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O papel do inquérito policial no sistema acusatório.

O modelo brasileiro

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Agenda 24/06/2009 às 00:00

1 - INTRODUÇÃO AO TEMA

Conforme muito bem destaca Bismael Batista de Moraes1 o estudo do inquérito policial tem sido submetido a uma espécie de segundo plano ou mesmo a um velado abandono e preconceito por parte dos juristas pátrios.

Essa falta de interesse dos juristas da atualidade que dedicam apenas pequenas partes de suas obras ao estudo do inquérito policial, certamente teve seus reflexos na universidade e, conseqüentemente, na formação dos atuais operadores do direito. Constata-se uma falta de conhecimento prático e teórico da matéria e , especialmente, uma lacuna científica quanto ao estudo das reais potencialidades que o inquérito policial tem para uma justiça eficiente e ao mesmo tempo garantidora dos direitos individuais.

A imagem freqüentemente veiculada do inquérito policial costuma ater-se somente a dois aspectos que de forma alguma abarcam a totalidade das possibilidades apresentadas por tal instrumento. Inicia-se quase sempre por uma apresentação que procura menoscabar as funções e a natureza do inquérito, destacando suas supostas facetas negativas.

Os dois aspectos supra mencionados que costumam ser abordados na temática do inquérito policial, procurando reduzi-lo em suas funções e potencialidades são os seguintes:

a) Reduz-se o inquérito policial a instrumento a serviço da acusação, como se somente servisse para imputar condutas ilícitas a alguém.

b) Destaca-se sua característica inquisitiva, ensejando uma anacrônica relação com procedimentos ultrapassados absolutamente desrespeitosos aos direitos individuais, o que leva a uma visão superficial e negativa do inquérito.

Na realidade a abordagem de cada um dos dois aspectos acima mencionados pela doutrina numa visão reducionista do tema, demonstra a necessária interação de ambos numa relação inseparável e conseqüencial. Ora, no momento em que se concebe o inquérito como um instrumento primordialmente ou mesmo exclusivamente de imputação, suas facetas negativas sobressaem e seu caráter inquisitivo passa a gerar possibilidades de críticas daqueles que primam por um processo penal garantidor.

Nesse contexto o modelo brasileiro da fase da investigação criminal pré - processual tem sido submetido à constante crítica e indicações de necessidade premente de modificação. A tônica atual tem sido a discussão acerca de reformas no sistema penal e processual penal em uma contínua busca de respostas à crescente criminalidade que assola a sociedade. O que caracteriza efetivamente a temática dessas questões é o contínuo embate entre eficácia e garantias individuais. Este binômio sempre foi a grande problemática do processo a partir da valorização do ser humano; de sua visão não somente como sujeito de deveres, mas também, e especialmente, de direitos frente ao Estado.

Segundo Bobbio2, essa transição opera-se na mudança dos modelos de Estado Despótico e Absoluto para o modelo de Estado de Direito. "No Estado Despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado Absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos".

Assim sendo, não se pretende somente repisar o tema da importância instrutória do inquérito policial na coleta de provas e indícios ( estes aliás considerados como prova conforme artigo 239 do Código de Processo Penal ), pois que isso é mais que notório. Pretende-se destacar como o inquérito policial, no modelo brasileiro, pode colocar-se como instrumento garantista, equilibrando a relação processual sem prejudicar a eficácia do sistema. Para tanto faz-se necessária a libertação de preconceitos e idéias equivocadas como aquelas que reduzem o inquérito a instrumento a serviço da acusação e não como elemento neutro e imparcial de apuração da verdade; ou aquelas que vêem em seu caráter inquisitivo um injustificado desequilíbrio da relação processual; ou ainda as freqüentes alegações de descompasso do direito brasileiro com os modelos estrangeiros, olvidando a força da fase investigatória e o prestígio da polícia existente nesses modelos, bem como pretendendo deixar de lado a tradição e a realidade brasileiras.


