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O Incidente de Deslocamento de Competência como mais um mecanismo de proteção dos direitos humanos

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Agenda 05/07/2009 às 00:00

3.O caso Dorothy Stang e a decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Quanto aos requisitos, o Superior Tribunal de Justiça explicitou que são três e cumulativos: 1) grave violação a Direitos Humanos; 2) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; 3) incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal.

Analisando o primeiro requisito, afirmou que todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário no cenário nacional ou internacional, representa grave violação do maior e mais importante dos direitos do ser humano, o direito à vida, declarado no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, por força do Decreto nº 678, de 06/11/92.

Em segundo lugar, afastou a necessidade de prévia lei definidora do rol de crimes, sob pena de vir a restringir o texto constitucional. Anotou que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, por força do disposto no § 1º do art. 5º da CF.

Em terceiro lugar, ressaltou a semelhança do instituto do deslocamento com o de desaforamento, hipótese que, segundo a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não ofende ao princípio do juiz natural, nem enseja a formação do tribunal de exceção.

Em quarto lugar, assentou que o deslocamento, por ser considerada "medida extrema" deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), com demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do estado-membro, por suas instituições em proceder à devida persecução penal.

No exame do caso concreto, reconheceu a grave violação de direito humano e a necessidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais. Rejeitou, porém, o risco de descumprimento, pois considerou demonstrado o empenho das autoridades estaduais, com o auxílio da Polícia Federal e do Exército, em dar resposta eficiente à violação. Sem dúvida, pesou na decisão o fato de o processo penal já estar na fase de alegações finais.

Assim, aplicando o princípio da proporcionalidade ao caso em questão, o STJ entendeu que não há o concurso de todos os requisitos necessários para deslocar a competência para a justiça federal, inexistindo, pois, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Desse modo, o pedido de deslocamento de competência foi indeferido, sem prejuízo, entretanto, da aplicação do art. 1º, III da Lei 10.446/20002, que, sem retirar a responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, autorizou a Polícia Federal a proceder à investigação acerca de infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte.

Por oportuno, cumpre consignar que o fazendeiro Vitalmiro Moura Bastos, condenado, em 2007, a trinta anos de prisão por ter encomendado o assassinato da freira Dorothy Stang, conseguiu se livrar dos efeitos da sentença. É que, em razão de ter sido levado a cabo o protesto por novo júri [67], Moura foi julgado pela segunda vez, em maio de 2008, no Pará, e acabou absolvido depois que uma testemunha (mediante suborno de cem mil reais, segundo denúncia do Ministério Público), voltou atrás em seu depoimento e o inocentou. [68]

Tendo sido apresentados os principais e mais relevantes argumentos favoráveis e desfavoráveis à inserção no ordenamento jurídico brasileiro do Incidente de Deslocamento de Competência, bem como enfrentada a questão de sua conformidade com a Carta Magna, impende constatar que se trata a federalização de mais um importante instrumento que objetiva dar maior possibilidade de segurança à vítima e combater a impunidade. Assim sendo, por que razão, então, nenhum requerimento foi aceito até o momento?

De fato, o Procurador-Geral da República recebeu nove solicitações de federalização. Admitiu uma, rejeitou cinco, restando três para análise. Ela Wiecko V. de Castilho defende que os principais fundamentos para que não tenha sido solicitada a jurisdição subsidiária são: (a) ausência de inércia injustificada das autoridades públicas locais responsáveis pela persecutio criminis; (b) o não exaurimento das possibilidades do estado-membro em adotar medidas, em tempo hábil, para apuração dos fatos e (c) a falta de leniência ou descomprometimento do Poder Público na busca da verdade. [69]

Aliadas àquelas circunstâncias, defendemos que o desuso do instituto da federalização tem se tem se dado em razão da aplicação do princípio da proporcionalidade, do estrito campo de sua aplicação pautado pelas expressões "em qualquer fase do inquérito ou processo", contidas no artigo 109, § 5º da CRFB, além da legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República para provocar o incidente. A seguir, veremos cada uma dessas causas limitadoras do uso do instituto em questão.


