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A modulação dos efeitos temporais no controle difuso-incidental de constitucionalidade

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Agenda 13/05/2009 às 00:00

4.OS EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE DIFUSO-INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE E O PAPEL DO SENADO FEDERAL

Declarada a inconstitucionalidade através do controle difuso-incidental, a lei não terá qualquer validade no caso concreto sub judice, ou seja, ela não será aplicada às partes do processo; e tão somente a elas. É que, diferentemente do controle abstrato de constitucionalidade, em que os efeitos da decisão são estendidos a todos [14] (erga omnes), no controle difuso, a inconstitucionalidade só produzira efeitos em relação àqueles que faziam parte da lide (inter partes).

A lei, portanto, continuará sendo aplicada e tendo total eficácia em relação a terceiros, que poderão, diante de uma situação concreta, requerer seja reconhecida, de modo incidental, a inconstitucionalidade da lei para que ela não produza efeitos na relação jurídica controvertida.

Contudo, a decisão em controle difuso-incidental, eventualmente, pode ter seus efeitos estendidos a terceiros, passando, pois, a ter efeitos erga omnes, como no sistema objetivo de controle abstrato de constitucionalidade.

Para isso, é preciso atentar-se ao art. 52, inc. X da Constituição, que dispõe que caberá privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, a lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Essa suspensão pode se dar em relação às leis federais, estaduais, distritais e municipais, desde que, é claro, sua inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em controle difuso (LENZA, 2006, p. 113).

Nesse ínterim, a partir do momento em que for publicada a resolução do Senado Federal, a suspensão atingirá a todos – efeitos erga omnes – e produzirá efeitos ex nunc (MORAES, 2001, p. 569; LENZA, 2006, p. 114). É certo, todavia, que há autores como Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007, p. 53) que sustentam que os efeitos temporais seriam retroativos, ou seja, ex tunc, semelhantes aos concedidos no controle concentrado.

Contudo, atribuir a uma decisão de controle difuso de constitucionalidade os mesmos efeitos de uma decisão em controle concentrado, faria com que caísse por terra a distinção entre os dois sistemas, que, aliás, foram bem delineados no ordenamento jurídico brasileiro.

É preciso, nesse particular, fazer uma diferenciação entre "retirada de eficácia" da lei, em sede de controle concentrado, e "suspensão" que faz o Senado Federal, em sede de controle difuso.

São expressões que, embora semelhantes, não significam a mesma coisa. Suspender é como revogar a lei, à espera da retirada de sua eficácia, deixando ela de produzir efeitos a partir de certo momento (ex nunc). Retirada sua eficácia ela se torna nula, como se nunca tivesse existido, o que a faz produzir efeitos ex tunc.

É possível, nesse contexto, mutatis mutandis, fazer uma analogia entre a suspensão e a norma anulável e entre a retirada da eficácia da norma e norma nula.

De acordo com Vitor Frederico Kümpel (2007, p. 115), a norma anulável existe, é válida, mas é suspensa em determinado momento. Ela vigora até o momento em que alguém requer a cessação de seus efeitos, sendo que os efeitos anteriores à sua desconstituição são válidos e eficazes (ex nunc). Já a norma nula não tem qualquer validade, não tendo potencialidade para produzir efeitos concretos; a norma é inaplicável desde o início de seu período de vigência (ex tunc).

Em outras palavras, Lenio Luiz Streck e outros (2007, p. 9) certificam que "quando se revoga uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita, nenhuma". Não fosse assim, continuam os doutrinadores, "bastaria que o Supremo Tribunal mandasse a lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso, ao Senado, para que os efeitos fossem equiparados aos da ação direta de inconstitucionalidade".

