2. REPERCUSSÃO GERAL
O recurso extraordinário possui, dentre outros, a repercussão geral como pressuposto de admissibilidade, sendo ônus da parte recorrente fazer sua demonstração.
Como se verificou, o instituto da repercussão geral não existia no texto constitucional, sendo incluído pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, o que ocasionou várias implicações no processo civil brasileiro, as quais serão debatidas ao longo deste trabalho.
Entretanto, antes de discutir tais questões, faz-se necessário conhecer melhor o instituto da repercussão geral, observar seus aspectos técnicos e processuais, para, ao final, realizar o debate crítico a que se destina o presente trabalho.
2.1 Aspectos Gerais da Repercussão Geral
A repercussão geral é um pressuposto de admissibilidade específico do recurso extraordinário, cujo objetivo é demonstrar ao Supremo Tribunal Federal que a questão recorrida apresenta transcendência, ou seja, seus efeitos ultrapassam os limites subjetivos dos autos e são capazes de criar, modificar, restringir ou extinguir direitos de outras pessoas que não sejam somente as partes litigantes.
Desta forma, ao Supremo Tribunal Federal somente são submetidas demandas que são relevantes dentro de um ponto de vista político-jurídico, ou seja, apenas debates cuja complexidade e importância demandam a atuação da Corte Suprema para interpretar a norma constitucional e aplicá-la corretamente ao caso concreto.
O instituto em estudo fora acrescido ao sistema jurídico brasileiro através da Emenda Constitucional n.º 45/2004 que incluiu o §3º no artigo 102 da Constituição Federal. A referida norma, todavia, delegou à lei federal a incumbência de regulamentar a repercussão geral.
O debate central que este artigo propõe é justamente sobre a atual regulamentação da repercussão geral e seus efeitos no processo civil bem como para o sistema jurídico brasileiro. Antes de adentrar em tais discussões, faz-se necessário tecer alguns comentários e conhecer alguns aspectos deste instituto, como forma de subsidiar a tese defendida.
2.1.1 Regulamentação legal do instituto da repercussão geral
Conforme observa-se do artigo 102, §3º da Constituição Federal, o Texto Magno incumbe à lei federal regulamentar e dar conteúdo normativo à cláusula geral "repercussão geral".
Destarte, foi publicada a Lei Federal 11.418 de 19/12/2006 que incluiu os artigos 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, regulamentando respectivamente a repercussão geral, seus procedimentos de verificação e julgamento e o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos:
"Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§1º - Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§2º - O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§3º - Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§4º - Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§5º - Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§6º - O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§7º - A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão".
O artigo 543-B do CPC regulamenta o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos, o qual será tratado em item específico, razão pela qual será transcrito somente em momento oportuno. Agora nos ateremos somente ao estudo da repercussão geral.
2.1.2 Definição de matérias que oferecem repercussão geral
Diversamente do regime constitucional de 1969, a definição das questões que oferecem repercussão geral passou a caber à lei federal, notadamente à mencionada Lei 11.418/06.
O conceito de repercussão geral é bastante amplo, permitindo uma série de definições e interpretações. Neste sentido, a observância deste instituto há de ser determinada em face dos princípios constitucionais que afetam diretamente a sociedade como um todo, como vida, liberdade, saúde e patrimônio. Por sua vez, estes princípios também possuem baixa concretude jurídica, dificultando a sistematização deste pressuposto de admissibilidade do RE.
Em tentativa de delimitação conceitual, o artigo 543-A, §1º da Lei Processual Civil prevê que a caracterização da repercussão geral há de observar a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os limites subjetivos da causa.
Diante da imprecisão do conceito de repercussão geral e da natureza de cláusulas abertas dos princípios constitucionais, não é possível apresentar, a priori, um conceito objetivo do que seja uma questão que ofereça repercussão geral, pois sempre dependerá do caso concreto.