4. A FEDERALIZAÇÃO DAS GRAVES VIOLAÇÕES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS: CAUSAS QUE REDUZEM O SEU CAMPO DE ATUAÇÃO.

Apreciadas as maiores vantagens da inserção no ordenamento jurídico brasileiro da possibilidade de federalização da competência para processamento e julgamento de graves violações aos direitos humanos, cabe apresentar, a partir do presente momento, a noção que ora impera na seara jurídica de que o instituto deva ser aplicado de forma parcimoniosa.

A idéia da aplicação do princípio da proporcionalidade surge no momento em que se faz o reconhecimento da importância do instituto jurídico em estudo, mas com ressalvas. O Incidente de Deslocamento de Competência não pode ser banalizado, segundo os juristas que defendem a presente argumentação, sob pena de restarem violados diversos princípios constitucionais.

Com efeito, não se discute que o novo instituto é instrumento a ser utilizado em situações especialíssimas, quando devidamente demonstrada a sua necessidade, a sua imprescindibilidade, tal como acontece, semelhantemente, com o pedido de desaforamento (CPP, art. 427) ou com a intervenção federal (CF, art. 34), observadas, é claro, as peculiaridades e finalidades de cada instituto e considerando qual das medidas a ser aplicada alcança o resultado desejado de forma menos gravosa.

Vetores basilares para se saber, concretamente, qual a regra ou garantia constitucional deva prevalecer resulta, assim, da observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A preocupação em aplicar a proporcionalidade tem origem nos grandes impactos que a infração de um princípio pode causar. Celso Antônio Bandeira de Mello se manifesta a respeito do tema, admitindo que infringir um princípio implica:

ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. [70]

Desse modo, a partir dos conflitos que a violação de um princípio constitucional pode ocasionar, é sugerida a aplicação do princípio da proporcionalidade. A fim de assegurar um melhor entendimento desta afirmação, cumpre apresentar uma breve exposição acerca do princípio em questão.

O princípio da proporcionalidade teve origem nos Estados Unidos sob a nomenclatura de "razoabilidade", vinculado ao processo de transição da concepção do "procedural due process of law". Cabe ressaltar que os primórdios do princípio se encontram também no direito germânico, aí conhecido como proporcionalidade, ligado à idéia de Estado de Direito. O que importa citar é que em ambos os países o princípio surgiu para defender a democracia e os direitos fundamentais, sendo sinônimas as expressões "razoabilidade" e "proporcionalidade". [71]

O princípio da proporcionalidade, existente no Brasil, principalmente após a promulgação da Carta de 1988, é um princípio implícito da Constituição, podendo ser observado na ordem jurídica brasileira nos artigos 1º e 5º, LIV da Carta Magna; art. 111 da Constituição de São Paulo; arts. 13, 74 e 76 da Constituição de Minas Gerais; art. 25 da Constituição de Sergipe e na lei 9.784/99, referente ao processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. [72]

Uma das maiores dificuldades apresentadas pelos doutrinadores diz respeito à conceituação do princípio, tendo em vista que está ligado a uma concepção axiológica, o que não afasta, entretanto, sua importância e sua força normativa.

Fábio Corrêa de Souza Oliveira sublinha o que garantiria a concretização do princípio da proporcionalidade afirmando que: "A concretização do princípio se faz no exame da relação triangular entre motivo meio e fim. A medida estatal deve ser apropriada ao motivo que a impulsiona e ao fim almejado". [73]

Seguindo essa concepção, a doutrina alemã desmembrou o princípio da proporcionalidade em três subprincípios, cujo conhecimento é primordial para o entendimento da aplicação do Incidente de Deslocamento de Competência. Os três subprincípios são: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu.

O subprincípio da adequação, também chamado de pertinência, conformidade ou aptidão, diz respeito à relação entre o fim que se pretende alcançar e o meio utilizado; ou seja, a medida que fora adotada deve ser suscetível de atingir o objetivo pretendido. Já o subprincípio da necessidade, conhecido como exigibilidade ou menor ingerência possível, está ligado ao fato de que a medida empregada seja indispensável, imprescindível, inexistindo outra que seja menos prejudicial. Caso contrário, se houver outro meio para atingir o resultado desejado, que implique menos ônus, este deve ser usado.