Pela clareza com que tratam o tema, mister se faz, mais uma vez, a transcrição ipsis litteris dos escólios dos autores acima mencionados:

[...] o Senado, integrante do Poder Legislativo, ao editar a resolução que suspende a execução da lei, atuará não no plano da eficácia da lei (esse é feita em controle concentrado pelo STF), mas, sim, no plano da vigência da lei. Daí que, no primeiro caso – controle concentrado – o efeito pode ser ex tunc; no segundo caso – controle difuso – o efeito somente poderá ser ex tunc para aquele caso concreto e ex nunc após o recebimento desse plus eficacial advindo de um órgão do Poder Legislativo (2007, p. 11).

No mais, válido esclarecer que o Senado, além de não poder em hipótese alguma modificar os termos da decisão, não estará obrigado a suspender, no todo ou em parte, a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Se suspender, certo é que deverá fazê-lo nos termos delineado pela decisão proferida pelo Tribunal; não poderá ampliá-la, restringi-la ou interpretá-la.

Trata-se, pois, de ato discricionário, facultativo, em que o Senado analisando critérios de oportunidade e conveniência editará ou não a resolução. Conseqüentemente, não há qualquer prazo para sua manifestação, tampouco uma sanção para eventual recusa à suspensão. De qualquer sorte, editada e aprovada a resolução, não será possível ao Senado revogá-la (ALEXANDRINO, 2007, p. 54). Corroborando o papel discricionário do Senado Federal, Pedro Lenza sintetiza:

[...] o Senado Federal não está obrigado a suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de discricionariedade política, tendo o Senado Federal total liberdade para cumprir o art. 52, X da CF/88. Caso contrário, estaríamos diante de afronta ao princípio da separação de poderes. (2007, p. 114)

Destarte, a resolução do Senado Federal, se emitida, irá gerar efeitos prospectivos apenas, ou seja, ex nunc. Excepcionalmente, apenas em relação à Administração Pública Federal direta e indireta, o § 2º do art. 1º do Decreto nº 2.346/97, estabelece que a produção de efeitos será ex tunc.

Contudo, o papel do Senado Federal, previsto no art. 52, inc. X da Constituição, ao que tudo indica, tende a ser revisto. Com efeito, após o advento da Constituição de 1988, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito do controle difuso, acabaram por refazer uma releitura de todo o sistema de controle de constitucionalidade, em particular quanto aos efeitos produzidos.

De fato, os sistemas de controle de constitucionalidade, abstrato ou concreto, possuem a mesma finalidade, razão pela qual não mais parece ser legítima a distinção quanto aos efeitos produzidos, se inter partes ou erga omnes (MENDES, 2007, p. 206).

De acordo com Gilmar Mendes (2007, p. 206), ministro do Supremo Tribunal Federal e autoridade salutar quando se faz referência a controle de constitucionalidade, é possível se falar em uma autêntica "mutação constitucional", uma reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.

Através dessa "mutação constitucional" tem se buscado fazer uma releitura do papel do Senado Federal diante uma decisão em controle difuso-incidental de constitucionalidade. Com a nova leitura do art. 52, inc. X, não caberia mais à Casa Legislativa, suspender a execução, no todo ou em parte, da norma declarada inconstitucional declarada pelo STF.

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Com isso, o próprio Supremo, diante de uma declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso, passaria a estender os efeitos de sua decisão a terceiros. Ou seja, os efeitos que no controle difuso-incidental de constitucionalidade que sempre foram inter partes passam a ser erga omnes.

E qual seria o papel do Senado? Caberia a ele tão somente a obrigatoriedade de publicar a decisão no Diário do Congresso; e caso não a publique não haverá qualquer empecilho para que a decisão do Supremo assuma sua real eficácia jurídica (MENDES, 2007, p. 209).

Nesses termos, ressalta o eminente Ministro, in verbis:

Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão do Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. [...] Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação [...]. (2007, p. 208).

Com isso, estar-se-á assemelhando o controle difuso-incidental com judicial review norte americano, cujo princípio do stare decisis, típico dos países da commow law, implica na vinculação dos demais órgãos judiciários às decisões da Suprema Corte. Por fim, sintetiza Dirley da Cunha Júnior (2007, p. 83), que a força desses precedentes acaba assumindo uma verdadeira eficácia erga omnes, a despeito de a decisão ter sido prolatada em um caso concreto.