Isso porque a definição de "questão relevante" é também bastante ampla e por isso de difícil delimitação, relegando à jurisprudência o preenchimento destas lacunas. Segundo Arruda Alvim (5) a relevância da questão constitucional observa-se em
"decisão sobre assunto constitucional impactante, sobre tema constitucional muito controvertido, em relação a decisão que contrarie decisão do STF; que diga respeito à vida, à liberdade, à federação, à invocação do princípio da proporcionalidade (em relação à aplicação do texto constitucional) etc.; ou, ainda, outros valores conectados a Texto Constitucional que alberguem debaixo da repercussão geral".
Desta forma, questões constitucionais que não apresentem qualquer relevância à sociedade como um todo, não ensejam a interposição de recurso extraordinário, uma vez que, as causas decididas hão de repercutir em toda a comunidade, extrapolando-se os limites subjetivos dos autos. Contudo, retorna-se à questão anterior: o que é questão relevante? Quem define o que é relevante? Essas são algumas das discussões centrais que este artigo propõe.
Há, entretanto, uma espécie de questão atacada em recurso extraordinário que possui presunção absoluta de repercussão geral: decisões contrárias à súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, conforme artigo 543-A, §3º do CPC. Frise-se que por "jurisprudência dominante" entende-se aquela que resulta de posição pacífica, ou seja, não há acórdãos divergentes ou a discussão já foi assentada no Pretório Excelso.
A norma em comento demonstra a preocupação do legislador infraconstitucional em reconhecer a força vinculativa das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sua incumbência de guardião da higidez da norma constitucional. Observe-se, todavia, que o artigo 543-A, §3º do CPC não limita à súmula vinculante, mas estende esta presunção de repercussão geral a todos os casos em que se demonstre o posicionamento pacificado na Corte Suprema, sumulado ou não.
Cumpre registrar que decisões em última ou única instância que estão de acordo com a jurisprudência dominante do STF podem oferecer repercussão geral, devendo o decorrente demonstrar a ocorrência deste pressuposto no caso concreto. Sendo convincentes suas legações, o Supremo poderá inclusive alterar seu posicionamento.
2.2 Sistematização de critérios para aferição da repercussão geral
A norma constitucional, conforme já explicitado anteriormente, determinou que a lei federal deveria regulamentar o instituto da repercussão geral. Embora o texto normativo não seja explícito, nos parece que o poder constituinte derivado tinha expectativas que fossem estabelecidos critérios objetivos que aferissem o que seria uma questão relevante. Contudo, esta não é a realidade.
Observa-se que os estudos empreendidos neste artigo demonstram que o artigo 543-A, §1º inserido pela Lei 11.418/06 no Código de Processo Civil, por seu turno, estabeleceu que relevantes seriam as questões relacionadas a aspectos econômicos, políticos, sociais ou jurídicos.
Muito embora o legislador infraconstitucional tenha debruçado-se sobre a tentativa de reconhecer minimamente alguns critérios objetivos de aferição da repercussão geral, ousamos aqui entender que este instituto será observado todas as vezes que a causa demonstrar a possibilidade de repercutir em esfera que ultrapasse os limites dos autos.
Assim, poderá, inclusive, o Ministro Relator do STF, no momento do juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, reconhecer que este pressuposto fora observado no caso concreto sempre que haja um mínimo de subsídio fático e/ou jurídico que caracterize a demanda como relevante para a sociedade brasileira.
Exemplo disto é o caso de uma questão de direito de consumidor que, apesar de envolver discussão sobre bens ou serviços de baixo valor econômico, é relevante para a sociedade como um todo à medida que o desrespeito por parte do fornecedor é observado em inúmeros casos ou faça parte de uma cultura de mercado dissonante do sistema de defesa do consumidor. Assim, caberá ao Supremo exercer sua atribuição de órgão guardião dos princípios constitucionais e, através do recurso extraordinário, solucionar o caso em favor dos consumidores do Brasil, apesar de nos autos constar controvérsia envolvendo objeto com preço módico se for individualmente observado.
A tentativa de se estabelecer, portanto, critérios objetivos de sistematizar os critérios de aferição da repercussão fora conferida indiretamente à jurisprudência, que deverá preencher a lacuna conceitual dos conceitos vagos previstos no artigo 543-A, §1º do CPC.