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Quanto à proporcionalidade stricto sensu denominada também de subprincípio da justa medida, Fábio Corrêa Souza de Oliveira afirma que "A providência adotada deve ser proporcional ao conjunto e interesses (bens) em jogo. O que se ganha com a medida deve ser mais vantajoso do que aquilo que se perde. [74]

O ministro Gilmar Mendes encerra a exposição acerca do princípio da proporcionalidade afirmando que este:

Se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito (...) há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre os dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). [75]

Analisado o princípio da proporcionalidade, fica mais evidente a sua relevância no que se refere à aplicação do instituto da federalização. Assim, a competência deve ser deslocada da justiça estadual para a justiça federal quando tal medida puder assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte (subprincípio da adequação); quando tal procedimento for insubstituível, sendo adotado somente em caráter expcepcional (subprincípio da necessidade) e, por fim, quando o resultado alcançado com o uso do incidente for mais vantajoso que a garantia de alguns princípios constitucionais que poderão ser suprimidos (subprincípio da proporcionalidade stricto sensu).

Arrematando esse raciocínio, Jorge Assaf Maluly conclui que:

Cumprirá à jurisprudência estabelecer os critérios que justifiquem a provocação do incidente de deslocamento de competência, porque os parâmetros estabelecidos na Constituição Federal são insuficientes e, para evitar a banalização de sua adoção, é imprescindível que se sujeite ao princípio constitucional da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade). [76]

Portanto, forçoso concluir, após as breves considerações acerca do princípio da proporcionalidade, que o Incidente de Deslocamento de Competência, considerado como medida extrema, encontrará mera aplicação subsidiária no ordenamento jurídico, quer em razão da existência de outros mecanismos tidos como menos intervencionistas e que acarretam menos polêmica acerca da infração de aspectos constitucionais (juiz e promotor naturais, pacto federativo, princípio da legalidade em razão de não haver previsão do que sejam graves violações etc.), quer porque esses outros mecanismos deixam de comprometer a harmonia das relações entre os órgãos do Judiciário, Ministério Público e Polícias.

Nesse diapasão, destaca-se, novamente, a hipótese exemplificativa em que não há um comprometimento do Ministério Público ou da Justiça Estaduais, mas apenas ineficiência ou demora das investigações conduzidas pela Polícia Civil do Estado. Para este caso, o ordenamento jurídico apresenta uma medida alternativa, menos gravosa ao pacto federativo e apta a produzir o mesmo resultado desejado, isto é, o esclarecimento do fato delituoso, que é a possibilidade de intervenção da Polícia Federal na fase investigativa, consoante previsão inserta na Lei 10.446/02.

Sob outro prisma, ainda, a confiabilidade nas instituições públicas, constitucional e legalmente investidas de competência originária para atuar nos graves crimes contra os direitos humanos - Polícia, Ministério Público, Judiciário - deve, como regra, prevalecer, ser apoiada e prestigiada, só afastando a sua atuação, a sua competência, expcepcionalmente, ante provas induvidosas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais ou materiais etc. em levar a cabo a apuração e julgamento dos envolvidos na atuação criminosa. Afinal, parece claro que a cobrança - nacional ou internacional - é no sentido da pronta, adequada e eficaz atuação estatal, sendo irrelevante que o seja por órgão do judiciário do Estado-membro ou da União. Não sendo a matéria de alçada desta, em termos de divisão de competência, deve respeitar a competência do Estado, não só em atenção ao pacto federativo, mas até mesmo levando-se em consideração a própria divisão do trabalho. Tal não obsta, naturalmente, que a União dê apoio ao primeiro, como faz, através da Polícia Federal, reservando-se, no entanto, a assumir diretamente aquela competência Estadual somente quando se fizerem presentes aqueles três requisitos anteriormente mencionados. Aí, sim, é imperiosa a sua presença direta, deslocando-se a competência por absoluta inoperância do Estado-membro, na forma do § 5º do art. 109 da CF.

