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A possibilidade de mudança do caráter da posse precária e sua utilidade para fins de usucapião

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Agenda 28/04/2009 às 00:00

O texto trata da possibilidade da mudança do caráter da posse precária e seus efeitos, encetando alargar o alcance da usucapião, tendo em vista o fim social da propriedade.

Sumário: Introdução – 1. Posse no direito brasileiro; 1.1 Dos Vícios da posse – 2. Interpretação conforme a Constituição; 2.1 Função social da propriedade; 2.2 Direito à moradia como direito fundamental; 2.3 Da colisão entre direitos fundamentais – 3. A possibilidade de mudança do caráter da posse – Conclusão – Referências Bibliográficas.


Introdução

Por intermédio da Emenda Constitucional nº 26, cujo fim foi acrescentar ao art. 6º da CF/88 o direito à moradia, [01] o Poder Constituinte Reformador buscou reforçar o caráter fundamental que possui tal direito em nosso ordenamento jurídico. Assim, entendemos que devem ser reinterpretados, à luz do novo texto Constitucional, todos os instrumentos jurídicos que tenham influência sobre este direito (social) fundamental. [02]

Esta tarefa é exercício que o operador do direito deve se impor, já que é de sua responsabilidade que tal preceito fundamental se concretize de fato, [03] e que tal comando constitucional seja obedecido. Para melhor ilustrar essa idéia, socorremo-nos da verve de Rui Barbosa: "a interpretação é o ato inicial de toda obediência." [04]

Por este motivo, inferimos ser pertinente tratar do tema da possibilidade da mudança do caráter da posse precária, e seus efeitos, encetando alargar o alcance da usucapião, posto que este tipo de aquisição da propriedade imobiliária, indubitavelmente, concorre para a efetivação do direito à moradia e atende ao propósito maior do direito de propriedade, que é o de atingir seu fim social. [05] Neste texto, demonstraremos que a desatenção dos civilistas à nova realidade de nossa ordem jurídica, é fator que tem impedido o precarista a consumar a usucapião, fato que colide frontalmente com os princípios constitucionais vigentes. [06]


1. Posse no direito brasileiro

Reza o art. 1.196 do Código Civil de 2002: "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade." É cediço na doutrina, malgrado haver-se contaminado com a teoria subjetiva de Savigny, [07] que nosso CC adotou a teoria de Ihering – teoria objetiva da posse. Portanto, é lícito concluir, com apoio no próprio Ihering, que "a posse não é poder físico, e sim exteriorização da propriedade", [08] como se lê claramente no dispositivo legal citado.

Mas, para fins de usucapião, não só o exercício "dos poderes inerentes à propriedade" basta. E aqui se encontra a contaminação da teoria subjetiva. Prescrevem todas as normas legais sobre usucapião, e também o faz o art. 183 do CF/88 que, aquele que possuir como sua a coisa, adquirir-lhe-á o domínio. É flagrante nas normas que regulam a usucapião a preocupação com o elemento subjetivo do possuidor.

Em princípio, há um choque das duas teorias no tocante à definição da posse ad usucapionem. Mas, ao contrário do que se pode pensar, é cabível a integração das teorias para se definir com efetiva precisão, que tipo de posse pode gerar usucapião. Investigando o animus do precarista e observando suas atitudes externas, é possível aferir se houve uma transformação no caráter da posse, e afirmar se esta pode ser considerada útil para fins de usucapião. Para tanto, vejamos.

