Visando a eliminar as controvérsias e simplificar a votação dos quesitos no Tribunal do Júri, a Lei nº 10.689/2008 inovou na matéria. Com isso, solucionou parte dos problemas então existentes, mas findou por criar novas discussões.
No que tange ao questionamento de teses desclassificatórias e absolutórias, um posicionamento – que já se entendia superado – ressuscitou. De acordo com alguns doutrinadores, a lei nova autoriza a quesitação da absolvição antes mesmo de os jurados julgarem a desclassificação.
O entendimento não é novo, mas ganhou uma roupagem diferente e novos argumentos, diante das mudanças no procedimento.
Segundo a redação original do Código de Processo Penal, a ordem de quesitação era: (a) materialidade e autoria; (b.1) letalidade ou (b.2) desclassificação; (c) teses absolutórias; (d) causas de diminuição de pena; (e) qualificadoras; (f) atenuantes; (g) agravantes [01].
Uma corrente doutrinária entendia ser possível antecipar a votação das teses absolutórias em relação à desclassificação. O principal argumento era o de que assim seria conferida maior eficácia ao princípio constitucional da plenitude de defesa, na medida em que a absolvição proporcionaria resultado mais favorável ao réu do que a desclassificação.
A tese, entretanto, não recebeu amparo da ampla maioria da doutrina e da quase totalidade dos tribunais. Afinal de contas, se o acusado agiu sob o pálio de excludente de ilicitude ou de culpabilidade, ainda que desclassificada seja sua conduta, o juiz-presidente – competente para proferir a sentença – deverá reconhecer os motivos e o absolver. A desclassificação operada pelo Tribunal do Júri, por outras palavras, não serve de impeditivo para o reconhecimento da causa de absolvição.
Além do mais, e esse é um ponto fundamental, a determinação do bem jurídico violado pela conduta criminosa – vida ou integridade corporal, por exemplo – atua como questão preliminar, na medida em que implica a atribuição positiva ou negativa de competência ao Tribunal do Júri, o que – por seu turno – acarreta óbvio reflexo na incidência ou não dos princípios previstos nas alíneas do no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal.
Assim, para que se possa falar na incidência do princípio da plenitude de defesa, específico do Tribunal do Júri, é necessário que se tenha reconhecido tratar-se de um crime doloso contra a vida ou conexo.
Uma vez amainada a divergência, surgiram as modificações no rito do tribunal do júri, que fizeram reacender o debate.
O parágrafo 4º do art. 483 do Código de Processo Penal (nova redação) assim dispõe:
Art. 483. omissis.
§ 4º. Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2º (segundo) ou 3º (terceiro) quesito, conforme o caso
Doutrinadores logo se apressaram em considerar que a parte final do parágrafo dizia respeito exatamente à possibilidade de se antecipar o quesito absolutório (o jurado absolve o réu?) ao da desclassificação.
BADARÓ [02] opina:
Neste caso, portanto, o critério a ser seguido para a ordem dos quesitos deverá ser o da amplitude de tese defensiva e, por questão de lógica e de plenitude de defesa, a tese principal e mais benéfica ao acusado (por exemplo, legítima defesa) deve ser formulada antes da tese subsidiária e, portanto, menos ampla (por exemplo, desistência voluntária). Em suma, a ordem deverá ser: materialidade, autoria, absolvição e, se for o caso, tentativa.
CAMPOS [03] ratifica:
Se esta tese desclassificatória for única, deverá o seu quesito correspondente ser disposto após o segundo quesito (o que trata da autoria ou participação); se a tese desclassificatória for subsidiária (a principal, por exemplo, é a legítima defesa), o quesito que trata da desclassificação deverá ser redigido após o terceiro quesito (aquele que indaga ao jurado se o acusado deve ser absolvido). É o que dispõe o art. 483, parágrafo 4º, do CPP.
No entanto, basta uma leitura contextualizada dos novos dispositivos atinentes à quesitação para se descartar o ressuscitado posicionamento.