Nesse passo, não se pode olvidar que, diferentemente do modelo norte-americano, o ordenamento jurídico brasileiro está tradicionalmente vinculado ao civil law, de derivação romano-germânica, e possui um sistema misto de controle de constitucionalidade, que pode ocorrer tanto de modo concentrado como de modo difuso. Via de consequência, é temerário, a princípio, assemelhar aquele sistema a este.

Conforme preconizado, a "mutação constitucional" nada mais é do que uma alteração no próprio texto constitucional e que, data maxima venia, não pode prosperar, ao menos nesse sentido, porquanto ocorreria uma ruptura na famigerada separação dos poderes. Haveria uma substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário e, com isso, revela Lenio Luiz Streck (2007, p. 19), soçobra a democracia.

É que, nos termos pretendidos pela supracitada "mutação", o texto constitucional sofreria uma alteração de redação que seria realizada pelo próprio Poder Judiciário.

De "compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, a lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal" passaria para "compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo" (STRECK, 2007, p. 3).

Além do mais, equiparar os efeitos do controle-difuso incidental – inter partes – aos do controle concentrado – erga omnes – é ferir uma gama de princípios constitucionais, dentre os quais podem se destacar o do devido processo legal e da ampla defesa. Seria como impor uma decisão àqueles que não participaram do processo, sem se estar diante de um controle concentrado. Aliás, não haveria diferenças substanciais quantos aos efeitos produzidos pelos meios de controle de constitucionalidade existentes.

Dessa feita, uma decisão de controle difuso de constitucionalidade, proferida por seis votos, poderá proceder a alterações na estrutura jurídica do país, ao passo que para se aprovar uma súmula no Supremo, são necessários, no mínimo, oito votos (quorum mínimo).

De maneira assaz, Lenio Luiz Streck e outros, veementemente contrários à "mutação" pretendida, destacam:

Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação infra-legislativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988 (2007, p. 7).

Comungando do mesmo entendimento, Pedro Lenza (2006) entende não ser possível a mutação, atribuindo efeito erga omnes para as decisões em sede de controle difuso, pois não há dispositivos e regras, nem processuais ou constitucionais, para sua implementação. Seria necessário, pois, uma reforma constitucional.

Assim, rechaçar a aplicação do art. 52, inc. X da Constituição e conferir efeitos erga omnes às decisões proferidas pelo Supremo em sede de recurso extraordinário, ou até mesmo ordinário, seria ferir de morte o modelo constitucional do processo e uma grave lesão aos direitos fundamentais assegurados pelo constituinte.


5.A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DIFUSO-INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema misto de controle de constitucionalidade. Um deles, o abstrato, cujos efeitos são erga omnes e, em regra, ex tunc, foi disciplinado pela Lei nº 9.868/99. O outro, denominado de controle difuso-incidental, prescinde de lei reguladora, posto que sua verificação ocorre in concreto – como causa de pedir de uma lide –, gerando efeitos inter partes e ex tunc.

Conforme outrora analisado, o controle difuso deriva do sistema norte-americano – judicial review –, o qual influenciou demasiadamente o sistema brasileiro. Por essa razão, a doutrina brasileira se orientou pelo princípio de que todo ato legislativo contrário à Constituição é nulo [15]: "the inconstitutional statute is not law at all" (VELOSO, 2007, p. 143). Nesse contexto, advogam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

[...] no Brasil, em regra, a norma jurídica inconstitucional é nula; assim, com a declaração de sua inconstitucionalidade, é retirada do ordenamento jurídico com eficácia retroativa (ex tunc), desde o seu nascimento. Também, por decorrência, como regra, são considerados eivados de vícios todos os atos com base nela praticados. (2007, p. 116)

Diferentemente da norma anulável, em que a norma é válida, mas tem sua validade suspensa em determinado momento, produzindo tão somente efeitos ex nunc, a norma ou ato nulo não tem qualquer validade, não tendo potencialidade de produzir efeitos concretos. A norma nula, portanto, é inaplicável desde o início de sua vigência, gerando efeitos ex tunc (KÜMPEL, 2007, p. 115).