1.1 Dos Vícios da posse

Os vícios da posse estão elencados no art. 1.200 CC/02. São eles a violência, a clandestinidade e a precariedade. É violenta a posse adquirida mediante esbulho, por utilização de força física ou moral. É clandestina a posse exercida às escondidas, sem ciência do proprietário ou verdadeiro possuidor, de modo a ocultar-lhe à coisa ou a própria posse. É precária a posse adquirida pelo abuso de confiança. Explica-se: Alguém recebe a posse numa relação de desdobro (posse justa e direta) e, no prazo de término desta relação – ou devidamente notificado para devolver a coisa, recusa-se a entregá-la. Surge, então, a precariedade que "se caracteriza justamente ao tempo em que a restituição é recusada." [09]

É dominante na doutrina e jurisprudência que, em face do instituído no art. 1.208 do CC, é possível que a posse viciada convalesça, depois de cessada a violência ou a clandestinidade. E, cediço também é, que a posse precária, já que não há previsão legal, nunca convalesce, sendo imprestável para fins de usucapião.

Já se disse, e com muita propriedade, que "dos vícios elencados no Código Civil, talvez seja a precariedade o mais polêmico, e certamente o que provoca as discussões mais acaloradas." [10] Moreira Alves opina que a contaminação de preceitos da teoria unitária, à teoria vertical, que acabou sendo adotada em nosso CC, pode ser um dos motivos de tantas controvérsias. [11] Lenine Nequete denuncia que a doutrina pátria ainda interpreta a posse precária sobre o prisma do direito reinícola, que não prescindia da boa-fé para gerar direitos. [12]

Vive-se hoje uma nova realidade. O Código Civil prescindiu da boa-fé para a usucapião extraordinária, permitindo, então, que a posse precária, desde que exercida com ânimo de dono, seja útil para esse fim.

É veemente, em especial em alguns doutrinadores do início do século XX, a assertiva que o vício da precariedade nunca cessa. Entendemos que tal posição hoje precisa ser revista, mormente após a EC nº 26.


2. Interpretação conforme a constituição

Sabemos que a estrutura de Poder que chamamos Estado de Direito, nasce e organiza-se juridicamente por intermédio de um instrumento normativo: a Constituição. [13] Assim, "definimos Estado de Direito como o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais)." [14]

Notamos que as regras insculpidas na Carta Magna efetivam a gênese do Estado de Direito. Logo, se esta norma fundamental (que funda, dá vida) tem em seu substrato princípios, [15] toda e qualquer manifestação jurídica (seja ela de interpretação e/ou aplicação do direito) que se observe no seio do Estado, deve se harmonizar com eles, [16] ou se corrompe, por ilegítima, [17] "pois todo processo de interpretação se implementa a partir da normatividade jurídica do pacto fundador." [18]

Comentando a atividade do operador do direito, enquanto intérprete, em confronto com os diversos métodos hermenêuticos disponíveis, bem frisou Tércio Sampaio Ferraz Júnior que "sendo a decidibilidade a questão básica que domina a atividade do jurista, a hermenêutica jurídica visa fundamentalmente criar condições para que eventuais conflitos possam ser resolvidos com um mínimo de perturbação social." [19]

Se levarmos em conta que um dos princípios fundamentais do Estado Brasileiro, qual seja, "assegurar o exercício dos direitos sociais" (moradia), só é alcançado se a propriedade (direito individual) buscar seu fim social, [20] e, se observarmos que um dos instrumentos garantidores deste ensejo é a usucapião, concluímos que se uma situação fática perpetua-se por um considerável espaço de tempo, e se há naqueles fatos elementos caracterizadores da usucapião, a concessão desta benesse, é, evidentemente, a solução jurídica que causa um mínimo de perturbação social, ou seja, dentro das possibilidades legais, ao deferir ou pugnar pela concessão da usucapião, atinge o jurista, o escopo fundamental de sua atividade, dentro dos cânones do pacto fundador.

