Sumário: Introdução. 1 Prescrição quanto à efetivação realizada. 2 Efetivação com fulcro no art. 208 da CF/67. 2.1 Satisfação dos requisitos para a efetivação no cargo de titular. 2.2 A superveniência da CF/88 não impede a efetivação. 2.3 A proteção da confiança legítima. 3 Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre a situação dos titulares de serventias extrajudiciais que foram efetivados, vigente a nova Constituição, com fundamento no artigo 208 da Constituição Federal revogada.
Tem entendido o Conselho Nacional de Justiça que a efetivação com base no art. 208 da CF/67 afronta a exigência de realização de concurso público para ingresso no serviço notarial e de registro, nos termos do art. 236, § 3º, da Constituição Federal de 1988 e no art. 14 da Lei nº 8.935/94 (Lei dos Notários).
Por constituir tema delicado, envolvendo a sobrevivência de norma constitucional frente a uma nova ordem, importa considerar com cuidado os interesses em jogo. Tem lugar a reflexão sobre os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima. Trilhando esse caminho, espera-se trazer contribuição ao estudo do tema.
1 PRESCRIÇÃO QUANTO À EFETIVAÇÃO REALIZADA
Inicialmente, cumpre salientar que o eventual questionamento da efetivação no cargo de titular deve observar os prazos prescricionais. O Conselho Nacional de Justiça, ao exercer controle sobre os atos de provimento dos titulares em serventias extrajudiciais, atua como órgão administrativo, e não jurisdicional. Portanto, a competência para anulação de atos será exercida observado o prazo prescricional definido em lei.
O art. 1º do Decreto nº 20.910/32 [01] estabelece o prazo de cinco anos para a propositura de qualquer medida de controle de atos administrativos. O art. 54 da Lei nº 9.784/99 fixa também em cinco anos o prazo para a Administração Pública anular seus atos. Segue essa linha o art. 91 do Regimento Interno do CNJ, em seu parágrafo único, ao acatar o mesmo prazo quinquenal para a atividade de controle de atos administrativos.
Considerando que a prescrição é a regra geral no ordenamento jurídico pátrio – tendo em vista ser indispensável à preservação da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais –, os casos em que o instituto não se aplica devem ser tratados de forma expressa, eis que excepcionais. Nesse sentido, o art. 54 da Lei nº 9.784/99 ressalva as situações para as quais não se aplica o prazo decadencial de cinco anos – hipóteses de comprovada má-fé:
"Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé."
Assim, caso a efetivação na condição de titular de serventia revista-se pelo manto da boa fé, a mencionada exceção prevista no texto legal, não será aplicável; incide o princípio da prescritibilidade.
Há quem pretenda afastar a aplicação do prazo prescricional quando se trata de ato que viola diretamente norma constitucional. Aliás, essa é a estranha orientação do parágrafo único do art. 91 do Regimento Interno do CNJ, ao excluir a incidência da prescrição na hipótese de afronta direta à Constituição [02].
Todavia, o entendimento não pode ser acolhido. É que o ato de efetivação do serventuário, com base no art. 208 da CF/67, pode não configurar ofensa a dispositivo constitucional, como restará examinado. Por outro lado, a melhor doutrina admite a incidência da prescrição mesmo para a hipótese de inconstitucionalidade de ato normativo.
Caso a incompatibilidade com a Constituição remonte ao momento do nascimento do ato – hipótese da efetivação aventada – "parece mais razoável sustentar a prescritibilidade da pretensão" [03], como bem expressa Luís Roberto Barroso. O autor prossegue:
"Esse entendimento se afigura como o que melhor se harmoniza com o sistema jurídico brasileiro. De fato, em qualquer dos campos do direito, a prescrição tem como fundamento lógico o princípio geral de segurança das relações jurídicas e, como tal, é a regra, sendo a imprescritibilidade situação excepcional. […] O fato de não haver norma dispondo especificamente acerca do prazo prescricional em determinada hipótese não confere a qualquer pretensão a nota de imprescritibilidade." [04]
Nessa linha, entende-se aplicável, para o questionamento da constitucionalidade, o prazo definido no Código Civil, por ser o maior prazo prescricional ordinário adotado pela legislação: dez anos [05]. Também sob esse viés deve ser perquirida a prescrição da pretensão de desconstituir o ato de efetivação como titular de serventia extrajudicial.
