se a repetir a redação constitucional, sem qualquer alteração significativa.

Pela definição constitucional, vários penalistas de nomeada, dentre os quais o saudoso professor JULIO FABBRINI MIRABETE [14], nos ensina que:

"A expressão habeas corpus indica a essência do instituto pois, literalmente, significa ‘tome o corpo’, isto é, tome a pessoa e a apresente ao juiz, para julgamento do caso. Posteriormente passou a ser entendida a expressão também como a própria ‘ordem de libertação’. O habeas corpus é uma garantia individual, ou seja, um remédio jurídico destinado a tutelar a liberdade física do indivíduo, a liberdade de ir, ficar e vir. Pode ser conceituado, pois, como o remédio judicial que tem por finalidade evitar ou fazer cessar a violência ou a coação à liberdade de locomoção decorrente de ilegalidade ou abuso de poder. Com ele se pode impugnar atos administrativos ou judiciários, inclusive a coisa julgada, e de particulares."

E arremata brilhantemente:

"Para assegurar outros direitos que não a liberdade de ir, ficar e vir, a medida adequada é o mandado de segurança.".

O procedimento utilizado na tramitação do habeas corpus está descrito no Código de Processo Penal (artigos 647 e seguintes), e este deverá ser adotado, com as devidas adaptações, quando de sua impetração na seara laboral, vez que a natureza jurídica do writ é de ação penal. Não se deve confundir com a possibilidade de prisão criminal e civil, esta nas duas hipóteses constitucionais (inciso LXVII do artigo 5º). A possibilidade de prisão pode se materializar tanto na esfera criminal (regra) como na civil (exceção), contudo, em qualquer das duas hipóteses, o habeas corpus impetrado terá natureza penal.

Neste sentido é o escólio do renomado Professor Doutor da Universidade de São Paulo, ALEXANDRE DE MORAES [15], que assim nos ensina:

"O habeas corpus é uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Não se trata, portanto, de uma espécie de recurso, apesar de regulamentado no capítulo a eles destinados no Código de Processo Penal.".

Referentemente às questões processuais do remédio heróico, algumas conclusões rápidas exsurgem, como a possibilidade de concessão da medida a pedido da parte (impetrante) ou de ofício pelo Juiz quando analisa o processo; o writ pode ser preventivo (salvo-conduto) ou repressivo; tanto a pessoa jurídica quanto a física, inclusive o Parquet, tem legitimidade ativa para impetração, entretanto somente pessoa física é passível de sofrer restrição ilegal em sua liberdade, podendo ser paciente em habeas corpus; não há necessidade de representação por advogado; deverá a autoridade coatora prestar informações etc.

Importante distinção é a realizada quanto a possibilidade de prisão criminal ou civil, pois esta diferenciação será deveras importante na delimitação da competência para conhecimento e processamento do remédio heróico. Pode o Juiz do Trabalho cometer ato de cerceamento da liberdade dos indivíduos tanto em esfera civil quanto criminal, vejamos:

Quando o magistrado laboral determina a prisão de um depositário infiel ou do devedor de pensão alimentícia (esta possibilidade já é defendida modernamente por alguns juristas, em razão da natureza alimentar do crédito trabalhista), a prisão tem natureza civil.

Por outro lado, quando o juiz do trabalho determina à autoridade policial que detenha determinada pessoa por crime de desacato à autoridade em uma audiência, ou dá voz de prisão a um depoente que comete o crime de falso testemunho, estará praticando ato de natureza criminal, em razão dos crimes previstos no Código Penal e legislação extravagante.

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Na primeira hipótese, da prisão de natureza civil, será a própria Justiça do Trabalho competente para apreciar e julgar o remédio heróico impetrado, pois a restrição da liberdade do paciente teve origem em atos inerentes à jurisdição trabalhista, a teor do inciso IV, in fine, do artigo 114 da Constituição Federal.

Na hipótese citada, será o Tribunal Regional do Trabalho da jurisdição em que atua o magistrado coator de primeiro grau quem irá apreciar e julgar o habeas corpus impetrado. Da mesma forma, se o coator for monocraticamente Juiz de Regional, ou decisão colegiada deste, será competente o Tribunal Superior do Trabalho para processar e julgar o writ.

No sistema anterior à Emenda Constitucional nº 45\2004 a jurisprudência inclinava-se a dizer que era o Superior Tribunal de Justiça o foro competente para processar e julgar os habeas corpus impetrados em face de Juiz de Tribunal Regional do Trabalho, seja qual fosse a natureza da ilegalidade, ex vi da alínea "c" do inciso I do artigo 105 da Constituição.

Entretanto, penso que tal sistemática foi modificada, pois o inciso IV do atual artigo 114 declina de forma peremptória que é a própria Justiça do Trabalho competente para processar e julgar os habeas corpus quando oriundo de ato sujeito a sua jurisdição, como é a hipótese dos writs em que juiz de segundo grau causa a ilegalidade, determinando a prisão civil.