4.2.A restrição da aplicação do IDC ocasionada pelas expressões "em qualquer fase do inquérito ou processo".

O Direito Internacional dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais; opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Não busca obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades. É, pois, o direito de proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se têm devido em grande parte à mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão. Nesse sentido, espera-se que as normas jurídicas sejam interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas.

Contudo, numa sociedade complexa e hierarquizada, dita as leis a classe que dispõe de poder. E, obviamente, armará a ordem legal de sorte a garantir a permanência das desigualdades existentes, das quais decorrem as vantagens que lhes bafejam os membros, tanto quanto os ônus suportados pelas massas oprimidas. Ou seja: a ordem jurídica, elaboram-na os grupos predominantes em termos de poder, com o propósito político de assegurar a conservação do status quo sócio-econômico. Portanto, a lei entremostra caráter arbitrário e discriminatório ainda na sua formulação abstrata. [77]

Assentadas essas premissas, lancemo-nos na análise do que dispõe o artigo 109, § 5º da CRFB, in verbis:

Art. 109 Aos juízes federais compete processar e julgar:

(...)

5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (sem grifos no original).

O fim daquela norma, repise-se, é disponibilizar instrumento capaz de conferir eficiente resposta estatal às violações aos direitos humanos e evitar que o Brasil venha a ser responsabilizado por não cumprir os tratados internacionais, por ele firmados, que versem sobre esses direitos internacionalmente protegidos.

Todavia, convém alertar que a medida é tardia, se considerarmos os termos restritos supratranscritos em que aquela encontra aplicação. É que, diante da possibilidade da federalização se dar somente na fase do inquérito ou do processo, tal instituto indubitavelmente funcionará muito mais para o opressor do que para o oprimido, porque assegura a impunidade do primeiro, na exata medida em que concentra a sua atuação somente nessas duas fases.

Já se disse que, constitucionalmente, as lesões aos direitos humanos ficaram sob a égide do aparelhamento policial e judicial dos Estados Federados e que fatores econômicos e sociais têm marcado sua atuação significativamente distanciada dessa temática. Essa fragilidade institucional criou clima propício para cada vez mais freqüentes violações dos direitos humanos em nosso país, que ficam imunes à atuação fiscalizadora e repressora do Estado. Ou alguém acredita que o IDC será instrumento suficiente para influir decisivamente na realidade existente de escravidão, prostituição forçada, exploração sexual, tortura, detenções arbitrárias, violência rural, violação dos direitos das populações indígenas, exploração de trabalho de criança e adolescente ou na prática da tortura nas delegacias de polícia em cada canto do país, verdadeiro habitus que configura uma afronta explícita à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985? [78]

Augusto Thompson defende que não são os comportamentos (delitos) que contam, uma vez que o importante, de fato, para o agir efetivo da justiça criminal, reside na posição social do autor. O status do delinqüente é atribuído às pessoas não pelo que fizeram, mas pelo que são. [79] Segundo essa ordem de idéias, O Incidente de Deslocamento de Competência, porque atua na fase do inquérito ou do processo, não seria instrumento idôneo para atingir os delitos mencionados, já que contra os opressores dificilmente seria lavrado qualquer tipo de ocorrência policial.

Isso porque, ainda segundo aquele autor, a Justiça criminal é discriminatória, sendo perfeitamente identificável o norte da bússola que orienta a condução de seus afazeres.

Nesse sentido, afirma que o vestíbulo de ingresso de um delito no templo da ordem formal (ciência do fato até a indiciação do autor) situa-se na área policial; a formalização completa da rotulação do criminoso (que não será viável sem a passagem pelo vestíbulo de ingresso) dá-se pelo judiciário (ministério público e magistratura). Contudo, há quatro fatores preponderantes cuja existência impulsionam o binômio crime/criminoso para o caminho da condenação e evita que consiga saltar fora dos trilhos durante a viagem, de sorte a mergulhar nas sombras da cifra negra, são elas: a) Maior visibilidade da infração; b) Adequação do autor ao estereótipo do criminoso construído pela ideologia prevalente; c) Incapacidade do agente quanto a beneficiar-se da corrupção ou da prevaricação; e d) Vulnerabilidade do agente a ser submetido a violências e arbitrariedades. [80] Veremos que os quatro fatores mencionados por Augusto Thompson privilegiam as classes avantajadas (os mais fortes e, de regra, os opressores) e, também, estão a indicar que as referidas classes, somente excepcionalmente, serão autuadas em inquérito policial. Senão vejamos.

a)Maior visibilidade da infração.