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Nesse sentido é de se aplaudir o eloqüente aresto do TAMG, que consignou:

"A CF de 88, em seu art. 183, não estabelece o limite mínimo para se invocar a usucapião, mas apenas o máximo, não se podendo, assim, através de uma pretensa interpretação restritiva fundada em norma infraconstitucional anterior a Lei maior, reduzir indevidamente o alcance de uma regra constitucional de eficácia plena." [21]

Contrariu sensu, qualquer interpretação que vise restringir o exercício legítimo do direito fundamental de moradia, é eivada de inconstitucionalidade, [22] mesmo que seja baseada numa exegese consagrada de normas de direito privado, por ferir corolário do Estado de Direito, representado pelo princípio [23] da dignidade humana. [24] O texto constitucional estabeleceu novos parâmetros para a proteção da propriedade e para o exercício da usucapião, e como ensina Celso Bastos, "nem sempre, contudo, as regras do Código Civil podem ser aplicadas ao instituto constitucional [da usucapião]." [25]

Carnelutti tinha a mesma preocupação. Analisar um problema jurídico que mantém contato com vários ramos do direito é tarefa que exige do hermeneuta alguns cuidados, verbis:

"Ocorre que, para poder estudar esse formidável mecanismo, os cientistas do Direito o tem de fazer por partes. Não de outro modo se comportam os médicos com o corpo humano, e os engenheiros com as máquinas. Em suma, o Direito por fragmentos não é Direito, e sim uma parte do Direito; e a realidade da parte exclui a realidade do todo. Isso quer dizer que a decomposição do Direito é um procedimento necessário de nossa ciência: mas pode conduzir a gravíssimos erros, se não for acompanhada do conhecimento de que o que nós observamos é mais cadáver do Direito do que Direito vivo, porque a vida, ou seja, a realidade do Direito, não está em nenhuma parte, senão no todo e em sua unidade. Para ver o Direito vivo há que se subir o mais alto possível, onde o olho possa abarcar, quanto caiba, sua imensa realidade." [26]

Sobre o problema de se estudar os institutos de direito público, [27]- [28] sob o prisma do direito privado, Geraldo Ataliba asseverou:

"(...) a maioria dos bacharéis atuantes vê o mundo pela ótica do direito civil e é levada a assim modelar suas próprias funções e ver as dos demais. (....) Conseqüência é o desconhecimento, e decorrente desprestígio, do direito constitucional e demais setores publicísticos que, ou são ignorados, ou tratados com técnicas, princípios, espírito e perspectiva privatísticas pelos aplicadores, inclusive judiciais." [29]

Por que colacionamos estas lições? Para o deslinde da questão central do assunto objeto deste estudo. O ponto fulcral da discussão que se propõe, é demonstrar que a interpretação que se faz tradicionalmente da posse precária (salvo honrosas exceções, que veremos adiante), atenta contra os princípios da Constituição Brasileira. Tal interpretação, em casos em que resta flagrante a mudança do caráter da posse, tem impedido o exercício de uma garantia social fundamental, [30] que é o da moradia, e mais: Impedido a propriedade atender a seu fim social.

2.1 Função social da propriedade

Falamos sobre interpretação conforme a constituição, porque a Carta Magna veio dar novos contornos ao direito de propriedade, que durante muito tempo foi interpretado como absoluto, [31] e ainda hoje, encontramos em algumas definições e conceitos – principalmente em alguns manuais de direito civil – ranços dessa realidade ultrapassada.

Como ensina a melhor doutrina, a "função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação de propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade." [32]

Sendo elemento interno e imanente à propriedade, é lícito dizer que este direito só existe, uma vez observado nele a função social. Não encontrando o operador do direito, resquícios de alguma função socialmente relevante no exercício do direito de propriedade, na realidade, não encontrará propriedade, nem remédio jurídico que a proteja, como atesta-nos Ana Prata, verbis:

"Se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor da tutela por parte do ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade. Quer dizer isto que ‘a função social não pode ser construída como um dado externo, como qualquer coisa que se encontra fora da estrutura da propriedade’, mas antes que a atribuição do direito ‘é condicionada a realização das funções fins que são atribuídos a cada um no âmbito da coletividade.’ A função social tem o significado de uma expressão englobante e sintetizadora dos limites legais e intrínsecos à propriedade, constituindo estes ‘limites’ não como uma ‘compreensão exterior do direito de proprietário, [uma] sanção pelo incumprimento de um dever, mas antes [um] elemento conatural do próprio direito a fim de que seja legítimo e seu exercício’." [33]

