4. ACONTECIMENTO: FATO DELITUOSO, A SEMÂNTICA DO CRIME
De nada serve negar essa necessidade (desejo) de aparência, veículo de disjunções e categorizações lógicas: essa necessidade universal de um "mundo semanticamente normal", isto é, normatizado, começa com a relação de cada um com seu próprio corpo e seus arredores imediatos (...) (PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. 3. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2002, p. 35).
Para compreendermos a análise discursiva apresentada no trabalho, faz-se necessário apresentar o primeiro recorte discursivo do arquivo jurídico: o Fato delituoso [18] do crime, o acontecimento histórico criminal marcado pela razão jurídica, conforme o/a relator/a. Vejamos:
"1.
Em data não precisada, mas anterior a 18 de novembro de 2003, em cidade tal/RS, os denunciados "X", "Y" e "Z" [19]associaram-se para o fim de praticarem, reiteradamente, o crime previsto no artigo 12 da Lei nº 6.368/76, congregando esforços e vontades na obtenção e distribuição onerosa de ‘Cannabis sativa" entre usuários e outros fornecedores desta cidade, sendo que, no transporte das substâncias entorpecentes comercializadas, serviam-se, usualmente, de um veículo marca tal, com placas tal, transitando com ele na calada da noite, para não gerarem suspeitas.
2.
Inspirados por tal associação, no dia 18 de novembro de 2003, por volta da 01h10min, na BR-386, Km 366, em cidade tal/RS, os denunciados "X", "Y" e Z", sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, transportavam, para vender a terceiros, no interior do veículo marca tal, placas "tal", de cor tal, 32 (trinta e dois) tijolos prensados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116,900Kg (cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de "Cannabis sativa", vulgarmente conhecida como "maconha", substância entorpecente, que causa dependência física e psíquica, por conter tetraidrocanabinol,consoante laudo de constatação preliminar da fl.
Na ocasião, os denunciados tripulavam o citado veículo, dirigindo-se até a residência de um quarto indivíduo, a quem entregariam parte da droga transportada, quando, ao circundarem a Praça tal, no centro desta cidade, foram flagrados por policiais militares e receberam ordens de parada.
Em vez de cumprirem a determinação, imprimiram maior velocidade ao automotor, ingressando na RS-386, em desabalada fuga, rumo a Porto Alegre/RS. Foram interceptados, porém, em uma barreira policial, oportunidade em que abandonaram o veículo e tentaram correr, no afã de garantirem a impunidade.
Após a detenção de "X", "Y" e Z", em revista ao interior do automóvel que tripulavam, policiais localizaram, atrás do banco do caroneiro e o seu porta-malas, acondicionados em três sacos, os tijolos de "maconha" antes referidos, droga que foi apreendida (auto de apreensão de fls.)".
Queremos chamar a atenção para este recorte, indexado no arquivo jurídico, porque, a partir do fato descrito, o advogado, representante da Justiça do Estado, assume o seu papel de defensor público e tende a legislar em prol da absolvição dos três réus envolvidos no crime de entorpecentes.
Serão analisados comentários iniciais [20] sobre as divergências no discurso dos réus, dadas no Recebimento da Denúncia, Interrogatório e Instrução Criminal, para compreender mais adiante a posição do sujeito advogado na tentativa de absolvição criminal. Optou-se por escolher o discurso do defensor público em relação à apelação ao réu "Z".
5. MICHEL FOUCAULT: DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA AO CRIME
A magia, que permitia a decifração do mundo descobrindo as semelhanças secretas sob os signos, não serve mais senão para explicar de modo delirante por que as analogias são sempre frustradas. A erudição, que lia como um texto único a natureza e os livros, é reconduzida às suas quimeras: depositados nas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem não têm como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam. (FOUCAULT, Michel. [1966] As Palavras e As Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 63).