De duas formas uma concreta violação à lei penal chegará à ciência da polícia de molde a ser instaurado o inquérito policial: a) seus agentes vêem o delito; ou b) são para ele alertados por alguém que lhes transmita notícia a respeito.

Quanto à primeira hipótese, o crime será mais visível na medida em que ocorra num lugar com respeito ao qual a polícia dispõe de maior facilidade de acesso, tanto em termos de espaço quanto de tempo. Especialmente vulneráveis à fiscalização do órgão de segurança mostram-se os logradouros, tais como as ruas, praças, parques, praias etc. Neles são postados os guardas fardados. Por eles transitam as viaturas de policiamento - radiopatrulhas, camburões, carros de ronda. Quanto a eles inexistem obstáculos impeditivos de circulação ampla e desenvolta por parte de investigadores, detetives e demais funcionários encarregados de coibir a prática de atos ilícitos. Logo a seguir aos logradores públicos, também se apresentam extremamente devassáveis dados tipos de prédios que abrigam instituições populares, cuja franquia se permite a quase todo o mundo e onde a polícia pode penetrar independentemente de contar com a aquiescência dos respectivos proprietários e usuários - tais como botequins, supermercados, estações ferroviárias e rodoviárias, escolas e hospitais públicos e assim por diante. Na mesma categoria estão as moradias situadas nas favelas, barros de madeira destituídos de proteção sequer razoável contra violações.

O oposto se dá quanto a outros tipos de recintos, aonde só têm ingresso pessoas portadoras de atributos especiais. Se os indivíduos de baixa renda vivem a céu aberto, as classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais fechados. Mostram aparelhamento adequado para fazer respeitar a seleção desejada. A eles a polícia carece de livre acesso, pois uma barreira institucional defende a indevassabilidade de seus interiores. O acontecimento de alguma ilicitude lá, como parece óbvio, encontra dificuldade quase invencível quanto a ser "visto" pela polícia - a qual, praticamente, só conhecerá da infração se for dela cientificada pro alguém "da casa". A imunidade institucional, assegurada em nome do direito à privacidade e das garantias individuais insculpidas na Constituição e na legislação ordinária - guarda-chuva que não protege os segmentos mais humildes do povo - impede que se possa estabelecer um cotejo esclarecedor.

Compreende-se, por tais circunstâncias, haver muito mais probabilidades de serem os delitos dos miseráveis "vistos" pela polícia do que aqueles perpetrados pela gente de posição social mais elevada e, em razão, disso, parece sensato reconhecer que há maior vulnerabilidade dos membros das camadas inferiores do que daqueles das camadas superiores quanto a ter seus crimes fulminados pelos raios de luz da ordem formal.

b)Adequação do autor ao estereótipo do criminoso construído pela ideologia prevalente.

O primeiro traço básico da imagem do criminoso que representa para si mesma a ideologia dominante, diz respeito a seu baixo status social. Pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinqüente típico, teremos, em função da resposta, o retrato preciso de um representante da classe social inferior, de tal sorte se tende a estabelecer o intercâmbio entre pobreza e crime. A teoria lombrosiana outro mérito não teve senão o de dar cunho científico a esse sentimento do senso comum. Aliás, os sinais morfológicos do "criminoso nato", descritos pelo pai da criminologia, casavam-se harmoniosamente com aqueles referentes aos parias da sociedade italiana da época. Ao afirmar que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, abre-se facilmente a possibilidade de inverter os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso.