O tema da prescrição tem sido tratado de forma frequente pelo Supremo Tribunal Federal.
O Ministro Cezar Peluso, no julgamento da medida cautelar do Mandado de Segurança nº 28.059-0/DF, constatou que entre (i) a decisão do Conselho Nacional de Justiça que considerou irregular o provimento em caso de remoção por permuta sem concurso público em serventias do foro extrajudicial e (ii) a edição do decreto judiciário referente à remoção por permuta de determinada titular de serventia já havia transcorrido mais de quinze anos. Então, pronunciou-se: "ao menos uma coisa vem sendo reiterada pela jurisprudência desta Corte. É que o lapso de tempo decorrido entre o ato declarado inválido e a decisão que assim o reputou é bem superior aos 5 (cinco) anos previstos na Lei nº 9.784/99, o que aparenta ofensa os subprincípios da confiança e da segurança jurídicas."
Destaca-se também a decisão no Mandado de Segurança nº 26.860/DF, em que o Relator Ministro Eros Grau salientou a existência de limites ao poder de revisão da Administração Pública, sendo um deles o limite temporal: "O Tribunal entendeu que a possibilidade de revogação de atos administrativos não pode estender-se indefinidamente. Esse poder anulatório deve sujeitar-se a um prazo razoável, mercê da estabilidade necessária às situações criadas administrativamente."
No MS nº 26.940/DF, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, constatou-se que os atos dos Tribunais de Contas que impugnavam movimentações de pessoal da ECT datavam de mais de dez anos após as ocorrências, o que se considerou ofensivo aos subprincípios da confiança e da segurança jurídicas. Tal entendimento da Corte sobre a prescrição tem sido reiterado em outros casos [06].
Portanto, deve ser reconhecida a prescrição da pretensão anulatória de provimento como titular em serventia extrajudicial caso já tenha transcorrido considerável lapso temporal desde a edição do ato questionado.
2 EFETIVAÇÂO COM FULCRO NO ART. 208 DA CF/67
Observada a possível prescrição do questionamento de efetivação realizada, cabe enfrentar a questão nuclear, ou seja, a compatibilidade de tal efetivação com a ordem constitucional vigente, considerando a exigência de realização de concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro.
2.1 Satisfação dos requisitos para a efetivação no cargo de titular
A Constituição Federal anterior, com alteração realizada pela Emenda Constitucional nº 22/82, dispunha em seu art. 208 sobre a efetivação no cargo de titular de serventias extrajudiciais e judiciais:
"Art. 208 - Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983."
Ao examinar a situação daquele que foi efetivado como titular nos termos do art. 208 da CF/67, deve-se examinar se poderia substituir o titular da serventia e se efetivamente o fez. Nesse ponto, cite-se, a título de exemplo, o disposto no art. 178 da Lei Estadual n° 7.297/80 (Código de Organização da Divisão Judiciária do Estado do Paraná):
"Art. 178. Os titulares de ofício serão substituídos, eventualmente, pelos respectivos oficiais maiores remanescentes e, na falta destes, pelo auxiliar de cartório, desde que juramentado, ou pelo empregado juramentado, ou por outro titular de Ofício da mesma comarca, designado pelo Juiz de Direito Diretor do Fórum."
Pois bem. Ao substituto, conforme a disposição constitucional antes referida, restou assegurada sua efetivação no serviço de registro, quando ocorrer a vacância, desde que tenha preenchido os seguintes requisitos: (i) investidura legal no cargo a que se atribui a substituição do titular da serventia e (ii) contar, até 31 de dezembro de 1983, com cinco anos de exercício na condição de substituto na mesma serventia.
