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A teoria da ação de Liebman e sua aplicação recente pelo Superior Tribunal de Justiça.

Alguns aspectos dogmáticos da teoria da asserção

Agenda 30/06/2009 às 00:00

I – Colocação da questão por Liebman

Apesar da existência de inúmeras teorias para se explicar a ação, desde a imanentista (a todo direito material estaria imanente um direito de ação), passando pelas teorias concretas ou concretistas (o direito de ação seria um direito subjetivo, público, autônomo a uma sentença favorável – Rechtsshutzanspruch: pretensão a uma tutela jurídica), pelas teorias abstratas (o direito de ação seria um direito subjetivo, público, autônomo a uma sentença; independente do conteúdo, mas, para alguns, como Alexander Plósz, dependente da boa fé do autor), ainda pela teoria de Elio Fazzalari, da situação jurídica composta [01] (FAZZALARI, 1957) e chegando às teorias constitucionais (que buscam uma análise do direito de ação visando um amplo acesso à justiça com a criação de técnicas idôneas a ofertar uma aplicação eficiente do direito material e a defesa adequada dos direitos fundamentais), percebe-se que este tema não é consolidado no estudo processual.

Alguns chegam a afirmar que quase todo processualista se propõe a delinear uma perspectiva "própria", "única".

No entanto, para os objetivos do presente breve ensaio o maior interesse seria o delineamento da teoria idealizada por Enrico Túlio Liebman, italiano que viveu no Brasil durante a década de 1940, deixando raízes profundas em nosso país. [02]

Sua teoria, chamada de eclética por possuir caracteres próprios de duas linhas teóricas (a abstrata e a concretista), foi divulgada inicialmente em palestra realizada em 1949, na Universidade de Turim.

Segundo Liebman a essência da ação se encontra na relação que ocorre no ordenamento jurídico entre a iniciativa dos particulares e o exercício em concreto da jurisdição, deste modo o juiz deva determinar de acordo com as normas que regulam sua atividade o conteúdo positivo ou negativo do provimento final. Segundo o jurista qualquer um que abandone os dois aspectos do problema corre o risco de idealizar uma teoria do processo que desconsidere o processo (LIEBMAN, 1950, p. 53).

Apesar do fato da ação tender a produzir efeitos em relação à contraparte (réu) não se poderia negar que ela possui como objeto imediato o provimento (decisão) e se dirige a quem deve pronunciá-lo na qualidade de órgão do estado.

Assim a ação seria para Liebman um direito ao meio e não ao fim, em face de dois motivos: a) a lei confere o direito ao cumprimento dos atos destinados a atuar a tutela jurídica, mas não garante o êxito de seu exercício, eis que o conteúdo concreto do provimento depende de condições objetivas de direito material e processual e da apreciação que o juiz fará delas, condições estas que fogem do controle do autor. Estas ponderações, segundo o autor também se aplicam ao processo de execução. B) A lei não reconhece ao particular o poder de impor à parte contrária o efeito jurídico almejado, mas, sim, ao Estado que atribui ao particular o direito de provocar aquela atividade de modo a impedir no sistema processual atual, face à igualdade dos cidadãos, a utilização do exercício particular das próprias razões (LIEBMAN, 1950,p. 54).

A teoria de Liebman considera a ação um direito autônomo que pode ser exercitado nos casos em que o seu titular não possui um verdadeiro direito subjetivo substancial para fazer valer, mas identifica ainda a ação com a relação jurídica substancial existente entre as partes perfilada em uma particular direção, pois dirigida a atuar no processo (LIEBMAN, 1950, p. 55.)

O direito de ação constitucional, genérico e abstrato, sempre segundo Liebman, tem o seu lugar bem definido no direito constitucional e possui importância fundamental (direito de petição). Entrementes, em sua abstração e indeterminação, esse não possui relevância alguma na vida e no funcionamento prático do processo, pois o atribuindo a qualquer um em qualquer hipótese não permite no caso concreto a determinação da interdependência do processo com a fattispecie (direito material) pela qual este é proposto (LIEBMAN, 1950, p. 63)

Liebman então passa a analisar a atividade que forma o processo e as normas que o disciplinam. Afirma que o conteúdo e os efeitos destas normas instrumentais se diferenciam das substanciais e regulam os modos e as formas dos atos do processo criando, coordenando e conferindo posições subjetivas juridicamente relevantes para o cumprimento de um ou outro destes (LIEBMAN, 1950, p. 64)

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Atribui à ação a índole de direito subjetivo instrumental, mas não de natureza obrigatória, afastando a perspectiva de relação civilística. A ação é direcionada contra o titular do poder jurisdicional, o Estado, sendo o direito à jurisdição, um direito de impulsionar e de iniciativa ao desenvolvimento de uma função que também é de interesse do Estado. Apesar de somente ao autor interessar a propositura da ação, uma vez proposta este interesse passa parcialmente a coincidir com o do Estado em prover sobre aquele (LIEBMAN, 1950,p. 65).

