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Aplicabilidade da ação civil pública na tutela do patrimônio genético humano

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Agenda 01/07/2009 às 00:00

De que adianta viver, senão para lutar por causas nobres e fazer deste mundo um lugar melhor para aqueles que viverão depois de nós? (WINSTON CHURCHILL).

Sumário: 1. Resumo 2. Introdução 3. O patrimônio genético humano como bem de interesse difuso 3.1 Genoma humano e patrimônio genético humano 3.2 Conceito e natureza jurídica de patrimônio genético humano 4. A tutela do patrimônio genético humano por meio da ação civil pública 4.1 Breves considerações sobre ação civil pública 4.2 Foro competente para apreciação da ação civil pública fundada em defesa do patrimônio genético humano 4.3 A tutela específica na ação civil pública de defesa do patrimônio genético humano 4.4 Efeitos da decisão proferida na ação civil pública de defesa do patrimônio genético humano 5. Conclusão 6. Referências.


1. Resumo

Este trabalho científico analisa aspectos de aplicabilidade da ação civil pública na defesa do patrimônio genético humano. Fornece conceito jurídico de patrimônio genético humano a partir da análise do seu aspecto individual (direito da personalidade) e coletivo (bem comum da humanidade). Define sua natureza jurídica como bem de interesse difuso, diante da indeterminação dos sujeitos. Esboça algumas considerações a respeito da ação civil pública, enfocando sua origem, nomenclatura e os legitimados à sua proposição. Estabelece o foro competente para a apreciação da ação civil pública de defesa do patrimônio genético humano. Prevê o cabimento da tutela específica nessas ações e indica os efeitos da decisão proferida. Por fim, sintetiza as conclusões mais relevantes sobre o tema, revelados por meio do estudo.


2. Introdução

O avanço da ciência nos últimos anos, sobretudo da genética com o sequenciamento do genoma humano, despertou o interesse de inúmeros autores a tratarem da proteção do patrimônio genético humano, como forma de garantir a perpetuidade da espécie humana, assim como a dignidade dos seus integrantes.

Ocorre que, apesar do assunto já se encontrar bem analisado no plano do Direito material, não existem muitas análises sobre a forma de sua proteção em sede processual, ou seja, muito se fala a respeito do patrimônio genético humano, sem, contudo, serem analisadas as formas de se garantir, processualmente, a defesa do genoma humano.

Nesse contexto é que reside o fundamento do presente trabalho científico que é o de demonstrar a aplicação da ação civil pública como meio eficaz de tutelar o patrimônio genético humano, a partir da análise dos seus institutos mais relevantes.

Pretende-se abordar o tema de uma forma mais prática, sem deixar de tecer consideração sobre a importância da proteção do patrimônio genético humano e os efeitos imprevisíveis de sua manipulação, para indicar o meio processual de protegê-lo.

A estratégia metodológica adotada constituiu-se na análise das informações obtidas no material pesquisado a respeito do patrimônio genético humano e da ação civil pública, selecionando os argumentos fundamentais existentes nas referências consultadas para atingir os objetivos propostos.

O trabalho está estruturado em dois capítulos.

O primeiro capítulo se dedica a fornecer informações técnicas necessárias para compreensão do que é patrimônio genético humano, estabelecendo seu conceito e natureza jurídica.

O segundo capítulo está centrado especificamente na proteção do patrimônio genético humano pela ação civil pública. Dispõe algumas considerações sobre a ação civil pública, como a origem da Lei que a instituiu, o motivo de sua nomenclatura e os legitimados ativos a promovê-la, enfocando a atuação do Ministério Público à frente dos demais legitimados.

Esse capítulo ainda trata dos aspectos processuais da ação civil pública de defesa do patrimônio genético humano. Estabelece o foro competente para seu processamento, a partir da análise conjunta das regras de competência estabelecida na Constituição Federal, na Lei da Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor. Demonstra o cabimento da tutela específica nessa ação, como forma de garantir a efetividade do processo e indica os efeitos da decisão proferida.


3. O patrimônio genético humano como bem de interesse difuso

O avanço da ciência, principalmente no decorrer do século XX, propiciou ao homem descobrir muitas coisas sobre sua evolução. A genética foi talvez o ramo que mais se desenvolveu nesse período.

Genética, do grego genno (fazer nascer) pode ser definida como a ciência dos genes, da hereditariedade e da variação dos organismos. É o ramo da biologia que estuda a forma como se transmitem as características biológicas de geração para geração [01].