Cumpre, portanto, examinar se o beneficiário do dispositivo estava legalmente investido na qualidade de substituto da serventia, bem como se substituiu, de fato, o titular do ofício. Ainda, deve-se constatar se a condição de substituto legal perdurou por mais de cinco anos. Caso essas exigências tenham sido satisfeitas, tem-se a incidência plena do disposto no art. 208 da CF/67, sendo indiscutivelmente assegurada, nesse caso, a efetivação no cargo de titular.
Garantido o direito à efetivação, seu exercício estava a depender apenas da vacância da titularidade, o que pode ocorrer, por exemplo, com o falecimento do titular do serviço. É preciso sublinhar que, na hipótese de as exigências fixadas pelo Constituinte anterior – a condição de substituto e o tempo de substituição – já terem sido satisfeitas, o direito do serventuário de ser efetivado estará assegurado, mesmo ocorrente a vacância sob a égide de nova ordem constitucional.
Julgados do Superior Tribunal de Justiça sustentam o entendimento esposado [07]. Conforme decisão do Recurso em Mandado de Segurança nº 10684/MT, "Preenchendo o substituto de serventia judicial os requisitos do art. 208, da CF de 1967, tem direito à efetivação na titularidade do cartório, ainda que a vaga tenha surgido após a Constituição Federal de 1988." [08]
Evidenciou-se no julgamento do Recurso Especial nº 219.556/SP que "O fato de a vacância do cargo dar-se apenas após a promulgação do novo texto constitucional não afasta a pretensão dos serventuários substitutos de assumirem a titularidade, se, à época, já possuíam os demais requisitos legalmente exigidos" [09]. Ainda, foi claro o acórdão relativo ao Recurso em Mandado de Segurança nº 1650/SP ao expressar que "a realização de concursos e o provimento dos cargos não podem prejudicar o direito dos que preencheram os requisitos necessários à permanência no cartório, como aqueles beneficiados pelo artigo 208 da Constituição anterior, ainda que a vacância só tenha ocorrido na vigência da nova Carta." [10]
Portanto, a ocorrência da vacância em específica e determinada época não constitui requisito, mas antes mera condição temporal para a efetivação ser implementada. Portanto, o direito à efetivação estava sujeito a condição pré-estabelecida e inalterável, estabelecida pelo próprio texto constitucional [11].
São elucidativas as lições de Clóvis Beviláqua sobre o tema do direito já definitivo, mas cujo exercício depende da superveniência de determinada condição (no caso, a vacância):
"Acham-se no patrimônio os direitos que possam ser exercidos, como, ainda, os dependentes de prazo ou de condição preestabelecida, não alterável ao arbítrio de outrem. Trata-se aqui de termo e condições suspensivos, que retardam o exercício do direito. Quanto ao prazo, é princípio corrente que ele pressupõe a aquisição definitiva do direito e apenas lhe demora o exercício. A condição suspensiva torna o direito apenas esperado, mas ainda não realizado. Todavia, com o seu advento, o direito se supõe ter existido, desde o momento em que se deu o fato que o criou. Por isso, a lei o protege, ainda nessa fase de existência meramente possível, e é de justiça que assim seja, porque, embora dependente de um acontecimento futuro e incerto, o direito condicional já é um bem jurídico, que tem valor econômico e social, constitui elemento do patrimônio do titular." [12]
O texto do art. 208 da CF/67 permite entender que restava assegurada a efetivação na vacância, independentemente de quando se verificasse. Por isso, ocorrida a vacância do cargo de titular, e tendo o interessado prontamente satisfeito as exigências traçadas pelo Constituinte pretérito, alcançou o direito à efetivação como titular, mesmo sob o manto de nova Constituição.
2.2 A superveniência da CF/88 não impede a efetivação
A Carta de 1988, no capítulo das disposições constitucionais gerais, cuida de matérias pontuais, mas cuja importância justifica sua inserção no texto constitucional. Assim, no art. 236 trata dos serviços notariais e de registro. No presente caso, interessa especificamente o § 3º do artigo citado, que determina a realização de concurso público para o ingresso nesses serviços:
"Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses."