Ora, o aparecimento de uma quantidade muito maior de delitos envolvendo gente miserável do que remediados e ricos - conseqüência necessária da "visibilidade" do crime, de que cuidamos anteriormente - vem reforçar as idéias preconcebidas a respeito dos delinqüentes. Isso, por seu turno, funciona como eficiente justificativa no sentido de concentrar a vigilância sobre os indivíduos considerados como mais propensos a desrespeitar as leis. A maior fiscalização sobre dados grupos do que relativamente a outros vai determinar uma taxa diversa entre quanto à quantidade de infratores que ficarão escondidos na cifra negra. As estatísticas oficiais, em decorrência, ostentarão um número elevado de criminosos oriundos das classes baixas, enquanto o relativo aos situados nas camadas superiores se mostrará ínfimo. Tal indicador é tomado como prova a respeito da correta orientação que preside o trabalho da polícia, a qual se sentirá estimulada em manter o mesmo critério de seleção tradicionalmente empregado.

c) Incapacidade do agente quanto a beneficiar-se da corrupção ou da prevaricação.

No processo de decantação a que são submetidas as práticas criminosas, com o objetivo de livrar de perseguição os agentes pertencentes às castas privilegiadas e destinar à punição formal aqueles oriundos da baixa classe social, impõe-se o emprego de variados filtros, dentre eles o fator discriminatório enfocado neste item.

De fato, só pode subornar quem dispõe de recursos (corrupção); só pode pedir que seja atendido quem goza de prestígio (prevaricação). Dinheiro, importância, poder são os atributos que mais agudamente extremam os grupos superiores dos inferiores numa sociedade dividida. Como a principal peneirada incumbe à polícia realizar, e como, para que o dado discriminatório em pauta funcione a contento, impõe-se exigir do operador aptidão para se deixar comprar e/ou intimidar em larga escala, fica fácil compreender que, para o sistema, só interessa contar com uma polícia tanto venal quanto submissa ao jogo das pressões.

Nessa ordem de idéias, Augusto Thompson sustenta que "a pretensão de reformar a polícia, purificá-la, aperfeiçoá-la, dignificá-la, transformá-la num órgão reto, honesto, equilibrado, traduz aspiração ingênua, desligada da realidade". E arremata: "Somente sendo corrupta e prevaricadora, a polícia satisfará as expectativas nela depositadas pelo sistema". [81] Enquanto se atenta para o que se pretende seja um caso de mau funcionamento, perde-se a perspectiva para perceber que o problema reside nos próprios fundamentos do sistema.

Na matéria sob exame, a presença de advogado patrocinando a defesa do acusado implica conseqüências altamente favoráveis para o último, embora, de acordo com a sistemática legal, afora exceções desimportantes, nenhum espaço está previsto para a atuação de causídico no inquérito. Por obedecer ao denominado "procedimento inquisitorial", a autoridade que o conduz age da maneira que melhor lhe aprouver na coleta dos elementos de prova. O equilíbrio de ações entre as partes (princípio do contraditório) só vigora quando o feito tem curso já em juízo. O delegado, na atividade preliminar, dirige seu trabalho como lhe parecer mais acertado, dispensado de fornecer explicações ou deferir requerimentos das partes e de seus patronos.

Inobstante tal circunstância, raro é o caso em que uma pessoa de médias posses para cima deixa de se fazer acompanhar de advogado na polícia. Por quê? Obviamente, há um papel reservado pelo advogado, o qual pode ser definido de acordo com as seguintes atribuições: impedir que o constituinte sofra violências e arbitrariedades; manipular convenientemente os frutos de pedidos de pistolões e do fornecimento de gratificações (devem saber a quem e com quanto se deve gratificar), de sorte a retirar o máximo proveito de tais fatores (mercê da competência e experiência, sabe o que deve constar ou ser omitido dos autos).

Quem funciona na área penal conhece sobejamente a importância da presença do advogado no inquérito. Da simples leitura dos autos, com um pouco de prática, distingue-se, sem possibilidade de erro, os casos em que o indiciado deixou de contar com ela.