2 - OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Quando se pretende discorrer acerca de melhores caminhos para a investigação criminal, mister se faz uma observação sobre o que se opera a nível internacional, especialmente quando torna-se quase que um dogma acrítico na doutrina a afirmação de que o processo penal brasileiro, no que tange à investigação criminal, necessitaria adequar-se a modelos alienígenas em tese mais eficazes e garantidores. Afirmação esta que se faz geralmente pretendendo destacar um desprestígio da polícia judiciária no âmbito da investigação criminal, pondo em relevância a atuação do Ministério Público como titular exclusivo da ação penal. Como se verá, esse desprestígio mundial da polícia judiciária não existe, sendo que em outros modelos verifica-se, contrariamente, um grande crédito à polícia na apuração das infrações penais.

No direito internacional pode-se distinguir basicamente três modelos de investigação criminal, a saber:

a) Juizados de instrução;

b) Modelos Acusatórios;

c) Modelos de "Common Law".3

Analisaremos separadamente cada um dos modelos acima com alguns exemplos, pondo em relevo a atuação da polícia judiciária, suas funções, atribuições e grau de autonomia.

2.1 - JUIZADOS DE INSTRUÇÃO

a) FRANÇA

Na França a fase de investigação criminal é tradicionalmente de competência de um "Juizado de Instrução". No entanto, paulatinamente atribuições foram sendo delegadas à Polícia Judiciária pela Magistratura e, hoje, a importância das chamadas "enquêtes préliminaires" experimenta um movimento crescente. Existe forte ligação até em nível hierárquico entre a Polícia e o Ministério Público, cabendo a este último a fiscalização sobre os trabalhos policiais. 4

b) ESTADOS ÁRABES

Dentre os Estados Árabes Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbano, Iraque e Síria seguem o modelo Francês. O Egito também segue em geral o modelo de juizado de instrução nos delitos mais graves. Mas nas contravenções e crimes de menor gravidade há uma indesejável mescla entre os órgãos acusador e julgador ( resquícios de Sistema Inquisitivo ). Nesses casos o Ministério Público exerce funções de polícia judiciária, de acusador e até a própria atividade julgadora.5

c) ESPANHA

Na Espanha o processo divide-se em três fases: sumária, intermediária e Juízo oral. Todas as fases são conduzidas por órgãos jurisdicionais, mas o Ministério Público ( "Ministério Fiscal" ) se limita à função acusatória e jamais instrutória.6

"Por esse motivo, no sistema espanhol, a necessária condução dos trabalhos preparatórios para a propositura da ação penal fica a cargo da ''polícia judicial'' , mas com endereçamento certo, o ''Ministério Fiscal'' , que exercita a ação penal, e velará, por conseguinte, pelas realizações da fase investigatória.

Assim, no que tange ao início da fase investigativa, muita semelhança existe com o nosso modelo ( ... )."7

Na "Ley de Enjuiciamiento Criminal" ( Código de Processo Penal ) estão as atribuições da Polícia Judiciária ( artigos 282 e seguintes; 492 e seguintes e 786 ), constatando-se que à polícia competem as "diligencias de prevención" ( artigo 284 ), que se constituem em atos necessários à ulterior instrução criminal.8

d) ARGENTINA

No "Código de Procedimientos em Materia Penal" ( artigos 178 e seguintes ), há previsão do chamado "Sumario" ou "Prevención del Sumario", que objetiva "comprovar a existência de um fato punível penalmente, reunir suas circunstâncias e descobrir seus autores". Tal atividade inicial é de competência de um Juiz Instrutor, mas pode, de acordo com os artigos 184 e 185, haver a intervenção da polícia nas investigações.9

e) MÉXICO

O sistema mexicano igualmente conhece o juizado de instrução. No entanto, prevê uma investigação prévia a cargo do Ministério Público, mas que na prática pode ser exercida pela Polícia Judiciária.10