Para Lílian Maria José Albano "o processo pelo qual as características individuais são passadas dos genitores para a prole de modo que todos os organismos, incluindo os seres humanos, assemelham-se a seus ancestrais é conhecido como genética". [02]

A genética estuda como as características hereditárias dos pais transmitem-se aos filhos, bem como a maneira como essas características interagem formando o novo ser vivo.

O ser humano é composto por trilhões de células. O cabelo, as unhas, o sangue, tudo no corpo é formado por células, e tudo tem início a partir de uma única célula chamada zigoto. O zigoto é formado pela união de um espermatozóide (proveniente do pai) e de um óvulo (proveniente da mãe) que ocorre no momento da fecundação.

Após a fecundação e a formação do zigoto, também conhecida por célula inicial ou célula ovo, essa célula sofre inúmeras duplicações até formar um novo ser humano.

Além de duplicar-se, a partir de certo momento da evolução, as células passam a diferenciarem-se formando os diversos tecidos e órgãos do corpo, como a pele, o estômago, o coração, os pulmões, etc.

Mas como ocorre essa formação? O que existe no zigoto que é responsável por tudo isso?

A célula humana é dividida em duas partes principais: o núcleo e o citoplasma. Dentro do núcleo existem 22 pares de cromossomos classificados por ordem de tamanho, sendo o de número 1 o maior e o 22 o menor, além de um par de cromossomos ligados à determinação do sexo.

As células sexuais, também conhecidas por células germinativas, são exceções à regra, uma vez que possuem apenas um par de cromossomos, ou seja, em seus núcleos existem apenas 23 cromossomos e não 46 como nas células somáticas (todas as células do organismo não germinativas).

Essas células são os espermatozóides, no homem, e os óvulos, na mulher. Elas possuem apenas um par de cromossomos porque no momento da fecundação ocorre a união desses cromossomos, formando pares com um cromossomo do pai e um cromossomo da mãe, que dão origem ao zigoto contendo 46 cromossomos, metade herdada do pai e metade da mãe.

Os cromossomos são formados por genes [03]. Cada gene ou conjunto deles é responsável por uma instrução, uma atividade no organismo, por exemplo: quando uma pessoa sangra é necessária a interação de instruções de pelo menos dez genes para fazer o sangue coagular; da mesma forma, para o funcionamento do sistema auditivo humano é necessária a interação de mais de 200 genes para o seu funcionamento normal. [04]

O projeto genoma humano, cuja primeira etapa foi encerrada em 26 de junho de 2000, constatou que o ser humano possui em torno de 35 mil genes. [05] Isso significa que em cada célula humana existem 35 mil genes, os quais estão divididos entre os 23 cromossomos. Os genes podem ser comparados a uma imensa enciclopédia dividida em 23 volumes, os cromossomos.

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O conjunto de genes do ser humano constitui o seu genoma. [06] Assim pode-se conceituar o genoma como "o conjunto das informações genéticas de cada ser vivo" [07]ou "o conjunto completo de genes de um organismo" [08].

Cada gene, por sua vez, é formado por bases nitrogenadas. Existem quatro bases nitrogenadas: adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T). O genoma humano é formado por aproximadamente três bilhões de As, Cs, Gs, e Ts [09].

Endlich compara o genoma humano como um texto escrito com um alfabeto de somente quatro letras (A, C, G e T):

Assim, da mesma forma que com 26 letras se escreve toda a literatura, somente com quatro letras estão escritos todos os textos biológicos, desde um humilde vírus até os grandes dinossauros e até mesmo o ser humano, porque todos os seres compartilham do mesmo material genético, como todas as obras literárias têm o mesmo alfabeto. [10]

O conjunto dessas bases nitrogenadas constitui o DNA (ácido desoxirribonucléico). Cada cromossomo é um pedaço de DNA composto de 40 a 250 milhões de bases A, C, G e T [11]. Dentro do cromossomo essas bases se unem da seguinte forma: adenina se une a timina e citosina se une a guanina. O DNA pode ser entendido como uma fita contendo determinada sequência de bases nitrogenadas unida à outra fita contendo a sequência se bases correspondentes, para cada adenina de um lado sempre existirá uma timina do outro, valendo o mesmo para a citosina e a guanina. Esse é o modelo da dupla hélice da molécula de DNA. [12]

Christian de Paul de Barchifontaine tece a seguinte comparação entre o genoma e um livro:

Se o genoma fosse um livro, os componentes do DNA seriam as letras, os genes as palavras, os cromossomos os capítulos, o DNA o texto, e o homem seria uma coleção de 100 trilhões de livros, pois o organismo humano é constituído por 100 trilhões de células, cada uma delas contendo uma cópia completa do genoma do indivíduo. [13]

Toda a célula humana possui o conjunto completo de genes (em torno de 35 mil), formado a partir do zigoto. Lygia da Veiga Pereira explica que:

(...) cada vez que essa célula se divide em duas, quatro, até formarem os trilhões de células que compõem uma pessoa, esse genoma é copiado para as células filhas. Assim, cada uma de nossas células contém uma cópia completa do nosso genoma. [14]

Questiona-se: se toda célula possui a genoma completo, por que umas agem diferente das outras?

Todas as estruturas das células do corpo humano são formadas por proteínas, "são então as proteínas que vão formar e dirigir a formação e o funcionamento do organismo". [15] E essas proteínas são formadas a partir das instruções que partem dos genes.

Dentro do núcleo da célula, sempre que necessário, o DNA duplica um trecho de sua molécula (contendo um ou alguns genes) que são transportados até o citoplasma pelo RNA (ácido ribonucléico) que com a ajuda das organelas ribossomos traduzem a informação contida no(s) gene(s) em uma proteína, que será a responsável pela tarefa designada pelo DNA.

Dessa forma, apesar de todas as células terem o genoma completo, o DNA estabelece quais genes atuarão em cada tipo celular, formando proteínas específicas para determinadas funções do organismo.

Descobrir as funções de cada gene e a estrutura de cada proteína que eles codificam é o próximo passo do Projeto Genoma Humano, não tão simples como descobrir a sequência de bases, pois existe grande interação entre os genes na produção das proteínas, além do que uma proteína pode ser formada por diferentes genes e genes iguais podem formar diferentes proteínas.

O genoma possui toda a informação genética da espécie, mas o genoma de cada indivíduo é único, irrepetível. Por quê?

A célula germinativa do pai possui suas informações genéticas, contendo suas características individuais (cor da pele, dos olhos, altura). Também na célula germinativa da mãe, existem os genes referentes a suas características individuais (cor da pele, dos olhos, altura). A partir da união do espermatozóide com o óvulo, há então a formação de um novo genoma, com as características do pai e da mãe.

O indivíduo possui em sua célula duas versões de cada gene (uma proveniente o pai e outra da mãe), e dependendo da natureza de cada uma das versões, o efeito de uma irá dominar ou complementar o efeito da outra. [16]

Essas versões podem ser idênticas (AA, aa), ou levemente diferentes (Aa), podendo ainda existir diferentes versões de instrução dentro de um mesmo gene (A, A1, A2, a, a1, a2), os chamados alelos do gene. Dependendo do tipo de proteína produzido por esses genes, uma ou outra versão prevalecerá, por isso que os filhos apresentam algumas características paternas e outras maternas.

Como essa interação entre as versões dos genes e dos alelos ocorrem em todos os aproximadamente 35 mil genes do genoma humano, é certo afirmar que não existem duas pessoas geneticamente idênticas, com exceção dos gêmeos univitelinos. [17]

Além das características genéticas (genótipos), não se pode olvidar da influência, mesmo que pequena, do meio ambiente na formação das características dos indivíduos (fenótipos), o que aumenta ainda mais a diversidade existente na humanidade.

Por isso que Lygia da Veiga Pereira, concluiu que:

(...) cada pessoa é um ser único, inédito, com um genoma único e também inédito. A composição da nossa receita a partir de uma metade paterna e outra materna cria variações da receita, mistura o patrimônio genético da humanidade, gerando a admirável diversidade que faz a espécie humana tão interessante. [18]

Endlich, no mesmo sentido dispõe que:

(...) o genoma é o elemento que distingue cada organismo vivo, sendo que dentre os membros de uma mesma espécie cada indivíduo possui características genéticas únicas e irrepetíveis, que formam o patrimônio genético, que é influenciado de certa forma pelo ambiente. [19]

Diante da importância do genoma humano, uma vez que ele detém toda a informação genética do indivíduo, surge a necessidade de protegê-lo de eventuais interferências provocadas pelo homem. O genoma humano confunde-se com o patrimônio genético humano já que este é entendido como "o conjunto de elementos que formam o ácido desoxirribonucléico – ADN – que contém a informação genética que caracteriza um organismo". [20]

As interações que ocorrem entre os genes formando proteínas, estão sujeitas a mutações. Essas mutações ocorrem naturalmente, podendo provocar ou não doenças ao indivíduo. Grande parte das mutações naturais que ocorrem na célula não causa nenhum tipo de problema, isso porque proteínas idênticas podem ser formadas por instruções de diferentes genes.