Como, porém, oficialmente, inexiste um papel definido para o advogado na fase policial, que, por suposição, seguirá os mesmos rumos com ou sem a interveniência de causídico (a lei presume, também, o respeito da polícia aos direitos de todos os indiciados), a Assistência Judiciária, instituição encarregada de prover a defesa dos réus pobres, não prevê designação de advogado para assisti-los nas delegacias. Com isso, mais uma vez, executa-se o jogo duplo da repressão penal: mantém-se a observância da igualdade de todos (no plano formal), enquanto se desequilibra a posição dos membros das classes desfavorecidas relativamente à dos indivíduos bem situados (no plano concreto). A polícia está "podre"? A Justiça está "podre"? Não, o sistema está atingindo seus objetivos.

d) Vulnerabilidade do agente a ser submetido a violências e arbitrariedades.

A denominada "polícia científica" perde longe, em qualquer parte do mundo, para o emprego da coação imposta ao suspeito ou indiciado, com vistas ao fornecimento de elementos de prova contra ele próprio. Ou se obtém tal resultado, ou dificilmente se armará um satisfatório conjunto probatório de sua culpabilidade. O constrangimento por parte da vontade do acusado para obrigá-lo a dizer o que não quer pode realizar-se através de meios muito vulneráveis, desde pressões de caráter puramente psicológico até a aplicação de choques elétricos e do pau-de-arara ou, em menor grau, por meio de maus-tratos - que sempre há -, tais como berros, ameaças, empurrões cascudos. E quanto mais baixo estiver na escala social, mais indefeso estará o padecente com relação a tais práticas.

Dão-nos notícia os autores, que não gastam o tempo fazendo criminologia de gabinete, que esses postulados são verdadeiros para os Estados Unidos, a França, a Alemanha, a Inglaterra. Parece lícito acreditar que o sejam, também, para a Rússia ou a China. [82] E no nosso caso?

A maioria avassaladora dos delitos elucidados o são com base na confissão do autor. O ponto nevrálgico da investigação concentra-se no interrogatório do indiciado ou suspeito. O resto da atividade policial vai gravitar em torno daquele núcleo. Obter a confissão, pois, de forma quase absoluta, importa em resolver o caso; não consegui-la, deixá-lo insolúvel. Coagir o acusado significa, por seu turno, também de forma quase absoluta, obter a confissão. Do que é lícito concluir: a possibilidade da coação representa a alma de uma investigação com sucesso. O resto consubstancia mero complemento.

A indicação dos impedimentos aptos a inviabilizar a coação fornece a chave capaz de explicitar que delitos serão ou não adequadamente resolvidos.

Três óbices podem ser apontados como principais: a) movimentação, por parte do investigado ou de pessoas a ele ligadas, dos instrumentos capazes de impedir ou fazer cessar a violência; b) receio dos policiais de que venham a responder penal ou disciplinarmente, formal ou informalmente, pelos atos praticados; c) ausência de interesse dos policiais em coagir, em razão de receberem vantagem do criminoso.

Relativamente a esses itens, há uma relação direita deles com o nível social a que pertença o indiciado e com sua capacidade econômica. Tendo recursos, poderá contratar um bom advogado, o qual não saberá agir eficientemente para garantir a integridade do cliente como, também, por sua presença, infundirá receio aos policiais de virem a ser punidos pelo emprego da tortura. De outro lado, no círculo de conhecimento dos familiares do acusado, se tal se dá num padrão de médio para cima, forçosamente há de haver pessoas situadas em posição de mando, capazes de inspirar respeito, tais como oficiais das forças armadas, desembargadores, procuradores da justiça etc., os quais, independentemente daquilo que estiver sendo imputado ao suspeito ou autor, sentir-se-ão à vontade para mexer-se de sorte a lhe dar proteção contra a violência, uma vez que, de qualquer maneira, essa prática se reconhece formalmente como ilegal.

Tratando-se, porém, de um elemento marginalizado, provindo de meio miserável, carece ele de qualquer recurso para opor à brutalidade dos policiais, que, dessa forma, se sentem animados e encorajados para usar e abusar da prepotência. Sabem que, se dela extraírem como resultado o esclarecimento do fato, ninguém se importará em perquirir a respeito dos métodos que conduziram ao sucesso da investigação, os quais ficarão esquecidos em face da prova da culpa do criminoso. Em verdade, embora raramente ou nunca isso se reconheça expressamente, todo o mundo concorda em que a única via que se mostra segura para a elucidação de um delito é a da arbitrariedade, que, por isso, ganha foros de institucionalidade, no plano operacional.