Para as prisões de natureza criminal, como explicitado algures, continua o Superior Tribunal de Justiça com competência originária para julgamento dos habeas corpus impetrados em desfavor de magistrado trabalhista de segundo grau. Seria a hipótese em que na sessão de julgamento colegiado, o magistrado, após ser desacatado por um dos presentes, determina ao Policial que faz segurança do local que prenda o indivíduo. Nessa situação, materializa-se uma prisão de natureza penal (crime de desacato), desafiando impetração do remédio heróico no Superior Tribunal de Justiça, com fundamento na alínea "c" do inciso I do artigo 105 da CF\88.

Agora, se o mesmo magistrado de segunda instância determinasse em um processo, ou confirmasse uma decisão de primeiro grau, a prisão de um depositário infiel (prisão civil), é o Tribunal Superior do Trabalho o competente originariamente para julgar o habeas corpus a ser impetrado, a teor do inciso IV, in fine, do artigo 114 da CF\88.

Com esta forma de interpretação lógico-sistemática do ordenamento constitucional, sempre lembrando a inexistência formal de conflitos entre normas constitucionais, nem havendo hierarquia entre elas, fundadas no princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, a solução esquadrinhada linhas acima, empresta efetividade a ambos os dispositivos competenciais citados, sem negar vigência a nenhum deles e sem causar conflito de competência em situações práticas a partir da edição da Emenda Constitucional nº 45/2004.

Como diria o saudoso Professor CARLOS MAXIMILIANO [16]: "Procura-se a hermenêutica com o resultado provável de cada interpretação. O Direito deve ser interpretado inteligentemente, e não de modo que a ordem legal envolva absurdos.".

Para arrematar a sistematização competencial defendida nos parágrafos retro, trago lição do maior de todos os constitucionalista, o Professor Doutor da Universidade de Coimbra, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO [17], que traz subsídios para amparo do que sustentei, verbo ad verbum:

"O facto de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua que podem existir fenômenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagónicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, como é óbvio, o pluralismo e antagonismo de ideias subjacentes ao pacto fundador.

A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a consequente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma lógica do tudo ou nada, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu peso e as circunstâncias do caso.".

Em conclusão, se a prisão é de natureza civil - infiel depositário ou devedor de pensão alimentícia (para aqueles que a admitem) -, competente é a própria Justiça do Trabalho para julgar, seja de que hierarquia for a autoridade coatora. Se a decisão do juiz do trabalho constranger a liberdade do indivíduo em razão de crime capitulado no Código Penal ou na legislação extravagante, competente será a Justiça Federal, em cada uma das hipóteses seguintes: Tribunais Regionais Federais quando o coator for Juiz do trabalho de primeiro grau (alínea "d" do inciso I do artigo 108 da CF\88), Superior Tribunal de Justiça quando o coator por Juiz de segundo grau (alínea "c" do inciso I do artigo 105 da CF\88) e, por fim, o Supremo Tribunal Federal quando a autoridade coatora for Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (alínea "d" do inciso I do artigo 102 da CF\88).

Fixada adrede a permissão doutrinária e jurisprudencial do cabimento do habeas corpus nas hipóteses de constrangimento da liberdade do indivíduo por ato ilegal de particular, certamente, nascerá na seara laboral a dúvida sobre a possibilidade de impetração do writ nas hipóteses em que o empregador mantém trabalhadores em condições análogas à de escravo, notadamente em fazendas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país.

A doutrina é pacífica na aceitação dos ditames do artigo 149 do Código Penal como uma forma objetiva de caracterização moderna do trabalho escravo, ou como preferem outros: trabalho em condições análogas à de escravo. Vejamos o que vaticina a legislação citada:

"Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho."

Que a redução de trabalhadores à condição análoga a de escravo representa uma ilegalidade que afronta os princípios mais comezinhos de proteção da dignidade da pessoa humana, e também a fato descrito no artigo 149 do Código Penal, dúvida não há. Que o cerceamento da liberdade de locomoção do trabalhador possa desafiar a impetração do remédio heróico, também nunca houve dúvida.

Como a autoridade coatora é o empregador privado, será o magistrado de primeiro grau o competente para apreciar e julgar o remédio heróico. Entretanto, suscitar-se-á dúvida se o habeas corpus será manejado na Justiça Especializada ou Comum.

Utilizando o raciocínio exposto linhas acima, sem sombra de dúvida, neste particular, será a Justiça Comum Estadual a materialmente competente para apreciar e julgar o writ, pois o constrangimento ilegal de liberdade dos trabalhadores constituí crime capitulado no artigo 149 do Código Penal, de forma que escapa do espectro de abrangência dos atos sujeitos à jurisdição trabalhista, como declinado pela norma constitucional de regência.

