5. SOCIOAFETIVIDADE
A modificação de paradigmas que originou a Constituição Federal de 1988, bem como dos vários fenômenos apontados pela doutrina que refletem significativamente no Direito de Família, entre eles a publicização do Direito Privado, a constitucionalização do Direito Civil, bem como o fenômeno da repersonalização das relações familiares, permitiram que a afetividade fosse inserida nas discussões doutrinárias acerca da família contemporânea.
Foi justamente esse vínculo emocional que contribuiu para a distinção do que deve ser tutelado pelo direito das obrigações, cujo núcleo é a vontade, daquilo que deve ser tutelado pelo direito de família.
Isso fez com que a socioafetividade tornasse um das principais características da família atual, se apresentando nas relações familiares onde o amor é cultivado cotidianamente. A partir de tal contexto, é que se funda a família atual, permitindo o surgimento do Principio Jurídico da Afetividade, que decorrendo de outros Princípios Constitucionais, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é considerado princípio implícito.
Segundo Paulo Luiz Netto Lobo 14:
Encontram-se na Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda evolução social da família, especialmente:
a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º) 15;
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º) 16;
c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º) 17 18;
d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º).
Devido ao fato da afetividade ser uma construção cultural retirada do mundo fático e, por não apresentar significado certo e determinado, é que o Princípio da Afetividade, como todos os outros princípios, devem ser determinados pelo aplicador do Direito ao caso concreto.
6. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
A filiação socioafetiva baseia-se na idéia de qualidade de filho, onde os elementos formadores da relação paterno-filial são construídos através dos laços do amor visando a felicidade dentro da família.
A filiação socioafetiva pode ocorrer em diversas situações, podendo inclusive comungar do mesmo liame da paternidade biológica e registral ao mesmo tempo, o que seria o ideal, afastando então o entendimento de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se também a adoção "à brasileira" e o "filho de criação".
Segundo Belmiro Pedro Welter 19:
A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.
Nos ensinamentos de José Bernardo Ramos Boeira 20:
A verdadeira paternidade passou a ser vista como uma relação psicoafetiva, existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobbretudo afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial reveladores de uma convivência paterno-filial, que, por si só, é capaz de justificar e identificar a verdadeira paternidade.
Segundo ensinamento de Luiz Edson Fachin, "o que determina a verdadeira filiação não é a descendência genética, e sim os laços de afeto que são construídos, em especial na adoção".
Assim também entende Rolf Madaleno 21:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição.
A paternidade socioafetiva se fundamenta na distinção entre pai e genitor e no direito ao reconhecimento da filiação, já que entende por pai aquele que desempenha o papel protetor, educador e emocional.
Portanto, juntamente com os critérios jurídico e biológico, a socioafetividade se tornou um novo critério para a definição da filiação.
6.1. Posse do estado de filho.
O instituto da posse de estado de filho surge diante da necessidade de se buscar efetivos meios probatórios da paternidade socioafetiva. A posse de estado de filho é a exteriorização à sociedade do laço paterno-filial, independentemente se há ou não vínculo biológico. É a aparência dos papéis sociais de pais e filho através da afetividade.
Nas palavras de José Bernardo Boeira Ramos 22:
Entende-se a posse de estado de filho como sendo "uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.
Sua importância é maior quando ocorrem conflitos entre as paternidades biológica, registral e socioafetiva.
Neste sentido, contrabalançando a verdade biológica e a sócio-afetiva, é que surge o instituto da posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, o caráter sociológico da filiação
Assim, a doutrina estabeleceu alguns elementos principais que caracterizam a posse de estado de filho. 23
Os elementos que podem constituir o instituto da posse de estado de filho são determinados pela doutrina como sendo o nome ("nomem"), o trato ("tractatus") e a fama ("fama") 24. No entanto, como bem ensina o professor Luiz Edson Fachin, "é sabido que estes são os principais dados formadores daquele conceito, mas nem a doutrina nem o legislador se arriscam em dar um rol completo ou definição acabada dos fatos aptos a constituí-lo". 25
Rosana Fachin 26, na obra Direito de Família e o Novo Código Civil, ao tratar do tema, leciona que:
Essa visão formal concernente às provas da filiação convive à margem no novo texto com a possibilidade de se aferir a paternidade socioafetiva, para a qual a posse do estado de filho se funda na nominatio (pelo apelido de família), no tractus (designativo no tratamento de pai e filho), e na reputatio (aparência social da relação paterno-filial).
São eles o nome (nomen ou nominatio), o trato (tractus), e a fama (fama ou reputatio).
O primeiro elemento caracteriza pelo uso do nome da família do pai afetivo por seu pretenso filho, ou seja, é a atribuição do nome do pai ao filho. É a utilização perante terceiros do nome de família daquele que considera seu pai, o que faz supor a existência do laço de filiação.