Por tudo isso, as prisões estão ocupadas, de 95% a 99%, por gente das camadas marginalizadas da sociedade. E a criminologia tradicional recebe decidido amparo oficial, porque logra sustentar "cientificamente" a irrepreensibilidade do fato. [83]

Conclui-se, portanto, que, para assegurar o adimplemento das obrigações assumidas em Tratados de Direitos Internacionais, as ações do Poder Público devem ser tomadas em caráter preventivo, e não só quando formalizado o inquérito ou processo, geralmente instaurado, como vimos, contra os oprimidos e não contra os opressores. Nessa ordem de idéias, merece retoque a norma constitucional que restringiu somente para as fases do inquérito ou do processo o campo de atuação do Incidente de Deslocamento de Competência. Com efeito, chegando ao conhecimento do legitimado a propor o IDC de que se encontram presentes as condições para a sua propositura e, ainda que a formalização do inquérito não tenha se dado - e que não se dará - em razão de forte indício de leniência das instâncias locais, deveria ainda sim poder ajuizá-lo. Dessa forma, acreditamos que o instituto cumpriria de forma mais eficiente o fim a que se destina: dar proteção aos manifestamente mais fracos, vítimas de graves violações contra os direitos humanos.

Ou, sob outro prisma, para que as violações contra os direitos humanos entrem, efetivamente, na ordem formal com a instauração de inquérito que objetive apurá-las, necessário a articulação de vários setores governamentais com o Judiciário e o Ministério Público.

Ao nosso ver, ainda, poderiam ser celebrados convênios de cooperação institucional, como conseqüência do diálogo com setores da sociedade civil engajados na difusão dos valores dos direitos humanos, com o objetivo de não só articular ações concretas de intervenção na realidade social, mas também de mudar os paradigmas existentes da política criminal, de modo que aqueles que praticam os crimes contra os direitos humanos mereçam exibição no claro e venham a compor as estatísticas que servirão de base para o desmantelamento do sistema construído pela ideologia prevalente, consoante a qual o primeiro traço básico da imagem do criminoso diz respeito a seu baixo status social.

4.4.Da legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República para provocar o Incidente de Deslocamento de Competência.

A Emenda Constitucional nº 45/2004, que introduziu no ordenamento jurídico o Instituto de Deslocamento de Competência, poderia ter previsto outros legitimados para sua propositura, como o próprio Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, além de outras pessoas jurídicas e físicas, e não ter optado por centrar tal legitimidade exclusivamente no Procurador-Geral da República. É fundamental que se democratize o acesso ao pedido de deslocamento a outros relevantes atores sociais. Desse modo, restaria aumentada a possibilidade de que o uso daquele importante instrumento jurídico fosse disseminado.

De outro modo, sabido que o sistema de proteção internacional dos direitos humanos é adicional e subsidiário e, nesse sentido, pressupõe o esgotamento dos recursos internos para seu acionamento, ao se alargar o rol de legitimados a propor o incidente dois aspectos positivos adviriam para o Brasil: a) sinalizaria para o cenário interno e internacional que existe uma preocupação legítima com os direitos humanos e, em razão disso, a legislação que assegura a sua proteção está sempre sendo revista e aperfeiçoada; e b) afastaria a alegação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH de que a regra da subsidiariedade não alcança a federalização, se esta não foi realmente concretizada, já que não compete às partes provocá-la, mas sim, ao Procurador-Geral da República. Com isso, evitar-se-ia uma maior exposição do Brasil na seara internacional.

Sobre a autora
Fernanda Estevão Picorelli

Pós-graduada em Direito Civil - UNESA. Pós-graduada em Poder Judiciário (MBA) - FGV Analista Judiciário - Justiça Federal de Primeira Instância -Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICORELLI, Fernanda Estevão. O Incidente de Deslocamento de Competência como mais um mecanismo de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2195, 5 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13102. Acesso em: 22 nov. 2024.

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