Assim, o autor constrói a essência de sua teoria eclética. Segundo ele a ação "se refere a uma fattispecie determinada e exatamente individuada, e é o direito a obter que o juiz proveja ao seu respeito, formulando (ou atuando) a regra jurídica especial que a governa. Ela é por isso condicionada a alguns requisitos (que devem verificar-se caso por caso em via preliminar), vale dizer ao interesse ad agire, que é o interesse do autor a obter o provimento demandado; à legitimazione ad agire, que é a competência (atribuição) da ação a aquele que a propõe e em confronto com a contraparte; e à possibilidade jurídica, que é a admissibilidade, em abstrato, do provimento requerido, segundo as normas vigentes do ordenamento jurídico nacional. Faltando uma destas condições, se tem aquilo que, com exata expressão tradicional, se qualifica carência da ação, e o juiz deve refutar de prover sobre o mérito da demanda. Neste caso não se tem verdadeiro exercício da jurisdição, mas, somente uso das suas formas para fazer aquela avaliação preliminar (confiada aos magistrados) que serve a excluir de início aquelas causas nas quais estão defeituosas as condições que são requeridas para o exercício do poder jurisdicional" (LIEBMAN, 1950, p. 66).

Para o autor a ação e a jurisdição são correlatas não ocorrendo uma sem ocorrer a outra (LIEBMAN, 1950, p. 66).

Aspecto importante a ser lembrado é que Liebman a partir da terceira edição de seu Manuale di diritto processuale civile, de 1973, face à entrada em vigor da lei 898 de 01-12-1970 acabando com o divórcio, cuja hipótese (vedação legal do divórcio) conduziu o delineamento da condição da ação da possibilidade jurídica, passou a excluí-la como condição autônoma e a englobá-la conjuntamente com o interesse de agir.


II - Ação em Liebman – Teoria eclética – Aspectos sintéticos

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Para se obter uma sentença de mérito há necessidade de se demonstrar a matéria de processo [pressupostos processuais: I) De existência- elementos necessários para que o procedimento em contraditório se instaure: a) Existência de órgão jurisdicional e de partes; II) De validade: a) Competência, b) Imparcialidade, c) Originalidade da demanda – ausência de litispendência e coisa julgada, d) Capacidade de ser parte, de estar em juízo (legitimatio ad processum) e postulatória] e matéria de ação (condições de ação).

As três condições da ação precisam ser alegadas e demonstradas pelo autor; a constatação de sua ausência, em qualquer momento ou grau de jurisdição, conduz ao proferimento de uma sentença processual (terminativa), com a extinção do procedimento sem a resolução do mérito;

As três condições da ação constituem a parte concretista da perspectiva de Liebman, em face da necessidade de sua demonstração pelo autor no curso da demanda; constituiriam um elo do direito processual com o direito material;

As três condições da ação são requisitos constitutivos da ação. São as seguintes: a) Legitimação de agir: é a titularidade ativa e passiva da ação; os sujeitos vinculados entre si por uma relação jurídica material. Ex. credor e devedor; b) Interesse de agir: decorre da necessidade e adequação na utilização da ação; c) Possibilidade jurídica do pedido: ausência de vedação expressa de realização do pedido no ordenamento nacional; Liebman a idealizou por força da proibição de divórcio àquela época na Itália; recentemente, o Superior Tribunal de Justiça analisou questão interessante acerca dessa terceira condição da ação: O agrônomo brasileiro Antônio Carlos Silva propôs ação em face do canadense Brent James Townsend para declarar a existência de união estável entre eles e dividir o patrimônio adquirido pelo "casal" durante o relacionamento. O casal propôs a ação de reconhecimento da união na 4ª Vara de Família de São Gonçalo (RJ) alegando que eles viveram juntos quase 20 anos de forma duradoura, contínua e pública. O pedido não foi analisado no mérito, eis que o juiz extinguiu o procedimento sem resolução do mérito, por entender faltar a possibilidade jurídica do pedido no Brasil. O casal recorreu para o TJRJ, que manteve a decisão de primeiro grau. No entanto, desta decisão do TJRJ o casal recorreu para o STJ que reformou (alterou) a decisão permitindo e ordenando que o juízo de primeiro grau analisasse o mérito. Afirmou-se que a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. E que a despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito.