É prevista a chamada "averiguación previa", fase em que o Ministério Público exerce investigações de Polícia Judiciária, procedendo a um verdadeiro inquérito preparatório da futura ação penal.11 Também no "Código de Procedimientos Penales para El Distrito Federal" ( art. 94 e seguintes ) prevê que "para comprovação do delito e de suas circunstâncias a Polícia Judiciária deverá elaborar ''um acta'', registro de tudo que se relacione ao crime, antes da ação".12

2.2- MODELOS ACUSATÓRIOS

a) ALEMANHA

Existe uma fase de investigação preliminar coordenada pelo Ministério Público. Trata-se do chamado "processo de investigação ou procedimento preparatório", também constituindo-se em um verdadeiro inquérito para basear a ação penal.13

b) ÁUSTRIA E BELGICA

A investigação criminal pode ser conduzida pelo Ministério Público ou pela Autoridade de Segurança Pública. Entretanto, toda atividade investigatória instaurada deve ser comunicada ao Ministério Público que "tem poderes expressos de condução, requisição e valoração do acervo".14

c) ITÁLIA

Antes da reforma levada a efeito em 1988 havia o Juizado de Instrução. Hoje é prevista uma etapa pré - processual denominada "indagini preliminari", semelhante ao nosso inquérito policial. As investigação são conduzidas pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária em conjunto, sendo a atividade desta segunda coordenada pelo primeiro. É interessante notar "que a condução das investigações pelo Ministério Público não exclui a atividade investigativa desenvolvida pela Polícia Judiciária, esta atuando sob a coordenação do Ministério Público, mas podendo realizar atos tendentes a colher meios de prova para a formação do juízo de convicção pelo legitimado ativo, e desenvolvendo, ainda, atividades que lhe são típicas, v. g. , a identificação criminal".15

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d) PORTUGAL

Em reforma recente do Código de Processo Penal ( Decreto - Lei 78, de 17.02.87) alterou-se a denominação que se dava em Portugal à fase investigatória preliminar à ação penal de "corpo de delito" ou "instrução preparatória" para "inquérito". Tal investigação preparatória da ação penal é dirigida pelo Ministério Público, o qual é assistido pela chamada Polícia Criminal 16.

2.3 - MODELOS DE "COMMON LAW"

a) INGLATERRA

Não existe nesse país uma figura similar ao Ministério Público, ou seja, um órgão acusador estatal. A "persecução penal acaba por ser utilizada na prática pelos funcionários da polícia, sendo que mesmo esta, muitas vezes não apresenta configuração estatal, acabando por ser exercida pela sociedade civilmente organizada, ou individualmente pelo ofendido em seu bem jurídico penalmente tutelado".17

b) ESTADOS UNIDOS

Os trabalhos de investigação são realizados pela polícia em contato direito com o equivalente ao Ministério Público, não havendo intermediação judicial nessa fase. Esta só ocorre quando se vai avaliar a existência de uma "probable cause" a ser levada a julgamento.18

2.4 - MODELO BRASILEIRO

No Brasil é adotado o Sistema Acusatório, com uma fase preliminar de investigação que constitui, em regra, o inquérito policial. Diz-se "em regra" porque por força legal o inquérito policial não é indispensável para a propositura da ação penal ( artigo 4º., Parágrafo Único , CPP ), podendo ser substituído por outras peças informativas ou mesmo por procedimentos investigatórios atribuídos a outras autoridades administrativas que não as policiais. Além disso, com o advento da Lei 9099/95 criou-se para as infrações penais de menor potencial ofensivo o chamado "Termo Circunstanciado" que, em tese, substitui o inquérito policial.