Espelho fiel à esta realidade encontra-se em magistral aresto do TJSP, que teve por Relator o Des. José Osório, que transcrevemos:

"O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo artigo 524 do CC. A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao mesmo tempo em que manteve propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social (arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc). Esse princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração. O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no artigo 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário." [34]

Conforme doutrina José Diniz de Moraes, a função social deve influir na exegese e no exercício do direito de propriedade da mesma maneira que os princípios constitucionais influem na ordem jurídica (já que a função social também é princípio constitucional). O universo jurídico está afetado a sempre perseguir, no direito de propriedade, as seguintes manifestações da função social: Interpretativa, que prescreve ao jurista resolver os conflitos em favor da situação em que a propriedade melhor atenda à função social. Integrativa, que incute ao jurista integrar a todo o sistema jurídico afetado à propriedade, o prisma diretivo da função social. Diretiva, que vincula o legislador a produzir leis que observem a função social. Limitativa, que prescreve ao proprietário, ou possuidor, a abstenção de qualquer ato que viole os interesses coletivos e sociais, e prescritiva, que incute ao Estado dever de sempre respeitar (e fazer respeitar) a função social da propriedade. [35]

José Afonso da Silva lembra também que outra maneira de se aferir a função social de uma propriedade, é verificar se seu exercício manifesta-se de modo a "assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social (art. 170, II e III)." [36]

Sendo a função social, então, elemento sem o qual não existe propriedade, entendemos que, este direito deve, ao menos, ser exercido de modo que dê ao seu titular alguma vantagem econômica socialmente relevante e/ou aceita (obviamente, vantagem destituída de caráter meramente especulativo [37]), o que direta ou indiretamente pode ser entendido como função social.

Note-se que o novo Código Civil veda "os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade" (art. 1228, § 2º; no mesmo sentido, Lei 10.257/01, art. 2º, inc. VI, letra ‘e’). O novo Código impõe ao direito de "usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha" o dever de exercê-lo "em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais" (art. 1228, § 1º).

Mas se alguém é privado da posse de um bem e mantém-se inerte por um longo período de tempo, age de modo a deixar que a função social daquela propriedade milite em prol de outrem, desfigurando seu próprio direito, que falece, pois destituído de um de seus elementos essenciais.

2.2 Direito à moradia como direito fundamental

Como muito argutamente já se observou, vivemos em "uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido às relações de propriedade." [38] É quase que intuitivo que algum mínimo de propriedade deve ser garantido à pessoa (ou à família), para sua manutenção, [39] pois o "verbo morar está indissoluvelmente ligado ao existir, ao viver." [40]

Se um dos princípios de nossa Constituição é o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88), não se concebe que, por intermédio de uma "interpretação retrospectiva" [41] da posse precária, restrinja-se o exercício do direito de usucapião, que é instituto que visa fomentar o acesso a um dos bens que compõem o "núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana." [42] Isto porque "passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana." [43]

Nessa perspectiva duas afirmações podem ser feitas. A primeira delas é que a moradia constitui um direito fundamental, [44] necessário para que a pessoa humana desenvolva-se com um mínimo de dignidade. E a outra é que se a propriedade imobiliária servir de moradia a uma família, [45] estará cumprindo sua função social. [46]

Assim, o que propomos, é que, a interpretação jurídica razoável que vise proteger e/ou garantir o direito social de moradia (e o de usucapião constitucional), deve prevalecer em face de outras interpretações, mesmo que consagradas na tradicional doutrina. Somente assim decide-se em consonância com os princípios constitucionais, informadores de todo o ordenamento jurídico.