Já no mérito [lide (conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida); complexo de questões; pretensão processual; lide nos limites do pedido] a teoria eclética seria abstrata, eis que independe se o juiz acolher (julgar procedente o pedido) ou negar (julgar improcedente o pedido) a demanda, o simples fato de ser possível a análise deste já representaria o pleno exercício da ação para seu autor;

Da análise de inúmeros dispositivos do Código de processo civil se constata a adoção da teoria de Liebman (confira: Arts. 2º, 3º, 6º, 267, entre outros)


III - Teoria da Asserção Ou Prospecção – Interpretação Diferenciada das Condições da Ação de modo a subsidiar maior Aproveitamento Processual – Tendência de aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça Brasileiro

No que diz respeito às condições da ação, afirma-se que a teoria de Liebman seria uma teoria da exposição ou apreciação, de forma que a presença das condições deveria ser comprovada pelo autor. Nesses termos, em inúmeras situações, o processo terminaria sem uma análise do mérito, ou seja, sem apreciação de seu objeto, daquilo para o que se propôs o procedimento.

A atividade processual, nesses moldes, teria sido inútil, e a sentença judicial (terminativa) não inviabilizaria a propositura de nova demanda, envolvendo o mesmo objeto litigioso.

Em face dessa constatação e buscando um maior aproveitamento da atividade processual se delineou a teoria da asserção ou da prospecção (prospettazione), na qual a verificação da presença das condições da ação se dá à luz das afirmações feitas pelo autor na petição inicial, independentemente de sua comprovação durante o processo.

Isso conduz à seguinte situação:a ausência de condição da ação para Liebman (condição não comprovada pelo autor) conduz a extinção do processo sem resolução do mérito (com o proferimento de uma sentença terminativa), mesmo que esta se dê após o julgamento do mérito (sentença definitiva), em grau de recurso, uma vez que as condições podem ser analisadas e demonstradas em qualquer momento e grau de jurisdição, conduzindo assim, à anulação da sentença definitiva; já para a teoria da asserção, as condições da ação serão analisadas com base tão-somente nas alegações feitas pela parte na peça de ingresso (petição inicial do autor), deste modo as matérias referentes à legitimidade, interesse e possibilidade jurídica serão analisadas junto com o mérito, o que conduz, caso não estejam presentes, à improcedência do pedido, sentença de mérito (definitiva), em qualquer momento ou grau de jurisdição, ou seja, no tribunal ocorrerá, assim, a reforma (não anulação) da sentença de mérito.

A discussão em torno da aplicação dessa teoria no Brasil é tormentosa. Mas existem precedentes no STJ, com sua adoção, e afirmando que "as condições da ação são vistas in status assertionis ("Teoria da Asserção"), ou seja, conforme a narrativa feita pelo demandante, na petição inicial" [03] deste modo "se o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações contidas na petição, após esgotados os meios probatórios, terá, na verdade, proferido juízo sobre o mérito da questão." [04]

Em recente precedente, o Superior Tribunal de Justiça afirmou que "se mostra saudável a lembrança de que a doutrina moderna, bem como, em decisões recentes, também o Superior Tribunal de Justiça, têm entendido que o momento de verificação das condições da ação se dá no primeiro contato que o julgador tem com a petição inicial, ou seja, no instante da prolação do juízo de admissibilidade inicial do procedimento. Trata-se da aplicação da teoria da asserção, segundo a qual a análise das condições da ação seria feita à luz das afirmações do demandante contida em sua petição inicial. Assim, basta que seja positivo o juízo inicial de admissibilidade, para que tudo o mais seria decisão de mérito". [05]

De modo "que a interpretação literal do art. 267, § 3º do CPC leva a entender que o preenchimento das condições da ação pode ser averiguado a qualquer tempo e grau de jurisdição. No entanto, a aplicação literal e irrefletida da literalidade do enunciado normativo, neste particular, gera, muitas vezes, consequências danosas, tal qual a extinção do processo sem julgamento do mérito após longos anos de embate processual."


notas

  1. FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957.
  2. LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano: Giuffrè. Anno IV, 1950.
  3. STJ, 2T, Resp. 470.675/SP , Rel. Min. Humberto Martins, j. 16/10/2007 , p. DJ 29/10/2007.
  4. STJ, 3T, Resp. 832.370/MG , Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 02/08/2007 , p. DJ 13/08/2007.
  5. STJ, 2T, REsp 879188/RS, Rel. Humberto Martins, j. 21/05/2009, p. DJE 02/06/2009.
Sobre o autor
Dierle José Coelho Nunes

Doutor em Direito Processual (PUC Minas / Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professor Universitário da PUCMinas, da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e da UNIFEMM. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. Advogado militante. Autor dos livros: "Processo jurisdicional democrático" (Juruá, 2008), "Direito constitucional ao recurso" (Lumen Juris, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Dierle José Coelho. A teoria da ação de Liebman e sua aplicação recente pelo Superior Tribunal de Justiça.: Alguns aspectos dogmáticos da teoria da asserção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2190, 30 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13066. Acesso em: 23 nov. 2024.

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