Outras mutações genéticas causam problemas ao desenvolvimento normal do organismo, por exemplo: a Síndrome de Down ou trissomia do cromossomo 21 é causada por uma mutação genética ocorrida no momento da fecundação e transmitida para todas as demais células do corpo (a pessoa com Síndrome de Down possui um cromossomo 21 a mais em suas células); já a Síndrome de Edwards é provocada pela trissomia do cromossomo 18, que causa retardo mental, atraso no crescimento, além de malformação grave do coração e crânio. [21]

Existem mutações genéticas que já podem ser provocadas pelo homem. O grande interesse do Projeto Genoma Humano em identificar por meio de quais genes cada proteína do corpo é formada, reside justamente na possibilidade de interferência na produção das proteínas e consequentemente nas características do indivíduo.

Com isso, o homem poderia prevenir determinadas doenças, uma vez que ao diagnosticá-las, já saberia qual a proteína que está sendo criada de forma irregular e quais os genes responsáveis por sua formação, atuando para corrigir esses genes. Da mesma forma, ele poderia determinar as características do indivíduo como a cor dos olhos, da pele, a altura, pois saberia qual o gene a ser modificado, bem como qual alteração deveria provocar nesse gene para obter a característica desejada.

Essa interferência do homem em seu genoma é chamada de manipulação genética. Seguindo a classificação de Endlich, divide-se a manipulação genética em: 1) manipulação genética terapêutica – terapia gênica; e 2) manipulação genética não-terapêutica. [22]

Segundo referida autora:

Adota-se essa classificação por abranger todas as formas de alteração e níveis de intervenção no patrimônio genético, seja com o objetivo de cura e prevenção de enfermidades de origem hereditárias (terapia gênica), seja com finalidade exclusivamente científica (seleção genética, clonagem e hibridação). [23]

A terapia gênica "consiste na transferência deliberada de material genético para as células de um paciente com a intenção de curar ou prevenir uma enfermidade". [24] Ela pode ser feita tanto nas células somáticas, quanto nas germinativas. A terapia gênica realizada nas células somáticas produz modificações apenas no indivíduo, extinguindo-se com sua morte, já as alterações provocadas pela terapia gênica em células germinativas, transmitem-se aos descendentes. [25]

Paulo Vinícius e Sporleder de Souza esclarecem que:

Nota-se que embora o procedimento seja basicamente o mesmo para ambas intervenções, elas se diferenciam quanto ao sujeito que será objeto da intervenção, pois, enquanto a terapia gênica somática restringe-se ao próprio indivíduo experimentado, a terapia gênica germinativa afeta, além do indivíduo envolvido com a intervenção, a sua descendência que, assim, adquirirá e incorporará as modificações genéticas introduzidas pela engenharia genética efetuada. Isso implica dizer, noutras palavras, que, enquanto a terapia gênica somática incide em ações sobre o genoma não hereditário, na terapia gênica germinal, a intervenção, além daquele, afeta o genoma hereditário do ser humano tendo efeito, portanto, sobre as gerações vindouras. [26]

Essa técnica objetiva tratar os pacientes não com medicamentos, mas "modificar a estrutura genética das células para que estas cumpram adequadamente sua função, ou seja, aquela para a qual estão destinadas e que, por falhas na informação hereditária, não puderam se desenvolver". [27]

Já as técnicas de manipulação genética não terapêuticas, entendendo-se assim aquelas que não visam "eliminar, tratar ou prevenir enfermidades genéticas", [28] possuem exclusivamente fins científicos, como a clonagem [29] e a seleção genética. [30]

Expostas às noções preliminares sobre o patrimônio genético humano, será definido a seguir o seu conceito e sua natureza jurídica.

3.2 Conceito e natureza jurídica de patrimônio genético humano

Conforme já explicitado, do ponto de vista biológico, o patrimônio genético humano é o conjunto de genes contendo toda a informação genética do indivíduo, que compõem o seu DNA (ácido desoxirribonucléico).