Entretanto, frise-se que nunca é prescindível um mínimo de indícios e fundamentos para embasar a deflagração da ação penal. "Ultimamente tem se incluído como causa de rejeição da denúncia ou da queixa por falta de condição exigida pela lei ( falta de interesse de agir ) a inexistência de elementos indiciários que amparem a acusação. É realmente necessário que a inicial venha acompanhada de um mínimo de prova que demonstre ser ela viável; é preciso que haja ''fumus boni iuris'' para que a ação penal tenha condições de viabilidade pois, do contrário, não há justa causa."19 Na esmagadora maioria dos casos esse mínimo indiciário é obtido através do inquérito policial. Até mesmo em casos nos quais a própria lei tenta suprimir a investigação preliminar dos fatos como no caso da Lei de Abuso de Autoridade ( Lei 4898/65 ), verifica-se que na prática os atos de investigação inicial tornam-se imprescindíveis sob pena de fracasso ou mesmo equívoco na ação penal. A própria Lei 9099/95, mais previdente, aditantou-se em permitir o encaminhamento das peças ao "Juízo comum" quando a "complexidade ou circunstância do caso não permitirem a formulação de denúncia" ( art. 77, § 2º. c/c 66, Parágrafo Único ).20

Mas afinal, em que consiste o inquérito policial, instrumento tão destacado na apuração das infrações penais, conforme já foi exposto?

Nas palavras de Salles Júnior21:

"Inquérito Policial é o procedimento destinado à reunião de elementos acerca de uma infração penal. É o conjunto de diligências realizadas pela Polícia Judiciária, para apuração de uma infração penal e sua autoria, para que o titular da ação penal possa ingressar em juízo, pedindo a aplicação da lei ao caso concreto."

Manoel Messias Barbosa22 aduz que "a doutrina ensina, quase de modo unânime, que o inquérito policial consiste em investigação do fato, na sua materialidade e da autoria, ultimada pela denominada polícia judiciária. Assim, se ostentando como um procedimento administrativo persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal".

É necessário neste ponto atentar para o fato de que o inquérito policial não deve ser conceituado somente sob o ponto de vista que destaca sua função de fornecer elementos ao titular da ação penal ( Ministério Público ). Na realidade, o inquérito policial serve não somente para embasar a futura ação penal, como também, em certos casos, para demonstrar exatamente o inverso, ou seja, a desnecessidade ou não cabimento de uma eventual ação penal. O inquérito é um instrumento imparcial, não vinculado à futura acusação, podendo em seu bojo trazer elementos de interesse da defesa do suposto autor da infração. Reduzi-lo a fornecedor de elementos ao titular da ação penal é manietar sua verdadeira função, muito mais ampla e relevante à consecução da Justiça.

Por isso, prefere-se a conceituação de Adilson José Vieira Pinto23 que afirma que o inquérito policial "pode ser definido como sendo o procedimento administrativo de polícia judiciária que, por intermédio de investigação, visa a confirmação da existência ou não de uma determinada infração penal, suas circunstâncias e o estabelecimento da correspondente autoria."

No sistema brasileiro a instauração do inquérito é de atribuição da Autoridade Policial, podendo ainda ser objeto de requisição pela Autoridade Judiciária ou pelo Ministério Público. Já com relação à condução das investigações há atribuição específica da Autoridade Policial ( Delegados de Polícia de Carreira ), conforme artigo 144, § 4º., CF. 24 A atuação do Ministério Público na fase de investigação criminal é externa e intermediada pela Autoridade Judiciária, sendo que também podem haver requerimentos de diligências pelo ofendido, indiciado ou advogado diretamente à Autoridade Policial nos termos do artigo 14 CPP.


3 - O PAPEL DO INQUÉRITO POLICIAL NO SISTEMA ACUSATÓRIO BRASILEIRO

A abordagem que se foi descortinando no desenvolvimento do tema é talvez das menos exploradas no mundo jurídico. Falar do inquérito policial com maior interesse por suas potencialidades ao invés de repisar continuamente a demonstração de suas mazelas é bastante raro. Agora, mais inusitada, é a pretensão de delinear o seu papel para a otimização do Sistema Acusatório de acordo com a tradição brasileira. Não obstante a missão solitária, trata-se de um questionamento absolutamente necessário quando somente se vislumbram posições tendentes a uma alteração do quadro processual no que tange à investigação criminal, visando o simples transplante artificial de modelos estrangeiros, deixando de lado a realidade brasileira.