Alguns doutrinadores (6), todavia, realizaram tentativas de estabelecer esses critérios, os encontram-se transcritos a seguir:
"i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um instituto básico de nosso direito, ‘de molde a que aquela decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente’; ii) repercussão geral política: quando ‘de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais’; iii) repercussão geral social: quando se discutissem problemas relacionados ‘à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para propositura de certas ações’; iv) repercussão geral econômica: quando se discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais". (grifos no original)
Complementando a sistematização acima transcrita e proposta, Vitor Nunes Leal (7) enumerou hipóteses em que se observaria o critério de relevância das questões submetidas ao Supremo Tribunal Federal, seguindo o modelo norte-americano. Seriam relevantes:
"a) as questões constitucionais;
b) as questões de natureza legal:
1 – versando sobre atribuições de autoridades de nível elevado, ou que lidam com interesses de amplas coletividades;
2 – referentes à definição de um instituto tributário, que interesse a centenas de milhares de pessoas;
3 – relativas à interpretação de uma lei que abranja extensa categoria de funcionários públicos;
4 – que versarem sobre uma norma legal que, aplicada de um ou de outro lado, pode afetar fundamente todo um ramo da produção ou comércio;
5 – versando sobre dissídio jurisprudencial em torno de uma lei de aplicação freqüente (sic), deixando, contudo, de Ter relevo esta questão, se a interpretação razoável da lei for contrariada apenas por uma ou outra decisão isolada, que não chegue a configurar uma corrente jurisprudencial".
Quaisquer critérios ou listas enumerativas que venham a ser adotados, tanto o advogado quanto os órgãos julgadores do Supremo deverão ter em mente que relevante é toda e qualquer causa que apresente ofensa ao interesse público ou a alguma garantia fundamental. Quanto a este caso, teceremos nossas considerações e críticas em momento oportuno.
2.3 Repercussão geral x arguição de relevância
A repercussão geral teve suas bases ideológicas no instituto da arguição de relevância prevista no regime Constitucional de 1969. Muito embora ambos institutos guardem similitude ideológica, estes não se confundem, conforme será apresentado neste item.
Enquanto o sistema de 1969 relegava ao Supremo Tribunal Federal a discricionariedade de estabelecer através de seu Regimento Interno as causas que entendessem relevantes, o atual regime estabelece critérios de aferição da relevância da causa debatida.
Decorrência lógica desta primeira constatação é que o atual sistema condiciona a Turma julgadora do STF a decidir se há ou não repercussão geral no caso concreto, enquanto o antigo regime listava em abstrato as causas que entendia relevante, sem possibilidade de alterações por via jurisprudencial deste rol taxativo do RISTF.
Na arguição de relevância o julgamento era secreto e imotivado, sendo que o hodierno regime da repercussão geral é diametralmente oposto, permitindo, ainda, a intervenção de amicus curiae no julgamento do juízo de admissibilidade do recurso extraordinário.
Apesar destas considerações, Luiz Manoel Gomes Junior (8) defende que a repercussão geral representa o retorno da arguição de relevância, sem, contudo demonstrar os fundamentos de sua posição, apenas fazendo referência à ressurreição de uma ideologia antiga da necessidade se filtrar as causas submetidas através de recurso extraordinário ao STF.
Entretanto, por ser a repercussão geral este filtro, tal e qual um dia foi a arguição de relevância, aquela em nada se assemelha a esta, não sendo aplicável a argumentação do respeitável Professor, conforme nossa humilde opinião.
2.4 Aspectos Processuais da Repercussão Geral
A repercussão geral é um dos pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário e, assim como os outros, é analisada previamente ao mérito recursal. Esse juízo, todavia, é um pouco diferente, pois mobiliza alguns procedimentos, os quais serão verificados.
2.4.1 Procedimentos preliminares
As alegações fáticas e jurídicas que demonstrem a ocorrência da repercussão geral deverão ser descritas pela parte recorrente em preliminares, segundo o disposto no artigo 543-A, §2º do Código de Processo Civil.