Isto porque a comunidade jurídica é chamada a participar de um movimento chamado de Virada de Copérnico. [47] Há uma forte tendência no mundo acadêmico e doutrinário que vem tentando demonstrar a necessidade de se harmonizar e incutir na doutrina tradicional do direito civil, preceitos e princípios do direito constitucional, ou seja, escola doutrinária que caminha no sentido de um direito civil constitucional. [48] Entendem os integrantes deste movimento, [49] assim como nós, que é inconcebível que os avanços do direito constitucional não se façam refletir, como deveria se esperar, nas lições e arestos de direito civil, propondo, então, uma global reinterpretação deste ramo do direito sob o norte das normas e princípios da Carta Magna.

É urgente, para que se observe uma efetiva justiça, que os civilistas deitem os olhos nas novas perspectivas oferecidas por outros ramos do direito, [50] principalmente o direito constitucional [51] e o direito internacional (pactos, tratados e convenções). [52]

Explica-se esta urgência por dois motivos. A um, porque a Constituição é documento na qual se encontram enfeixadas as aspirações políticas e sociais de uma Nação. A dois, porque é na Carta Constitucional que se encontram regrados os direitos econômicos, em especial, o direito de propriedade. Ensina Dallari que um dos "objetivos da Constituição é o reconhecimento da necessidade de utilizá-la para impor limites jurídicos ao poder econômico, disciplinando a obtenção, a acumulação e o uso da riqueza, em função dos interesses individuais e sociais." [53] Se a Constituição regra o poder econômico e a propriedade, seus princípios devem irradiar e influenciar na interpretação e o gozo destes direitos, que se dá, na maioria das vezes, pela exteriorização dos poderes inerentes ao domínio, ou seja, pela posse. [54]

E, pensamos como Mauro Cappelletti, [55] que deposita nos princípios e normas constitucionais modernas a esperança de um mundo melhor, um mundo no qual indivíduos, grupos e pessoas possam viver em paz e sem exploração.

2.3 Da colisão entre direitos fundamentais

Se analisarmos o texto da Constituição, veremos que uma das finalidades (princípios) do Estado de Direito Brasileiro é assegurar o exercício dos direitos sociais, e a harmonia social. Fica claro, que um dos escopos de nossa Nação é privilegiar os direitos sociais, quando em confronto com direitos individuais. Por isso mesmo, no Preâmbulo do texto constitucional, a menção aos direitos sociais antecede à menção aos direitos individuais. E ensina Meirelles Teixeira, com apoio no jurista norte americano Black: "O preâmbulo das Constituições indica seu espírito, suas grandes finalidades, a filosofia política adotada pela Nação. Entre duas interpretações, evidentemente, deve preferir-se a que esteja de acordo com esse espírito, com essa finalidade." [56]

Canotilho critica os que defendem que o preâmbulo da constituição é destituído de cogência, afirmando que neste texto é que, geralmente, se observa alguns dos princípios constitucionais, verbis: "(...) os princípios fundamentais de uma ‘ordem de domínio’ e de uma ‘estrutura básica de justiça’ não são de mera natureza ‘existencial’, ‘decisionista’ ou ‘valorativa’: são princípios aceites e, intencionalmente queridos (de forma implícita ou explícita) como normas da constituição (é, por ex., a falta de intencionalidade normativa que nos leva a pôr em dúvidas em relação ao valor normativo dos preâmbulos constitucionais)." [57]

Em outra obra, o Mestre Português leciona que, se as normas programáticas (princípios) não são possíveis de serem garantidas, por limitações econômicas do Estado, devem, pelo menos exercer uma função interpretativa, [58] que garanta um mínimo de eficácia a esses princípios.