Neste sentido, vale transcrever a conclusão de Bismael Batista de Moraes25:

"( ... ), volta e meia, aparecem algumas vozes, sem a devida ponderação, destratando o Inquérito Policial, sem o devido conhecimento de tal peça diante da realidade jurídico - penal circundante, na pretensão de fazer crer que a demora na realização da justiça criminal no Brasil se deve a esse procedimento ( ''não existente em outros países'' - repetem ). Assim, até ensaiam ou propõem o seu desaparecimento e substituição por modelos alienígenas.

Deve-se ter em conta, porém, que cada povo tem sua origem, seus costumes, suas tradições, sua história. Muitas vezes, embora no mesmo Continente, as sociedades são profundamente diferenciadas: vejam-se a propósito, italianos e alemães; mexicanos e norte - americanos; brasileiros e peruanos, e tantos outros confrontos que poderiam ser analisados. Depois, como o Direito deve se amoldar às realidades do povo ao qual se aplica, sendo traço marcante de sua cultura, verifica-se que, embora natural a busca por novos procedimentos jurídicos, faz-se imprescindível conhecer bem o que se tem à mão, para evitar experiências ou transplantes com riscos de rejeição ou até desastres".

No modelo brasileiro o inquérito policial tem grande importância na elucidação dos fatos, na eficácia da persecução penal e pode ter uma relevante função na consecução da garantia constitucional de um devido processo legal, especialmente no que se refere à "paridade de armas"26 entre acusação e defesa.

Em seguida serão analisados alguns aspectos que demonstram a possibilidade da inserção do inquérito policial nesse contexto, bem como a desmistificação de propostas que pretendem atribuir à figura do inquérito policial a culpa por todas as falhas do sistema penal e processual penal brasileiro. Mais uma vez, é importante destacar a assertiva de Bismael Batista de Moraes, citando Sérgio Marques de Moraes Pitombo, ao indagar: "quando se diz que o ''inquérito policial'' só existe no Direito brasileiro, procurando elogiar procedimentos de outras terras, não será o Brasil, em matéria de investigação formal, que se acha à frente dos demais países?"27

3.1 - A IMPORTÂNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL PARA APLICAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL 28

Na realidade, o inquérito policial, além de ofertar indícios à propositura ou não da ação penal, produz verdadeiras provas onde o contraditório é "diferido" ou "posticipado" ( ex. perícias, apreensões, reconhecimentos etc. ).

Observando-se com alguma atenção o pequeno esboço de alguns modelos de investigação anteriormente expostos, constata-se sem nenhuma dificuldade ou dúvida que uma fase de investigação anterior à ação penal é imprescindível para o devido deslinde dos fatos.

Anote-se que é possível encontrar sistemas que não conhecem a figura do Ministério Público ou de um Acusador Público ( v. g. Inglaterra ), mas não se encontra a inexistência de uma polícia investigativa, fato este a demonstrar a real importância dessa atividade para a consecução da Justiça Criminal, não sendo exagero fazer coro àqueles que apregoam ser a polícia judiciária uma das "funções essenciais à justiça"29

As funções de Polícia Judiciária em outros países, longe de serem submetidas a uma situação de submissão a outros órgãos ou mesmo de desprestígio, exsurgem com grande imponência . Mesmo em países centrais, com estruturas desenvolvidas, verifica-se que embora em alguns casos a investigação seja dirigida pelo Ministério Público ou por um Juiz Instrutor, acaba ocorrendo, na prática, uma migração para a Polícia Judiciária30 de atividades muito relevantes. Se em países centrais, com condições inclusive financeiras incrivelmente superiores ao Brasil, tal fato ocorre devido a iniludíveis necessidades práticas que não podem ser suprimidas por uma mera imposição legal, o que dizer da nossa realidade marginal? Esses países, especialmente de modelo acusatório, em que o Ministério Público efetivamente preside as investigações ou age concorrentemente com a Polícia Judiciária, são dotados de sociedades mais homogêneas e menos conflituosas que a nossa realidade, sendo incomparável o número de feitos a serem realizados. Ainda assim existe uma certa autonomia investigativa da Polícia Judiciária, a qual certamente é funcional.