Esse destaque topográfico da repercussão geral na petição que interpõe o recurso extraordinário é importante para facilitar a visualização prévia deste pressuposto pelo órgão julgador do Supremo Tribunal Federal.
Nos casos previstos no artigo 543-A, §3º da Lei Processual Civil, ou seja, em que há presunção absoluta de repercussão geral, ainda assim não dispensa o destaque da matéria na petição do recurso extraordinário pelas razões acima apresentadas.
Se porventura não houver o aludido destaque, mas a repercussão geral for demonstrada em algum momento das alegações recursais, não poderá o Supremo Tribunal Federal, alegando o artigo 543-A, §2º do Código de Processo Civil, eximir-se de julgar a questão, pois o atual sistema jurídico brasileiro preconiza que o conteúdo é mais importante que a forma. Todavia, é interesse da parte que seu recurso seja conhecido e julgado procedente, sendo, portanto, seu ônus buscar ao máximo criar meios efetivos de se obter o resultado positivo.
3.2.2 Fase interna
Uma vez distribuído o recurso extraordinário para alguma Turma do Supremo Tribunal Federal, que é composta por cinco Ministros, esta fará um juízo preliminar de admissibilidade, analisando primeiramente a observância dos outros pressupostos e, após, a existência ou não da repercussão geral, segundo artigo 323 do RISTF.
Após análise, pelo Relator, da demonstração ou não da repercussão geral, submeterá a questão aos outros ministros através de meio eletrônico. Estes terão um prazo de 20 (vinte) dias para emitir seu posicionamento, consoante o disposto no artigo 323, §1º do Regimento Interno do Supremo.
Segundo o artigo 543-A, §4º da Lei de Ritos, se pelo menos quatro Ministros entenderem que o instituto em comento se observa no caso em análise, dá-se então continuidade ao juízo de admissibilidade e do próprio mérito do recurso extraordinário.
Contudo, uma vez negada a existência da repercussão geral ou afirmada por três ou menos Ministros da Turma, os autos são remetidos ao Pleno do Supremo para análise, o que ousamos chamar de fase externa.
Anote-se, por fim, que nos casos previsto no artigo 543-A, §3º do Código de Processo Civil, ou seja, da presunção absoluta de repercussão geral, não será necessária essa fase interna, remetendo-se prontamente os autos ao julgamento do mérito do recurso extraordinário.
3.2.3 Fase externa
Não sendo reconhecida a relevância do caso em análise, os autos serão remetidos ao Pleno do Supremo para julgamento desta questão preliminar. Observe-se que, conforme norma constitucional contida no artigo 102, §3º, acrescido pela EC 45, somente dois terços de sua composição do Pretório Excelso, ou seja, oito de seus onze Ministros podem negar a existência desse pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário.
O que o Texto Maior consignou é que a repercussão geral é presumidamente observada, cabendo a dois terços do Tribunal Pleno do Pretório Excelso negar sua existência.
Se o Pleno do STF entender observada a repercussão geral ou se esta for negada por sete ou menos Ministros, este requisito será dado por preenchido e os autos do recurso extraordinário serão remetidos à Turma para seu julgamento, que prosseguirá normalmente.
Negada a repercussão geral, esta decisão será publicada no Diário Oficial como acórdão (artigo 543-A, §7º do CPC) e será tido por paradigma para casos idênticos, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese (idem, §5º). O aludido julgamento por amostragem será melhor observado e criticado em momento oportuno.
Como a questão da observância da repercussão geral envolve interesses que transcendem os dos autos, dada a possibilidade de indeferimento liminar de recurso extraordinário que versem sobre casos idênticos, o artigo 543-A, §6º do CPC prevê possibilidade de terceiros habilitarem-se no julgamento do caso como amicus curiae.
Por fim, custa anotar que se o acórdão que afirmar ou negar a existência de repercussão geral estiver eivado de omissões, obscuridades ou contradições, poderá ser atacado por embargos de declaração, na forma do artigo 535 do CPC. Contudo, o mérito deste decisum é irrecorrível, segundo o artigo 326 do RISTF, com supedâneo no artigo 3º da Lei 11.418/06.