Para iniciarmos o dispositivo analítico, principalmente em relação ao corpus, isto é, o arquivo jurídico, é recorrente lembrar que a Justiça é um princípio moral enquanto o Direito o realiza no convívio social. Com isso, o advogado, no caso do nosso corpus, é um defensor público, tentando alcançar o direito de absolvição e não de condenação do(s) réu(s). Veremos, também, conforme as hipóteses, se o objetivo desse sujeito é realmente buscar uma ordem social ou apelar estrategicamente na tentativa de não reclusão ou absolvição criminal.
Em relação ao que consta no Fato delituoso [21], vê-se que a questão do indivíduo (conforme trata o Direito), ou melhor, o sujeito (assim trabalhado na AD), em relação à segurança, à ética, ao comportamento do ser humano, vão em discordância a alguns princípios considerados como filosofia moral que estuda as dimensões morais e sociais.
Um deles é o Princípio da Justiça. Frankena (1975, p. 61) observa:
Quais são os critérios ou princípios de justiça? Estamos falando de justiça distributiva, justiça na distribuição do bem e do mal. [...] A justiça distributiva é uma questão de tratamento comparativo de indivíduos. Teríamos o padrão de injustiça, se ele existe, num caso em que havendo dois indivíduos semelhantes, em condições semelhantes, o tratamento dado a um fosse pior ou melhor do que o dado ao outro. [...] O problema por solucionar é saber quais as regras de distribuição ou de tratamento comparativo em que devemos apoiar nosso agir. Numerosos critérios foram propostos, tais como:
1. a justiça considera, nas pessoas, as virtudes ou méritos;
2. a justiça trata os seres humanos como iguais, no sentido de distribuir igualmente entre eles, o bem e o mal, exceto, talvez, nos casos de punição;
3. trata as pessoas de acordo com suas necessidades, suas capacidades ou tomando em consideração tanto umas quanto outras.
O autor entende o Princípio da Justiça como sendo a expressão da justiça distributiva. Essa é a distribuição justa, eqüitativa e apropriada na sociedade, de acordo com normas que estruturam os termos da cooperação social. Uma situação de justiça, segundo esta perspectiva, estará presente sempre que uma pessoa receber benefícios ou encargos devidos às suas propriedades ou circunstâncias particulares (idem).
Na ordem jurídica brasileira (BOBBIO, 1999), um dos princípios fundamentais é o reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade. Em vista disso, o Código Civil institui a categoria jurídica abstrata de pessoa, na qual cada ser humano deve se encaixar, tornando-se, assim, sujeito aos direitos e obrigações.
Em princípio, todos seriam dotados de tal personalidade, mas o estatuto estabelece seus termos inicial e final, dizendo no artigo 2º: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro" (BRASIL, 2005, p. 171).
Outro princípio extremamente importante é o Princípio da Autonomia. Esse se refere ao respeito devido aos direitos fundamentais do homem, inclusive o da autodeterminação.
De acordo com Kant, a proposta de autonomia não é incondicional, mas passa por um critério de universalidade.
A autonomia da vontade é a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei - independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, mas sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal (2003, p. 109).
Para o filósofo, o homem é, de uma maneira geral, ser racional. Ser que existe como um fim em si mesmo, não só como meio arbitrário desta ou daquela vontade. Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação. Respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas. Demonstrar falta de respeito para com um agente autônomo é desconsiderar seus julgamentos, negar ao indivíduo a liberdade de agir com base em seus julgamentos, ou omitir informações necessárias para que possa ser feito um julgamento, quando não há razões convincentes para fazer isto (KANT, 2003; COELHO, 2004).
Consoante Neves (apud SARLET, 2001, p. 133), a respeito da dignidade do homem, a autora afirma:
O que o homem é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a sociedade ou classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente em entidade de classe.