As características do inquérito são importantíssimas para essa fase de apuração inicial, tanto que constata-se a nível internacional uma tendência à abolição dos Juizados de Instrução e à adoção de uma fase inicial de investigação criminal nos moldes do inquérito policial.31

É interessante pôr em relevo que o caráter sigiloso e inquisitivo do inquérito policial ( artigo 20 CPP ) impõe-se como garantia da eficácia da persecução penal, não infringindo, como superficialmente poder-se-ia afirmar, a igualdade processual entre acusação e defesa. Esta é a clara orientação de Scarance Fernandes32 ao afirmar:

"Por outro lado, na fase indiciária justifica-se alguma desigualdade em favor do Estado, a fim de realizar melhor colheita de indícios a respeito do fato criminoso. É o que diz Jimenez Asenjo, em trecho citado por Tourinho Filho: ''É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o indivíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a idéia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para subtrair-se à ação da Justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida. Para estabelecer, pois, a igualdade nas condições de luta, já que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo nobremente sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios de culpabilidade do seu autor".

Outro não é o parecer de Adilson José Vieira Pinto33 ao aduzir que a busca da verdade no inquérito policial "não pode estar obstaculizada, sendo uma rocha a contrapor a investigação, na forma vista no processo judicial, do contraditório e da ampla defesa na fase inicial da ''persecutio criminis''. O ''inquisitio'' há de predominar nesse primeiro momento."

Por fim cumpre ressaltar um argumento incontestável em favor do inquérito policial como instrução provisória. Certamente uma das suas principais funções dentro do Sistema Processual é a "garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelos crimes ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas".34 A fase de investigação pré - processual tem seu caráter de economia processual, evitando a mobilização do Judiciário desnecessariamente em situações que na realidade, após uma melhor verificação apura-se não haver conduta criminosa a ser perseguida, ou mesmo em casos nos quais, embora hajam fatos típicos, não se conseguem elementos suficientes a embasar uma acusação consistente. Além disso, significa poupar o indivíduo das agruras de um processo açodadamente instaurado sem um mínimo de elementos a justificarem a persecução penal em juízo.

3.2 - O INQUÉRITO POLICIAL COMO INSTRUMENTO IMPARCIAL - A NECESSIDADE DE CONSCIENTIZAÇÃO DAS AUTORIDADES POLICIAIS

Erro muito freqüente e já anteriormente apontado neste trabalho é a atribuição ao inquérito policial da função de servir de fundamento à acusação ou mesmo somente à formação da convicção do titular da ação penal. O inquérito não pode e não deve ser reduzido apenas a esses objetivos. Ele é um instrumento de imparcialidade na apuração dos fatos, tendo em mira coletar o máximo de informações a respeito dos acontecimentos em investigação, seja no sentido de comprovar a infração e sua autoria, seja para constatar a não ocorrência de um delito ou a não autoria por parte de um indivíduo inicialmente suspeito.

Esta é a lição da doutrina ao asseverar que "no atinente ao seu objetivo, ( ... ) a maioria esmagadora dos doutrinadores descuidam-se quando afirmam que o inquérito policial visa a preparação da ação penal. Nesse sentido também a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal: ''Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal ( ... )'' ( n. IV da Exposição ). Isso é colocar o procedimento e, por forçosa conseqüência, o Delegado de Polícia a serviço do pólo acusatório. A existência de elementos que evidenciam a inocorrência do fato gerador de sua instauração - a infração - e também a improcedência da suspeita que preliminarmente recaía a determinado indivíduo ( melhor, cidadão ), impõem inexorável determinação, pela autoridade judiciária, de seu arquivamento, à evidência ressalvada a possibilidade de seu ressurgimento, conforme estatuído no art. 18 do CPP"35.