Stela Marcos de Almeida N. Barbas conceitua o patrimônio genético humano como:

(...) o universo de componentes físicos, psíquicos e culturais, que começam no antepassado remoto, permanecem constantes, embora com naturais mutações ao longo das gerações, e que, em conjunção com fatores ambientais e num permanente processo de interação, passam a constituir a nossa própria identidade e que, por isso, temos o direito de guardar e defender depois de transmitir. [31]

Além do aspecto individual, também dever ser observado o âmbito coletivo do patrimônio genético humano, uma vez que sua estrutura é igual para todos os membros da espécie humana (homo sapiens).

Por isso, pode-se dizer que existem duas faces do patrimônio genético: uma individual, que ocorre através da interação entre os genes herdados dos progenitores, formando um ser único e inédito; e outra coletiva, já que a estrutura genética contida do DNA é igual para toda a humanidade.

Para se chegar a um conceito jurídico de patrimônio genético humano, deve-se analisar tanto seu aspecto individual quanto coletivo.

Individualmente, o patrimônio genético humano deve ser considerado como direito da personalidade do indivíduo. Segundo Femenía Lopes, as características genéticas de um indivíduo formam o seu "patrimônio" [32] que será transferido a seus descendentes a título de "herança". [33]

Goffredo da Silva Telles Junior define personalidade como sendo "o conjunto dos caracteres próprios de um determinado ser humano. É o conjunto dos elementos distintivos, que permitem, primeiro, o reconhecimento de um indivíduo como pessoa e, depois como uma certa e determinada pessoa". [34]

Para Miguel Reale [35], os direitos da personalidade "são todos aqueles que constituem elementos componentes intangíveis da pessoa, de conformidade com as conquistas do processo histórico-cultural que assinala o progresso da sociedade civil, em constante correlação complementar com a instituição estatal". [36]

Desse modo, o patrimônio genético humano, como direito da personalidade, é considerado integrante da categoria dos direitos fundamentais do indivíduo, devendo ser resguardado, assim como o direito à vida, à liberdade, à imagem, à privacidade, ao nome, etc.

Endlich conceitua patrimônio genético humano, sob o prisma individual, como sendo:

(...) direito da personalidade, de titularidade individual, sem cunho patrimonial, e compreende o conjunto de informações genéticas de cada indivíduo (identidade genética), passível de transmissão hereditária para os seus descendentes, e que representa a própria identidade do indivíduo como ser humano. [37]

Já do ponto de vista coletivo, o patrimônio genético humano é definido como bem comum da humanidade. A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu artigo 1º, considera o genoma humano como "unidade fundamental" de todos os indivíduos, sendo considerado "herança da humanidade".

De acordo com Endlich, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos "reconhece o genoma humano como patrimônio da humanidade, sendo que como patrimônio da humanidade devem ser considerados aqueles bens comuns, sem cunho patrimonial, que podem servir a todos sem deteriorar-se". [38]

Salvador Darío Bergel define bem comum como aquele que escapa à apropriação patrimonial e comercial, para ser objeto de uma gestão realizada em razão de sua origem e de um destino certo, categoria em que se enquadram a vida, o corpo humano e o genoma humano (essência do patrimônio genético humano). [39]

No aspecto coletivo, Endlich conceitua patrimônio genético humano como:

(...) bem comum da humanidade, sem cunho patrimonial, que corresponde ao conjunto das informações genéticas pertencentes à espécie humana, que são transmitidas ao longo das gerações, sujeitando-se a mutações em decorrência da evolução natural da espécie humana. [40]

Ao analisar o genoma humano apenas sob o aspecto individual, como direito da personalidade, poderia chegar à errônea conclusão de que o indivíduo pode dispor de seu patrimônio genético, tanto para fins terapêuticos quanto não terapêuticos. Ocorre que o patrimônio genético humano possui a informação genética da espécie e sua manipulação pode acarretar efeitos inimagináveis para as futuras gerações.