Entretanto, tal elemento, segundo a doutrina, não tem o status de essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto que, muitas vezes, a informalidade dessa condição faça com que o filho não utilize o nome de seu pai. Assim, estando caracterizados os outros dois elementos, quais sejam, o trato e a fama, a posse de estado de filho configurar-se-á.
O trato corresponde aos atos que expressam a vontade de tratar a criança como a trataria um pai, através da criação, educação, convivência e afetividade, comuns aos pais no tocante aos filhos.
Importante salientar que não se torna necessário a assistência material e afetiva cumulativamente, uma vez que o pai pode não ter condições de prestar a assistência financeira, ou que o filho não necessite.
Ademais, indispensável também não é o chamamento de pai ou filho, visto que a valorização deve fundar-se no amor, na educação e tudo mais que um pai dispensa a um filho.
Já a fama é a exteriorização desse estado da pessoa para o público, isto é, a sociedade deve reconhecer a pessoa como sendo filha daquela. É a expressão da publicidade desta relação à sociedade. Tal situação no entanto não pode ser reconhecida por suposições ou afirmações duvidosas.
A posse de estado de filho ainda não foi expressamente reconhecida como elemento constitutivo da filiação, podendo ser considerada implícita no art. 1.605. do Código Civil, que dispõe ser possível provar-se a filiação "quando houver começo de prova por escrito" ou "quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.
Em novembro de 2004, civilistas de todo o país, reuniram-se no auditório do STJ para estudo do atual Código Civil e, ao final do encontro, emitiram enunciados, dentre os quais um referente ao artigo 1593, de autoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos (TJ-RS), com a seguinte redação: "A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil."
6.2. Espécies de filiação socioafetiva.
Várias situações podem englobar a filiação socioafetiva, podendo até mesmo se originar do mesmo liame da paternidade biológica e registral, inclusive ao mesmo tempo.
Tal concepção afasta a idéia de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se neste caso também a adoção "à brasileira" e o "filho de criação".
A adoção judicial é um ato jurídico, de vontade, de amor e de solidariedade. Trata-se de um ato solene, sendo exigidos alguns requisitos, tais como a diferença mínima de idade entre o adotante e o adotado, a efetivação por maior de 18 anos, entre outros.
Por se tratar de ato solene, a adoção deve se efetivar por meio de escritura pública, no caso do adotado ser capaz, ou por sentença judicial, nas adoções de incapazes.
Já adoção "à brasileira", por ser um fenômeno comum em nosso país, foi assim denominado pela jurisprudência pátria. Consiste no registro da criança diretamente em nome dos pais afetivos, sem as devidas formalidades legais, como se filhos daqueles fosse.
A adoção quando apenas um dos pais não tem legitimidade para fazer o registro, como é o caso do companheiro da mãe biológica que conscientemente registra a criança como se fosse também seu filho biológico, é considerada como adoção "à brasileira"
Mesmo constituindo-se em crime, previsto pelo art. 242. 27 do Código Penal, a maioria da doutrina e da jurisprudência vê essas adoções como "informais" e não com o estigma de "ilegais", justamente pela quantidade desses casos, e também para preservar uma situação de fato vantajosa para o filho, muito mais do que pelo "motivo nobre" que pudesse ter existido, a justificar a isenção da pena. 28
Portanto, dúvidas não restam que a adoção "à brasileira" vem sendo admitida em nosso ordenamento jurídico.
7. OS "FILHOS DE CRIAÇÃO"
Denomina-se "filhos de criação" como sendo aqueles que se submetem a uma guarda de fato, ligando-se à família simplesmente por uma relação afetiva. São aqueles indivíduos que apesar de serem tratados como filhos pela família, não possuem qualquer vínculo biológico ou registral.
Acerca do tema, Belmiro Pedro Welter 29:
A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.
Da mesma forma Adalgisa Chaves designa os filhos de criação como ocorrendo nos casos em que alguém adota informalmente outrem, passando-o a tratá-lo como filho e apresentá-lo em sociedade como tal, embora não tenha sido providenciada a regularização do vínculo. 30
Neste mesmo sentido, Maria Berenice Dias 31 disciplinou brevemente o assunto, apresentando inclusive críticas à expressão "filho de criação":
A partir do momento em que passou a vigorar o principio da proteção integral, a filiação não merece designações discriminatórias. A palavra filho não admite qualquer adjetivação. [...] A pejorativa complementação ‘de criação’ está mais que na hora de ser abolida.(DIAS, 2006 p. 398)
A expressão "filho de criação" apesar de soar com certo tom discriminatório, tem o condão de mostrar seus contornos, sendo assim utilizado popularmente, bem como pala jurisprudência e doutrina.