No mesmo sentido, Espínola Filho36 afirma que "mister se faz não desatender nunca a que o inquérito não é um instrumento de acusação; e, sim, uma investigação destinada ao descobrimento da verdade".

É exatamente essa característica de imparcialidade que confere ao inquérito policial o potencial necessário a tornar-se, dentro do Sistema Acusatório, um instrumento útil para otimização de uma importante divisão bem definida das funções dos atores no processo penal, evitando a promiscuidade e a contaminação que leva à parcialidade.

Embora opere-se em uma fase pré - processual, o inquérito pode servir como uma barreira a esse tipo de contaminação, possibilitando ao futuro acusador uma visão serena do contexto apurado, bem como ao julgador que deve ser mantido ao máximo distante das operações investigatórias, a necessária imparcialidade no julgamento.

Mas, para que isso efetivamente ocorra é necessário que sejam tomadas precauções visando o distanciamento do órgão de acusação da direção das investigações e não a colocação destas sob seu comando. Como visto, no modelo espanhol a atividade instrutória em qualquer fase é vedada ao Ministério Público. Quando se pretende atribuir diretamente ao Ministério Público a presidência de toda a atividade investigatória, apregoando uma suposta maior eficácia da persecução penal, existe uma inadmissível visão unilateral da investigação criminal, levando a um desequilíbrio da "paridade de armas" entre acusação e defesa.

Afirmar que o Ministério Público pode ser imparcial na investigação leva à mesma constatação de Carnelutti acerca do dilema do Juiz:

"A justiça humana não pode ser senão uma justiça parcial; a sua humanidade não pode resolver-se senão na parcialidade. Tudo aquilo que se pode fazer é buscar diminuir esta parcialidade. O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como pode fazer o juiz ser melhor do que é? "37

Como poderia o Ministério Público agir em prol do investigado, tendo em mente que adiante teria uma batalha judicial a travar? Esse questionamento não é de modo algum ofensivo, mas simplesmente revelador da humanidade insofismável ainda que daqueles aos quais são atribuídas relevantes funções na sociedade.

Certamente a Autoridade Policial pode também ser contaminada de parcialidade, mas ao menos tem melhores condições de controlar-se, pois que não teria essa perspectiva de um futuro embate em juízo. Enfrentaria a Autoridade Policial os mesmo limites humanos do Juiz, mas pelo menos sua atividade, ainda que numa ficção jurídica, seria imparcial à semelhança daquele, ao passo que, necessariamente, acusador e defensor são sujeitos parciais.38

A investigação visa apurar a verdade e não simplesmente obter indícios e provas para a acusação. A presidência da investigação deve ser neutra. Seria possível falar em igualdade processual se o acusador se confunde com o investigador e o eventual defensor deve requerer a ele as diligências de seu interesse na fase investigatória?

Conceder ao Estado diante da infração uma fase inicial inquisitiva e discricionária levada a cabo por um órgão neutro e inclusive externo ao futuro processo criminal é contrabalançar uma situação de provisória desigualdade. Eqüidade em confronto com igualdade aritmética.39 Já conceder amplos poderes à acusação que passa a dominar todos os meios de investigação e inclusive a deferir ou não a realização de diligências a seu critério, equivale a um desequilíbrio indesejável de forças.

Bastante diferente e totalmente inofensiva ao exercício da defesa é a atuação do Ministério Público ao decidir pelo arquivamento ou oferecimento de denúncia. Trata-se neste caso de atribuição privativa que não afeta em nenhum momento a atividade do outro pólo processual.

A atribuição da direção das investigações a uma Autoridade Policial neutra no que tange ao futuro processo penal é salutar. Essa neutralidade torna humanamente possível uma atuação imparcial na fase de investigação, carreando-se o máximo de informações aos autos, sejam tais informações em qualquer sentido.