Seis anos depois da promulgação da Constituição, a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, regulamentou a matéria, também dispondo sobre a obrigatoriedade de realização de concurso público para ingresso nos serviços notariais e de registro:
"Art. 14. A delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguintes requisitos:
I - habilitação em concurso público de provas e títulos; (…)."
Todavia, apesar desse regramento, a Constituição Federal de 1988 e a Lei dos Notários não cuidam da disciplina da específica situação dos então responsáveis e substitutos dos serviços notariais e de registro. Assim, a última oportunidade em que a matéria foi discutida no Congresso Nacional foi a aprovação da EC nº 22/82, que inseriu o art. 208 na Carta de 1967. Nos vinte e cinco anos posteriores à aprovação, persistindo o silêncio na Constituição de 1988 e na legislação dos notários, a situação dos responsáveis e substitutos foi consolidada.
É certo que a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre a obrigatoriedade da aprovação em concurso público para ingresso na atividade notarial, afirma regra de validade imediata. Isso não significa, contudo, o desrespeito aos direitos adquiridos. Ao contrário. O poder constituinte, soberano, acolheu o direito adquirido como interesse digno de tutela.
Sendo assim, é razoável que os titulares cuja efetivação foi conferida com fundamento em norma constitucional pretérita continuem à frente das serventias, como titulares, até sobrevir hipótese de vacância. Portanto, não se pode cogitar desrespeito ao art. 236, § 3º, da CF/88, sendo apenas hipótese de ultratividade do art. 208 da CF/67 frente à manifestação do Constituinte de preservar o direito adquirido e ao silêncio da nova Carta a respeito da situação específica dos substitutos de serventias.
Julgados do Superior Tribunal de Justiça conferem apoio ao entendimento [13]. Na decisão do Recurso em Mandado de Segurança nº 3834/SP, salientou-se que as Constituições de 1967 e 1988, em relação ao provimento no cargo de titular de serventia extrajudicial, "embora diferentes, não são contrastantes. A segunda não se tornou, nessa parte, inconciliável com a primeira. Chega-se a essa conclusão porque inexistente comando expresso e não são inconciliáveis." [14]
Também no voto do Ministro Vicente Leal no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 5790/SP sustentou-se a aplicação do art. 208 da CF/67 mesmo sob a égide da nova Constituição:
"Até mesmo porque, na vigência da regra excepcional da Carta de 1969, que conferiu beneficio aos titulares, aos substitutos de cartório com mais de cinco anos – Emenda Constitucional n° 22 – já se exigia, naquele tempo, concurso público para provimento dos cargos. Então, a Constituição de 1988 não fez desaparecer os direitos adquiridos na vigência da Carta anterior, no particular. Não o fez de forma expressa."
Trata-se de peculiar ultratividade de dispositivo constitucional pretérito [15]. Na ausência, na CF/88, de norma que discipline a situação dos substitutos do titular da serventia, o art. 208 da CF/67, que traz regramento específico, permanece eficaz. Afirma-se, assim, a regularidade da condição dos serventuários efetivados, ainda que sustentada em dispositivo da ordem precedente.
Saliente-se que o Conselho Nacional de Justiça, no PCA nº 2007.10.00.000393-2, indicou a possibilidade de ser invocada a ultratividade temporal de norma constitucional anterior em relação a efeitos já deflagrados até a véspera da promulgação da Carta de 1988. O caso apresentado a estudo pode ser considerado de efeitos já consagrados antes mesmo do advento da CF/88.