A mudança de foco interpretativo, que privilegia os direitos sociais em detrimento de direitos individuais, já foi detectado há muito, por Rui Barbosa, que asseverou:

"(...) a concepção individualista dos direitos humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma noção incomensurável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não se vê mais na sociedade um mero agente agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma unidade orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à sociedade humana." [59]

Contudo, se observa claramente que, aos olhos dos civilistas, os princípios prestigiados pelas constituições, muito pouco têm influenciado na interpretação e aplicação das normas de direito privado, especialmente no tocante ao direito das coisas, como já observou Gustavo Tepedino. [60] Assim, parte da doutrina civilista, principalmente na leitura dos fenômenos possessórios, faz tábua rasa dos grandes avanços jurídicos consagrados pela constituição, como, v.g., a inclusão dos Direitos Humanos à ordem jurídica, adoção do princípio da dignidade humana, etc.

Como bem notou Antonio Hernandez Gil: "Surpreende que a posse, com tão forte conteúdo de facto, isto é, de acontecer vital, se apresente como que estratificada nos livros e nos códigos. Ela tem sempre fundidas as suas razões nas mais elementares manifestações da convivência social, e contudo, (ainda) não se retiraram disso as indispensáveis conseqüências." [61]

Rousseau denunciara anteriormente que a desigualdade entre os homens dava-se por meio da propriedade e das leis. [62] Captando esta idéia, os positivistas armaram mais uma trincheira a favor dos proprietários e burgueses, pois, por esta doutrina, ainda que de maneira indireta, enfeixava-se nas mãos dos poderosos, o controle da interpretação do direito, manietando os juízes sob a clausura da máxima dura lex sed lex.

A desatenção dos civilistas com a nova realidade constitucional pode ser considerada como uma nova tentativa de manutenção do status quo, por meio de uma manipulação ideológica da interpretação dos institutos do direito civil, como já alertara Orlando Gomes. [63]

Mas, se aprendemos algo com Carnelutti, sabemos que o jurista engajado deve sempre interpretar os institutos jurídicos dentre de um sistema que integre todo o Direito, em especial o Direito Constitucional, que é a carta de orientação jurídico-político de uma Nação.

Nesse exercício, observamos que o direito à propriedade tem sede constitucional, no título dos direitos e garantias fundamentais, no capítulo que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, inc. XXII). De pronto, encontra o intérprete, no art. 5º, inc. XXIII (além de outros dispositivos constitucionais, como, v.g., art. 170, III), limitação ao gozo deste direito, pois "a propriedade atenderá sua função social." [64]

Já, o direito à moradia encontra-se, no texto constitucional, no mesmo título (dos direitos e garantias fundamentais), mas no capítulo que trata dos direitos sociais. Pela lição de Rui Barbosa, quando contrapostos direitos individuais a sociais, aqueles devem sucumbir a estes. Assim também observou o Min. Celso de Mello, "o reconhecimento do usucapião, pelo ordenamento estatal, nada mais significa que a preocupação do Poder Público em acentuar a necessária preponderância do interesse social, inerente à coletividade, sobre aquele de caráter meramente individual e particular". [65]

Robert Alexy pondera que a colisão de direitos fundamentais individuais com direitos fundamentais coletivos, leva em geral, à conclusão sobre a prevalência desses em relação àqueles, como já se observou em julgados do Tribunal Constitucional Alemão. [66]

Até a Igreja Católica, [67] por intermédio de sua maior autoridade, já declarou ser o direito de moradia preponderante, como também fez a Nação Brasileira, após da CF/88.

Contrapostos direitos fundamentais sociais e individuais, a interpretação que se impõe é a que busca lastro no art. 3º da CF/88, que fala dos objetivos fundamentais da Nação, e entre eles: "I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (....) III - reduzir as desigualdades sociais." Entendemos, assim, que interpretação que prestigie o direito à moradia é a que mais se enquadra ao comando constitucional.

Sobre o autor
Márcio Manoel Maidame

Advogado. Mestre pela FADISP. Especialista pela PUC/SP. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdades Atibaia (FAAT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIDAME, Márcio Manoel. A possibilidade de mudança do caráter da posse precária e sua utilidade para fins de usucapião. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2127, 28 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12730. Acesso em: 24 dez. 2024.

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