Os direitos trabalhistas cerceados pelo empregador, serão, por lógico, nesta situação, objeto de reclamatória trabalhista ajuizada na Justiça do Trabalho com tramitação independente, ou até objeto de ação coletiva lato sensu manejada pelo combativo Ministério Público do Trabalho. Nada impede que este mesmo órgão ministerial especializado possa impetrar o habeas corpus na Justiça Comum Estadual para vindicar pela liberdade dos trabalhadores coagidos.

Detalhe importante quanto a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para impetrar o habeas corpus em favor dos citados trabalhadores submetidos a condição análoga à de escravo, para aproveitar o exemplo dado, é a vedação de impetração de "habeas corpus coletivo", vale dizer, é vedado no procedimento do writ a inclusão de pacientes coletivizados na petição inicial, poderá haver a individualização de vários pacientes em uma única petição (alínea a do § 1º do artigo 654 do CPP), mas não a qualificação do paciente como um grupo determinável de sujeitos que se encontrem na mesma situação de fato.

Situações práticas a desafiar o cabimento do habeas corpus na Justiça do Trabalho são férteis de ocorrência, dentre as quais a possibilidade de condução coercitiva ilegal de testemunha para prestar depoimento em situações em que não ensejaria essa determinação. Na hipótese, em razão da restrição ilegal do direito de liberdade de locomoção, é plenamente cabível a impetração do remédio heróico, de forma preventiva (salvo-conduto), objetivando cessar a eminente ocorrência de cerceamento ilegal da liberdade. O juízo competente, neste particular, será o Tribunal Regional do Trabalho, em razão do ato coator emanar de juiz singular sujeito a sua jurisdição hierárquica.

A condução coercitiva de testemunha também pode ocorrer para subsidiar a instrução de inquérito civil público presidido por membro do Ministério Público do Trabalho, condução determinada com a faculdade que lhe dá o inciso I do artigo 8º da Lei Complementar nº 75/1993.

Outro exemplo, aparentemente acadêmico, porém de ocorrência prática possível (esdrúxula, convenhamos), é a determinação de magistrado de primeiro grau visando a condução coercitiva de autoridade pública, juiz de Tribunal Regional do Trabalho, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho ou até de Ministro do Supremo Tribunal Federal, Governador de Estado, entre outras, para prestar depoimento em juízo, sem observância das prerrogativas do artigo 411 do Código de Processo Civil.

Em ambas as situações descritas nos dois parágrafos supra será o Tribunal Regional Trabalho competente para processar e julgar o habeas corpus, conclusão esta amparada em toda a sistematização que fiz linhas atrás quanto a possibilidade de cerceamento da liberdade em duas situações distintas (civil e criminal).

Nada obstante as autoridades citadas no parágrafo retro, Ministros de Tribunais Superiores, tenham foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal para a impetração do remédio heróico quando forem pacientes. As ameaças da liberdade ambulatorial que determinam a competência do Excelso Pretório nestes casos são advindas de prisão criminal. No caso em estudo, o ato coator do juiz do trabalho não é decorrente de crime, e sim de instrução de processo, razão pela qual será obedecida a distribuição competencial do inciso IV, in fine, do artigo 114 da Constituição Federal de 88.

A determinação de prisão civil pelo magistrado trabalhista a desafiar a impetração do habeas corpus, pode ensejar o questionamento pela via mandamental em duas vertentes: formal e material, isto é, tanto poderá haver ataque aos requisitos formais do mandado de prisão (falta de indicação do tempo de prisão, falta de assinatura do juiz etc.), quanto poderá haver ataque aos requisitos materiais da prisão em si, como o paciente não ter sido nomeado depositário ou este não ter sido previamente intimado para entregar o bem ou pagar o valor equivalente, entre outras hipóteses.

O recurso cabível na seara laboral em face da decisão em habeas corpus será, naturalmente, o recurso ordinário no prazo de oito dias, dirigido ao Tribunal hierarquicamente superior (TRT) ao juiz que julgou originariamente o remédio. A doutrina penal, à toda evidência aplicável na Justiça do Trabalho, defende a possibilidade de, ao revés de utilizar o recurso próprio (recurso ordinário), o impetrante também poderá renovar a impetração de novo habeas corpus no órgão hierarquicamente superior (TST), pois aquele órgão a quo (TRT), ao rejeitar o writ e admitir a decisão originária (Juiz do Trabalho) que cerceava o direito da liberdade, passou a ocupar a posteriori a posição de autoridade coatora.

Sobre o autor
André Araújo Molina

Doutorando em Filosofia do Direito (PUC-SP), Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil (UCB-RJ), Bacharel em Direito (UFMT), Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOLINA, André Araújo. O novo inciso IV do artigo 114 da Constituição Federal e a sua aplicabilidade, abrangência e procedimento na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2129, 30 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12724. Acesso em: 22 nov. 2024.

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