Com efeito, o direito norte-americano, mesmo sendo adepto inexorável da doutrina da "the inconstitucional statute is not law at all", em que os efeitos produzidos são ex tunc, passou a admitir a necessidade de se estabelecer limites à declaração de inconstitucionalidade.

Essa necessidade veio a ser considerada pela Suprema Corte americana em razão dos problemas gerados em processos criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram, eventuais condenações com base neles mostravam se ilegítimas e ilegais, abrindo-se a possibilidade, diante de um juízo de inconstitucionalidade, impugnar todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional [16].

Passou-se, desse modo, a jurisprudência norte-americana, a admitir que as decisões emanadas da Suprema Corte tivessem seus efeitos modificados, modulados, adequando-os à situação concreta. Além dos efeitos retroativos – ex tunc – admitiu-se também, de modo excepcional, a produção de efeitos prospectivos ou para data futura.

Corroborando o novo entendimento fixado pela Corte americana, Gilmar Mendes [17] leciona:

Vê-se, pois, que o sistema difuso-incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em caso determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro.

Seguindo o entendimento norte-americano, diversas Cortes passaram a limitar os efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Dentre elas, pode-se citar a Constituição Portuguesa, que em seu art. 282, nº 4, ressaltou que quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2 [18], que prevêem efeitos retroativos.

O sistema jurídico brasileiro somente trouxe à lume disposição nesse sentido quando da promulgação da Lei nº 9.868/99, in verbis:

Art. 27 [19]. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Nota-se, todavia, que tal instituto refere-se tão somente às ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade. Ou seja, sua aplicação se restringe às hipóteses de controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade. Em relação ao controle difuso-incidental não há qualquer disposição semelhante. Poder-se-ia, então, afirmar que não é possível a limitação ou modulação dos efeitos temporais no controle difuso?

No julgamento do recurso extraordinário nº 79.343, em 1977, o então Ministro Leitão de Abreu e relator do processo, teceu, de maneira passageira, secundária (obter dictum), breves linhas sobre a modulação dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Sustentou ele, com base na doutrina de Kelsen e nas novas teorias norte-americanas, que deveria ser abandonada a teoria da nulidade (cujos efeitos produzidos eram ex tunc), adotando-se, conseqüentemente, a teoria da anulabilidade para o caso concreto, em que os efeitos produzidos são ex nunc.

Ao proferir seu voto no supracitado recurso, o eminente Ministro Leitão de Abreu asseverou que lhe parece acertado o entendimento de que não se deve ter como nulo ab initio ato legislativo que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade. Segundo ele, razoável é a inteligência de que se cuida de ato anulável. E conclui da seguinte maneira:

Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o "Corpus Juris Secundum", de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabelecerem relações entre o particular e o Poder Público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.

De fato, conferir eficácia ex tunc às declarações de inconstitucionalidade sem qualquer restrição ou atenuações, seja em controle concentrado ou difuso, pode, em muitas situações, gerar um verdadeiro caos social, jurídico e financeiro. Imagine-se, de acordo a reflexão de Zeno Veloso (2007, p. 144), as conseqüências advindas da desconstituição de inúmeras relações jurídicas que se realizaram com base na lei tida, posteriormente, como inconstitucional; nas relações desenvolvidas e criadas com base na boa-fé, na confiança, amparadas em uma lei devidamente promulgada, publicada e em pleno vigor.