Nesse aspecto, Clotet salienta que o conjunto de genes é propriedade inalienável da pessoa, ao mesmo tempo em que é componente fundamental do patrimônio comum da humanidade, afirmando o autor que o genoma humano pertence à humanidade. [41]

No que tange o conflito entre a autonomia individual sobre o genoma e o direito à preservação de um bem comum da humanidade, referido autor tece o seguinte comentário:

O genoma humano constitui um valor em si próprio que comporta a dignidade do ser humano como indivíduo singular e a dignidade da espécie humana como um todo. O genoma humano, considerado de forma ora individual ora coletiva, deve ser respeitado e protegido. Cabe à pessoa, em virtude de sua autonomia como sujeito, decidir sobre a informação do próprio genoma, bem como sobre as intervenções terapêuticas e aperfeiçoadoras no mesmo, no que se refere às células somáticas. As intervenções nas células germinativas das pessoas, já que os seus efeitos serão transmitidos a seus descendentes, ultrapassa os limites da autonomia pessoal, pois trata-se do genoma humano como patrimônio da humanidade. Além disso, no tratamento das células germinativas, existe o perigo de confundir intervenção aperfeiçoadora com uma que meramente atende aos caprichos do proprietário desse tipo de célula, o que poderia resultar em danos irreparáveis para as gerações futuras e na criação de técnicas de exclusão social. [42]

Assim, apesar do aspecto individual, o genoma humano não pode ser objeto de livre negociação pelo indivíduo, pois a autonomia individual não pode sobrepor ao direito comum de manutenção e perpetuação da espécie humana. Diante disso, o direito ao patrimônio genético humano, assim como o direito à vida ou à dignidade humana, apesar de direitos personalíssimos da pessoa, são bens indisponíveis pelo indivíduo.

Definido o conceito jurídico de patrimônio genético humano, passa-se à análise de sua natureza jurídica.

Conforme já exposto, o patrimônio genético humano é considerado bem [43] comum [44] da humanidade. Conforme Femenía Lopes, o patrimônio genético é bem móvel [45] composto por uma parte corpórea [46] (os genes contidos no genoma) e outra incorpórea [47] (a informação contida no genoma) [48].

Corroborando com o entendimento do autor, Endlich conclui que "a natureza jurídica do patrimônio genético, sob o aspecto coletivo, engloba tanto o conjunto de genes que constitui o genoma humano (aspecto tangível), como a informação que esses genes transmitem (aspecto intangível)". [49]

Considerando o patrimônio genético humano como bem móvel pertencente a toda a humanidade, tanto no aspecto tangível quanto intangível, bem como que a preservação da espécie humana é interesse de toda humanidade, podendo inclusive limitar o direito que cada indivíduo possui sobre o seu genoma, conclui-se tratar de um bem de interesse [50] difuso.

A palavra interesse, segundo ensinamento de Adriana Diaféria, "é toda vantagem de natureza econômica ou moral que possibilita a ocorrência de uma relação entre um determinado bem e uma pessoa" [51]. Quando o conteúdo dessa relação é valorado através de uma norma legal, tem-se um interesse jurídico.

Assim, o interesse jurídico do patrimônio genético humano consta no artigo 1º, da Declaração Universal do Genoma e dos Direitos Humanos, que o trata como bem de "todos os membros da família humana" [52].

O caráter difuso do patrimônio genético humano reside na indeterminação dos sujeitos, todos, sem qualquer distinção, têm direito à integridade do genoma humano. Adriana Diaféria conceitua interesse difuso como "todo interesse que pertence a um número indeterminado de pessoas, portanto, considerado como transindividual (ou metaindividual), de natureza indivisível e ligado a seus titulares por uma circunstância de fato" [53].

A natureza indivisível do genoma humano fica evidente ao compará-lo ao meio ambiente, uma vez que tanto um quanto outro não podem ser repartidos entre determinadas pessoas, sem ferir o direito dos demais. A ligação fática existe, já que a constituição do organismo só é possível graças às informações contidas no genoma humano.

Ocorre que o genoma humano possui algumas peculiaridades que permitem classificá-lo como bem de interesse difuso especial. Essa designação é utilizada por Endlich, baseada nas seguintes peculiaridades: a) a agressão ao patrimônio genético, necessariamente pressupõe uma agressão ao um direito da personalidade; b) a agressão ao patrimônio genético afeta toda a humanidade e não apenas parcela dela; c) não são possíveis a utilização e apropriação do patrimônio genético humano, mesmo que de forma sustentável. [54]

Assim, o patrimônio genético humano é considerado bem de interesse difuso especial, tanto no seu aspecto físico (os genes presentes nas células) quanto no abstrato (a informação contida nos genes).

Sobre o autor
Carlos Alexandre Menchon Moura

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Especialista em Direito Processual Civil pela Unibrasil. Técnico Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná - TRE/PR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Carlos Alexandre Menchon. Aplicabilidade da ação civil pública na tutela do patrimônio genético humano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2191, 1 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13076. Acesso em: 23 dez. 2024.

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