Outros termos como adoção de fato, adoção tácita ou guarda de fato, vêm sendo empregados por alguns autores.
Essa ligação entre o "filho de criação" e seus pais se origina sempre pela socioafetividade, possuindo em certos casos, efeitos mais verdadeiros e concretos que a ligação biológica.
Assim, não se deve levar em consideração o motivo pelo qual esse filho foi acolhido pela família, pois o que realmente importa é a reciprocidade do afeto na relação de filiação.
7.1. O reconhecimento dos "filhos de criação".
Apesar de nossa legislação civil ter sido há pouco tempo reformulada, acrescida ao fato da figura do "filho de criação" ter grande ocorrência em nossa sociedade, tal relação carece de uma tutela capaz de assegurar-lhe garantias jurídicas mais concretas.
Assim, diante da inexistência explícita de uma proteção à figura dos "filhos de criação", cada ato que necessitam praticar causa-lhes grande insegurança jurídica.
Fundamentos para que o reconhecimento dos direitos desses filhos sejam efetivados não faltam, tanto os de ordem legal quanto os de ordem principiológica, jurisprudencial e doutrinária.
Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade na filiação, insculpidos no art. 1º, inc. III 32 e art. 227, § 6º 33, respectivamente, fornecem embasamento legal para esses filhos marginalizados perante o direito tenham essa situação reconhecida. O reconhecimento assegurar-lhes-iam todos os direitos pessoais e patrimoniais atinentes à qualquer filho registral.
Além de tal relação ser amparada por diversos princípios constitucionais, diversos outros fundamentos infraconstitucionais também a tutelam.
O artigo 1.593 do Código Civil dispõe que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem".
A expressão "outras origens" criou a possibilidade de se construir um conceito jurídico de filiação em sentido amplo, tornando possível o enquadramento da paternidade afetiva nessa brecha deixada pelo legislador.
Ainda nesse diapasão, Belmiro Welter 34 afirma:
Ser possível fundamentar a paternidade afetiva também no artigo 1596, que ratifica a igualdade constitucional prevista para a filiação; art. 1.597, V, que aceita a paternidade simplesmente sociológica nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga; restando ainda a hipótese prevista no art. 1.605, II, no que diz respeito à prova da filiação derivada da posse de estado de filho afetivo.
Ademais, o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".
Cediço é que a situação dos "filhos de criação" é prática mais que comum na sociedade brasileira, permitindo assim, diante da omissão da lei, decisões fundadas nesse costume.
Importante ressaltar também que os filhos de criação já tem alguns direitos expressamente reconhecidos, segundo o entendimento do Tribunal de Contas da União, que considerou a guarda de fato para fins previdenciários, ao tratar da pensão militar, na súmula 116 35.
Assim, a ação de investigação de paternidade seria uma possibilidade do filho pleitear judicialmente seu reconhecimento, fundando-se a prova na posse de estado de filho, através da afetividade.
Para Belmiro Welter 36, "é cabível a propositura de uma ação de investigação de paternidade/maternidade em que a causa de pedir seja a filiação afetiva, sendo desnecessária qualquer legislação infraconstitucional para seu ajuizamento".
Diante da necessidade de regular essa situação, a jurisprudência começa a se posicionar no sentido de reconhecer os "filhos de criação", através de diversos tipos de ação propostas sendo pioneiros os seguintes julgados:
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO.APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70008795775 COMARCA DE PORTO ALEGRE
APELAÇÃO CRIME - FURTO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - DELITO PATRIMONIAL – ESCUSA ABSOLUTÓRIA - FILHA "DE CRIAÇÃO" – FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA - PARENTESCO CIVIL CARACTERIZADO - EXEGESE DOS ARTS. 1.593. DO CÓDIGO CIVIL, 181, II DO CÓDIGO PENAL E 227, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - EXCLUSÃO DA PUNIBILIDADE SOMENTE DA RÉ (ART. 183. DO CP) - INEXISTÊNCIA DE RECURSO DA ACUSAÇÃO - SÚMULA 146 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PENA INFERIOR A UM ANO - PRESCRIÇÃO - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 109, VI E 110, § 1º DO CÓDIGO PENAL - DECURSO DE LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A DOIS ANOS ENTRE A DATA DA PRÁTICA DO DELITO E A DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - PRESCRIÇÃO RETROATIVA - EXCLUSÃO E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DA RÉ E DO RÉU, RESPECTIVAMENTE - RECURSO PREJUDICADO. .
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná APELAÇÃO CRIME nº 342.796-7, DA COMARCA DE ARAPONGAS - VARA CRIMINAL E ANEXOS.