O parágrafo único do art. 482 do Código de Processo Penal diz:
Art. 482. omissis
Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão.
Como se vê, simplicidade e clareza foram expressamente guindados à categoria de critérios norteadores do juiz-presidente na elaboração do questionário que será submetido à deliberação dos jurados. Com isso, quesitos redigidos de forma obscura ou de modo complexo – abarcando mais de uma circunstância fática relevante –devem ser rechaçados, e poderão dar ensejo à ocorrência de nulidade processual.
Por outro lado, o próprio art. 483 do estatuto processual penal prevê a ordem de questionamento dos pontos que serão submetidos à apreciação dos juízes do povo:
Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I – a materialidade do fato;
II – a autoria ou participação;
III – se o acusado deve ser absolvido;
IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
É importante ressaltar que o dispositivo acima não trata da ordem ou mesmo da numeração dos quesitos, mas sim da ordem em que os pontos de fato (e o quesito absolutório) serão apresentados.
Quanto ao ponto materialidade, duas questões [04] poderão ser suscitadas.
A primeira questão, cuja quesitação é evidentemente obrigatória, diz respeito à ocorrência material do fato, ou seja, se, por exemplo, no dia, hora e local narrados na peça acusatória a vítima foi atingida por disparos de arma de fogo ou golpes de faca.
A segunda, exclusiva para os casos de crime consumado, atine à existência de nexo de causalidade entre a agressão perpetrada e o evento morte.
Ora, nas hipóteses em que qualquer das partes sustentar a ausência de nexo causal [05], o juiz-presidente, obedecendo aos critérios de simplicidade e clareza, deverá redigir um quesito específico e distinto acerca de tal questão, já que o reconhecimento da ocorrência material do fato não implica a afirmação de existência de nexo causal entre este e o resultado morte. Nesses casos, como é curial, o quesito desclassificatório virá após o 3º quesito [06].
Portanto, a ordem de apresentação dos quesitos não encontra nenhuma novidade legal, como pretendem os autores que a sustentaram. A parte final do § 4º do art. 483 do Código de Processo Penal quis dizer muito menos do que enxergou essa parte minoritária da doutrina, ainda insatisfeita com o entendimento vencedor.
E nem poderia ser diferente.
A tipicidade e, por consequência, o elemento subjetivo do tipo devem ser apreciados antes da antijuridicidade ou da culpabilidade. O contrário acaba por levar à ilogicidade de se deliberar pela ilicitude ou reprovabilidade de um comportamento sobre o qual juiz natural ainda não fez o juízo de adequação típica.
Apenas para ilustrar a incongruência, cabe aqui questionar como é possível ao julgador decidir se o meio usado pelo acusado para o exercício da defesa era necessário ou mesmo se houve moderação no seu uso quando ainda não houve sequer definição quanto à tipicidade de sua conduta.
Em conclusão, as inovações legais do rito do tribunal do júri não modificaram a ordem da votação, isto é, o modo lógico com que os fatos devem ser apreciados pelos jurados. O quesito desclassificatório deve continuar a ser deliberado antes das causas de absolvição.
Notas
- É de se notar que a inversão da ordem poderia comprometer o julgamento, diante da súmula n º 162 do STF, que anuncia: "É absoluta a nulidade do julgamento pelo júri, quando os quesitos da defesa não precedem aos das circunstâncias agravantes"
- BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Tribunal do Júri, in coord. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, As reformas no processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 207-208.
- CAMPOS, Walfredo Cunha. O novo júri brasileiro, São Paulo: Primeira Impressão, p. 229.
- Insta ressaltar que, sob a ótica processual, questão é todo ponto de fato ou de direito controvertido.
- Entendemos que o quesito atinente à existência de nexo causal será obrigatório somente se qualquer das partes sustentar sua ausência. Se não houver controvérsia quanto a tal ponto, ele será englobado pelo quesito da materialidade.
- Art. 483. omissis
§ 4º (...) para ser respondido após (...) o 3º (terceiro) quesito, se o caso.