No entanto, essa relevante imparcialidade nas investigações somente pode ser levada à prática com uma efetiva conscientização das Autoridades Policiais ( Delegados de Polícia de Carreira - art. 144, § 4º., CF ). Conscientização da verdadeira amplitude de suas funções, libertação de uma visão unilateral e limitada da investigação criminal, imposta em parte pela deficiência na formação nos bancos acadêmicos, devido ao descaso com o estudo do inquérito policial a permitir que conclusões equivocadas sobre o tema se banalizem e perpetuem, formando mentalidades e práticas profissionais.40

Neste contexto, destaca-se a figura do Delegado de Polícia como Bacharel em Direito, constituindo-se em uma vantagem qualitativa da polícia brasileira em relação às alienígenas. O Delegado de Polícia com formação jurídica, além de possibilitar uma competente investigação no aspecto jurídico, pode funcionar como uma autoridade capaz de possibilitar uma "paridade de armas" entre acusação e defesa, pois que não será necessária a intervenção do órgão estatal acusador nessa fase, ao contrário de outros sistemas de direito comparado.

Certamente é infeliz a assertiva de Carlos Magno Nazareth Cerqueira:41

"A carreira policial assentada na carreira jurídica precisa ser questionada: policial de investigação criminal não precisa ser advogado e muito menos pertencer à carreira jurídica. ( ... ). Isso tem feito com que o policial civil não se identifique com a profissão policial e sim com a carreira jurídica."

Dizer que a atividade policial prescinde dos conhecimentos jurídicos, especialmente em sua presidência, e que a profissão policial não se coaduna com a das carreiras jurídicas é certamente um posicionamento autoritário. Ora, se a atividade policial não condiz com os conhecimentos jurídicos, ela deve realizar-se à margem destes? A vocação policial não é jurídica: como isso é possível no Estado de Direito? Qual é então essa vocação policial que pode ser prejudicada com os conhecimentos jurídicos? Investigar sem base jurídica é investigar com base em quê? Será que essa vocação policial tão prejudicada pelo Direito não seria uma abjeta vocação para a violência, truculência, arbitrariedade e ignorância?

Por derradeiro vale acrescentar que além da formação jurídica e da consciência da real finalidade da atividade investigatória, é necessário que as Autoridades Policiais tenham efetivas condições de independência ( principalmente política ) para o exercício amplo de suas relevantes funções.

É de Frederico Marques a seguinte advertência:

"De tudo se conclui que a polícia judiciária precisa ser aparelhada para tão alta missão, tanto mais que o Código de Processo Penal a prevê expressamente no artigo 6º., item IX. Para tanto seria necessário uma reforma de base, tal como preconizaram Sebastián Soler e Vélez Mariconde na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de Córdoba, em que se estruturasse a polícia judiciária em quadros próprios, separando-a da polícia de segurança e da polícia política. Reorganizada em bases científicas e cercada de garantias que a afastem das influências e injunções de ordem partidária, a polícia judiciária, que é das peças mais importantes e fundamentais da justiça penal, estará apta para tão alta e difícil tarefa".42

O mínimo que se pode esperar como garantia para o exercício da atividade de presidência dos atos de polícia judiciária é a inamovibilidade já conferida à Magistratura e ao Ministério Público ( artigos 95, II e 128,§ 5º., I, "b", CF ).

Finalmente é preciso reconhecer que uma investigação criminal democrática e eficaz requer investimento financeiro. Profissionais bem remunerados, motivados, competentes e com recursos materiais. E especialmente uma Polícia Científica muito bem aparelhada com as técnicas mais avançadas. Isso é o que, na realidade, pode ensejar uma nova atuação policial. Não obstante, não se espere de uma melhor polícia, de um melhor judiciário, uma sociedade menos violenta, pois que isso é resultado de um conjunto de fatores, onde o combate ao crime é apenas uma pequena parcela. 43 Espere-se do progresso policial e judiciário uma redução da impunidade e das eventuais injustiças causadas pela precariedade do sistema atual.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O papel do inquérito policial no sistema acusatório.: O modelo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2184, 24 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13037. Acesso em: 23 dez. 2024.

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