Observa Maria Helena Diniz que "Se a nova norma regesse todas as conseqüências dos fatos anteriores, destruiria direitos legitimamente constituídos sob o império da antiga norma, prejudicando interesses legítimos dos particulares e causando grave perturbação social." [16] Por essa razão, "A permanência da eficácia da norma, em determinados assuntos que lhe sejam pertinentes, após sua revogação, é um canon jurídico. A eficácia residual da norma extinta cerceia a da vigente, repelindo-a para tutelar certas relações jurídicas." [17]
O advento de nova ordem constitucional não pode instabilizar a vida do cidadão, "retirando dele o equilíbrio e a segurança que ao Direito cumpre garantir." [18] Tendo em vista a estabilidade, pode-se justificar a persistência de efeitos de instituições afirmadas por um sistema jurídico que não mais vigora. Como salienta Cármen Lúcia Antunes Rocha, o que o regime pretérito produziu não significa, necessariamente, que será no mesmo momento soterrado pelo novo. "E, de resto, nem sempre o novo pode viver sem o fluxo daquilo que vicejou antes e que precisa de ser, às vezes, respeitado para melhor servir à idéia e, principalmente, à prática da estabilidade das relações sociais e políticas." [19] Deste modo, ressalta:
"[…] para que não sobrelevem conflitos permanentes na sociedade, que somente serviriam para fragilizar as novas instituições, os novos direitos e garantias cunhados na Constituição que vem de ser promulgada – é mister considerar e cuidar do quanto, antes, sob a ordem abolida, vicejara. Se aquela antiga ordem constitucional já não poderá ser vertente de novos benefícios, nem sempre se tem por igualmente verdadeiro que os direitos já solidificados devam ser incontornavelmente solapados pela introdução do novo sistema normativo, quando não afrontem os valores sociais que tenham sido aproveitados pelo Constituinte. […] À descontinuidade do sistema jurídico fundamental não precisa corresponder a idêntica e total extinção e desconhecimento de todos os efeitos – com seus direitos e benefícios processados – derivados do sistema anteriormente vigente." [20]
Nessa esteira, diga-se que o afastamento de determinado serventuário da condição de titular do serviço ofende não apenas o art. 208 da Constituição Federal de 1967, como também a ideia de direito vigente na nova ordem constitucional.
Ademais, seria contrário ao valor justiça deixar desamparados, no caso de vacância do titular do serviço, os substitutos que estão há anos na qualidade de responsáveis pelas serventias, que investiram seu trabalho e sua vida prestando relevante trabalho.
2.3 A proteção da confiança legítima
Corroborando a argumentação, entra em cena a noção de confiança legítima, que tem sido aplicada para resolver questões relacionadas à incidência das normas no tempo, como acontece no tema em exame. Trata-se de fundamento para a preservação de posição jurídica na qual, instituído, legitimamente confiou o cidadão.
O princípio da confiança legítima vincula-se a diretrizes fundamentais do ordenamento jurídico pátrio, como a segurança jurídica e a boa fé [21]. Assim, "Embora não tenha previsão explícita no texto da Constituição Federal, há de ser reconhecido o status de princípio constitucional à proteção substancial da confiança, em face da necessária dedução ‘Estado de Direito/segurança jurídica/proteção da confiança’." [22]
No tocante à segurança jurídica, um dos conteúdos que se lhe atribui é a "estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova" [23]. Já a boa fé, na sua vertente objetiva, corresponde ao dever de agir conforme determinados padrões estabelecidos.
Da conjunção dessas noções, tem-se que, em um Estado Democrático de Direito, o regime jurídico não pode sacrificar aquele que confiou na estabilidade de determinada norma, considerando, ainda que o próprio Estado promoveu, regularmente, a efetivação no cargo.
Como bem ressalta Hartmut Maurer, em entendimento plenamente aplicável à hipótese aventada, "o cidadão deve poder confiar […] que sua atuação, em conformidade com o direito vigente, ficará reconhecida pelo ordenamento jurídico com todas as conseqüências jurídicas previstas originalmente e não será desvalorizada por uma modificação de direito retroativa" [24].
A relevância da aplicação do princípio da proteção da confiança legítima mostra-se "patente quando são postas em causa expectativas geradas na preservação de determinadas posições que persistem por anos, às vezes por décadas até, e que levam os particulares a fazer importantes disposições pessoais e patrimoniais." [25] Por essa razão o argumento cabe à situação ora discutida.
Ao serventuário que satisfez as exigências traçadas no art. 208 da CF/67 é assegurado o direito à efetivação no cargo de titular no serviço notarial e de registro, dependendo o exercício da prerrogativa apenas da vacância do cargo.