Nesse diapasão, pode-se concluir que mesmo diante de uma lei inconstitucional é preciso, por vezes, assegurar os efeitos por ela produzidos, atribuindo à decisão de inconstitucionalidade efeitos ex nunc, sendo despicienda a existência de lei que autorize a atribuição de tais efeitos. E isso, diga-se, vale para o controle difuso-incidental de constitucionalidade.

A produção dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade já causou preocupação ao Min. Maurício Corrêa que, ao proferir seu voto em ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 1.102), assim se manifestou:

Creio não constituir-se afronta ao ordenamento constitucional exercer a corte política judicial de conveniência, se viesse a adotar a sistemática, caso por caso, para a aplicação de quais os efeitos que deveriam ser impostos, quando, nesta hipótese, defluisse situação tal a recomendar, na salvaguarda dos superiores interesses do Estado e em razão da calamidade dos cofres da Previdência Social, se buscasse o dies a quo, para a eficácia dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

A modulação dos efeitos temporais acabou ganhando maiores proporções quando do julgamento, em 07 de maio de 2004, do Recurso Extraordinário nº 197.917 – leading case –, em que foi designado relator o Min. Maurício Corrêa. Na decisão, o Supremo reduziu o número de vereadores do município de Mira Estrela de 11 para 9 e determinou que a aludida decisão só atingisse a próxima legislatura, ou seja, atribuiu-se à decisão efeitos pro futuro. Na parte referente aos efeitos, restou ementado da seguinte maneira a decisão:

Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade.

Observa-se que no caso leading case retratado, optou-se, mediante um juízo de ponderação, pela aplicação do princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da nulidade, que torna írrita a norma ab initio, gerando efeitos ex tunc. A não modulação dos efeitos no caso, gerariam inúmeros transtornos, atingindo decisões que foram tomadas em momento anterior as eleições, que resultou na atual composição da Câmara Municipal, fixação no número de candidatos, definição do quociente eleitoral; e nas decisões posteriores ao pleito, como a validade da deliberação da Câmara nos diversos projetos e leis aprovados.

A segurança jurídica, sem dúvida, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, pois é por meio dela que os jurisdicionados irão pautar suas condutas, sabendo das conseqüências advindas de seus atos. Terá conhecimento, diante de uma lide, se a decisão a ser emitida pelo órgão jurisdicional ser-lhe-á ou não favorável.

Sua aplicação diante de um caso concreto, todavia, incomoda a muitos conforme enfatizou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin [20], ressaltando ainda que a segurança jurídica é um daqueles objetivos maiores do Direito. Aduz o Ministro:

De início, incomoda ao legislador, pois a função legislativa contemporânea é fragmentária, apressada e, muitas vezes, atécnica, quando não caótica. Incomoda ao administrador, pois a velocidade do tráfego dos negócios que devem ser regulados exige atuação imediata e, amiúde, com desvios radicais de rota e de ponto de destino. Incomoda ao juiz, já que a complexidade e a diversidade dos conflitos, individuais e coletivos, estão permanentemente conclamando-o a explorar novos territórios na aplicação da lei, o que leva, inexoravelmente, à alteração das decisões e posições jurisprudenciais consolidadas. Finalmente, incomoda à doutrina e aos próprios jurisdicionados que, ora festejam inovações judiciais em temas polêmicos, ora criticam o conservadorismo do magistrado, quando esse se apega aos precedentes e à letra da lei.

Mas não é só em razão do princípio da segurança jurídica que se pode justificar a não aplicação da teoria da nulidade constitucional. Outro princípio que enseja a não aplicação da teoria é o do excepcional interesse social, que também é previsto no art. 27 da Lei nº 9.868/99 que regulou os efeitos no controle abstrato e pode encontrar fundamento em diversas normas constitucionais.

Imagine, por exemplo, centenas de famílias que foram direcionadas a um terreno expropriado e lá construíram suas residências, sendo reconhecido, posteriormente, a inconstitucionalidade do decreto expropriatório. Conceder efeitos retroativos geraria um caos social, já que não haveriam locais adequados e suficientes para o alojamento dessas famílias.