Além disso, o Princípio da Dignidade da pessoa humana se dá como forma de amparo à própria espécie humana, cuja dignidade deve ter resguardada sua dignidade desde os seus primeiros momentos de existência. Este princípio, portanto, encontra-se na Constituição Federal de 1988 (art. 1º, inciso III, bem como o art. 60, § 4º, inciso III), que, ao dispor sobre o assunto, vê esse como fundamento do Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2005, p. 53). Esse princípio reconhece a existência do Estado em função da pessoa humana e não ao contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano.
Moraes (2000, p. 60-61) menciona que
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas, sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Com o Princípio e a posição de Moraes, nota-se como é visto os aspectos morais e sociais do sujeito frente aos deveres e direitos e, principalmente, frente à sociedade. Com isso, os direitos básicos, como o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, são claramente expostos e objetivos, em relação ao bem social, aos princípios constitucionais da vida e à dignidade da pessoa humana desde o nascimento. No entanto, alguns sujeitos, já adultos, não apresentam tanta dignidade mesmo possuindo autonomia. Pela autonomia, às vezes, muitos sujeitos infringem normas e leis que regulam o bem social.
Por infringir as normas, pela "ruptura com a lei, lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade, pelo lado legislativo do poder político", o sujeito torna-se criminoso ou infrator penal (FOUCAULT, 2005, p. 80). Assim vistos os sujeitos envolvidos no referido crime, criminosos por associação para o tráfico de entorpecentes, rompendo com a lei nº. 6.368/76, artigo 12 [22] e artigo 14, devidamente estabelecida e normatizada na sociedade brasileira.
Diante dessas circunstâncias, Foucault (2005, p. 80-1) menciona a respeito da infração e da lei, sobretudo a penalidade:
Para que haja infração é preciso haver um poder político, uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada. Antes da lei existir, não pode haver infração. Segundo esses teóricos [23], só podem sofrer penalidade as condutas efetivamente definidas como repreensíveis pela lei. (...) A lei define como repreensível o que é nocivo à sociedade, definindo assim negativamente o que é útil.
O crime, para Foucault, "é algo que danifica a sociedade; é um dano social, uma perturbação, um incômodo para toda a sociedade". Por isso, o criminoso é um danificador e perturbador. Além do mais, "o criminoso é o inimigo social". A partir de Rousseau, Foucault afirma que "o criminoso é aquele que rompeu o pacto social" (2005, p. 81). Para ele, existe identidade entre o crime e esse pacto:
O criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do criminoso como inimigo interno, como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido, é uma definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade.
Se o crime é um dano social, se o criminoso é o inimigo da sociedade, como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime? Se o crime é uma perturbação para a sociedade; se o crime não tem mais nada a ver com a falta, com a lei natural, divina, religiosa, etc., é claro que a lei penal não pode prescrever uma vingança, a redenção de um pecado. A lei penal deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade. A lei penal deve ser feita de tal maneira que o dano causado pelo indivíduo à sociedade seja apagado (...) (FOUCAULT, 2005, p. 81-2).
Sobre a perturbação à sociedade, a justiça intervém para a permanência do bem social, seja punindo de alguma forma, excluindo do próprio lugar, reparando o dano social, ou pena de Talião [24]. A partir do início do século XIX, como diz Foucault (2005, p. 84), surge o aprisionamento, isto é, a prisão. Para ele, desde o início deste século e cada vez mais rápido e acelerado "vai se desviar do que podemos chamar a utilidade social". A legislação penal "não procura mais visar ao que é socialmente útil, mas, pelo contrário, procurará ajustar-se ao indivíduo". Acrescenta que "a penalidade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos".
Nesse ponto, outro termo é inserido por Foucault (2005, p. 85) "controle":
Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer.
Então, outra noção da criminologia e da penalidade surge, em fins do séc. XIX: periculosidade. Isto "significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam" (FOUCAULT, 2005, p. 85).
Diante disso, parece que Foucault está mencionando o trabalho do advogado, uma vez que este leva em conta as virtualidades do(s) réu(s), diferentemente daquelas autoridades judiciais que pretendem julgar os atos e, a partir daí, condenar e/ou determinar a sentença do réu.