Nessas hipóteses, há, portanto, base objetiva que desperta legítima confiança na estabilidade de sua situação.
O disposto no § 3º do art. 236 da Constituição Federal de 1988, exigindo o ingresso em serviço notarial e de registro por meio de concurso público, não pode alcançar a situação dos substitutos de serventias que tinham direito assegurado à efetivação. A aplicação imediata do regime constitucional posterior, sem resguardar os direitos adquiridos, configuraria uma mudança injusta na posição desses serventuários, causando prejuízos evidentes, contrariando os próprios valores que permeiam o ordenamento jurídico.
Considerando que as noções de Estado Democrático de Direito, segurança jurídica e boa fé devem orientar a aplicação das normas constitucionais, é necessária, em casos peculiares e para a proteção da confiança na estabilidade [26], a preservação da posição jurídica do cidadão, ainda que instituída por ordem constitucional anterior.
Assim como o Supremo Tribunal Federal tem feito ao modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, noticia-se que mesmo o Conselho Nacional de Justiça, em certos casos tão contaminado por uma visão jacobina do mundo, vem observando os princípios da segurança jurídica e da boa-fé, tendo proferido várias decisões sustentadas nessas diretrizes.
Citem-se os Pedidos de Providências nº 415 e 721, em que se julgou parcialmente procedente o pedido, a fim de "preservar no cargo, excepcionalmente e apenas para o caso concreto, o titular da serventia, até a vacância." Tal conclusão apoiou-se em voto que assim versou: "A possibilidade da delegação da atividade que ora se pretende excluir decorreu de interpretação, inda que equivocada, do texto constitucional. Nenhum prejuízo sofreu a Administração com tal delegação, mesmo porque o serviço vem sendo regularmente prestado e a Serventia conta com funcionários que ali trabalham há muitos anos."
Também no Procedimento de Controle Administrativo nº 50 restou assentado que "Não se pode desconsiderar, ainda, a boa-fé dos destinatários dos atos praticados por órgãos ou agentes do Poder, posto que esses – certamente – não contribuíram para a invalidade que pode turvar tais atos."
Em recente decisão (PCA nº 2008.10.00001273-1), aplicou-se a proteção da segurança jurídica e da boa-fé dos interessados. No julgado, destacou-se que "em nome dos princípios da segurança jurídica e da confiança, não convém reverter imediatamente as remoções por permuta, apesar de irregulares (…) devendo ser postergados, nesta hipótese, os efeitos da desconstituição do ato inválido para vier a ocorrer a vacância na serventia de origem do permutante irregular."
Os precedentes citados aplicam-se com perfeição à hipótese em exame. Os interessados, ao pleitearem sua efetivação como titulares de serventia extrajudicial, o fizeram de modo leal e lícito, com a convicção de que o art. 208 da Constituição de 1967 garantia-lhes tal direito. Do mesmo modo conduziu-se a Administração da Justiça ao deferir justificadamente os pedidos. Não pode o direito desprezar essa atuação de boa-fé. Eis a conclusão de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
"A segurança jurídica tem muita relação com a idéia de respeito à boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação como a correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. Se o administrado teve reconhecido determinado direito com base em interpretação adotada em caráter uniforme para toda a Administração, é evidente que a sua boa-fé deve ser respeitada. Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da segurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo." [27]
Na situação trazida a estudo, pensa-se ser plenamente adequado invocar o princípio da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica para tutelar o direito do titulares de serventias, preservando a posição decorrente da incidência do art. 208 da CF/67. Medida razoável revela-se a manutenção dos interessados na condição de titulares de serventia até a vacância do cargo, quando, então, há de se realizar concurso público para o devido provimento. Trata-se de solução adequada aos valores que norteiam o ordenamento pátrio.
Resta evidenciado que a proteção de atos "fundados em um estado de confiança tutelado juridicamente não é construção fantasiosa, mas tese absolutamente plausível, consentânea com nosso sistema de proteção de direitos." [28]