A aplicação do princípio da segurança jurídica ou do excepcional interesse público, em detrimento ao princípio da nulidade, deverá ser analisado caso a caso, ponderando-se os efeitos que serão produzidos, mediante de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade.

Em escólio bastante autorizado, Gilmar Mendes [21] doutrina que o princípio da nulidade somente há de ser afastado se for possível demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.

Com isso, certo é que não é caso de se buscar aplicação analógica irrestrita do disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99, mas sim de fazer valer, diante de casos concretos, princípios constitucionalmente assegurados, que se destacam diante de um juízo de ponderação. Referido artigo projeta-se, na verdade, como uma orientação a ser seguida diante de um controle incidental de constitucionalidade.

Nessa esteira, ao analisar a possibilidade de modulação dos efeitos temporais no controle difuso, proclama o Min. Herman Benjamin [22], do STJ, que não se trata de, simplesmente, aplicar-se as normas veiculadas pela Lei nº 9.868/99, por analogia, mas sim de adotar como válidas e inafastáveis os pressupostos valorativos e principiológicos que fundamentam essas normas e que, independentemente da produção legislativa ordinária, haveriam de ser observados tanto pelo Supremo quanto pelo Superior Tribunal de Justiça.

D´outra feita, o Min. César Peluzo, do Supremo Tribunal Federal [23], afirma não haver motivos para não se legitimar a limitação dos efeitos no controle difuso, pois, no fundo, as técnicas de controle servem ambas, com caráter alternativo e conseqüências próprias, adequados a cada situação histórica, ao mesmíssimo propósito constitucional.

De qualquer sorte, para que haja uma modulação dos efeitos temporais é mister que se profira um juízo de inconstitucionalidade [24]. Assim, caso a norma não tenha sido recepcionado pela Constituição, não poderá se falar em sua inconstitucionalidade, mas sim em sua revogação [25]. Portanto, se a norma não foi recepcionada, faltará um dos pressupostos indispensáveis à utilização da técnica da modulação temporal.

Desta maneira, é plenamente lícito admitir a modulação dos efeitos temporais no controle difuso de constitucionalidade, seja em razão da segurança jurídica, seja do excepcional interesse social analisados no caso concreto. Consequentemente, o efeito ex tunc da decisão será rechaçado, devendo-se fixar um dos momentos previstos no art. 27 da Lei nº 9.868/99, cuja aplicação analógica, nesse ponto, se impõe.

Nos termos do supracitado artigo – considerando que se trata de controle difuso, em que os efeitos se dão apenas entre as partes do litígio – é possível decidir que os efeitos da decisão só tenham eficácia: 1) a partir do seu trânsito em julgado ou; 2) de outro momento que venha a ser fixado.

No primeiro caso, a decisão que declarar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo só produzirá efeitos prospectivos – ex nunc -, ou seja, a partir do trânsito em julgado de sua decisão. Via de conseqüência, todos os atos praticados antes, com base na lei, permanecerão válidos. Já na segunda hipótese, é possível fixar outro momento para que a declaração de inconstitucionalidade comece a produzir efeitos – efeitos pro futuro. Esse momento a ser fixado pode ser qualquer um, antes ou depois da data da declaração de inconstitucionalidade (ALEXANDRINO, 2007, p. 107).

À vista do exposto, não obstante a falta de norma expressa, é possível afastar a incidência da nulidade da norma constitucional [26], mediante um juízo de ponderação no caso concreto, e aplicar a modulação dos efeitos temporais quando da declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso-incidental.

Sobre o autor
Luís Fernando Barbosa Pasquini

advogado em Araçatuba (SP), especializando em Direito Processual pela UniToledo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASQUINI, Luís Fernando Barbosa. A modulação dos efeitos temporais no controle difuso-incidental de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2142, 13 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12831. Acesso em: 25 dez. 2024.

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