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Poder regulamentar no sistema jurídico brasileiro

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Agenda 09/07/2009 às 00:00

O regulamento tem que se limitar a estabelecer as normas sobre a forma como a lei será cumprida pela Administração Pública, sob pena de sofrer controle dos excessos.

Sumário: 1. Introdução. 2. Do Poder Regulamentar. 2.1. Doutrina da separação dos poderes. 2.2. Poder normativo. 2.3. Poder regulamentar. 3. Regulamento. 3.1.Conceito de regulamento. 3.2. Pressupostos do regulamento. 3.3. Destinatários do regulamento. 3.4. Alcance do regulamento. 3.5. Regulamento e atos administrativos executivos. 3.6. Diferenças entre lei e regulamento. 4. Tipos de Regulamentos. 4.1. Regulamento executivo. 4.2. Regulamento autônomo e a ECnº32/01 5. Conclusão.


1. Introdução

"Tristes de nós que trazemos a alma vestida". Nos versos do poema "O Guardador de Rebanhos", escrito em 1914, o heterônimo Alberto Caieiro faz um convite a uma reflexão a respeito do risco de termos a alma presa a conceitos e pensamentos pré-concebidos que, além de não se coadunarem com a realidade fenomênica, impede-nos de apreender as coisas como elas realmente são.

Para a escorreita compreensão dos regulamentos no Brasil, deve-se abandonar a grave tendência de importar os conceitos consagrados no direito comparado, que não se adaptam a nossa realidade jurídica, porque o regulamento constitui, na expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello [01], um designativo que recobre "virtualidades jurídicas distintas".

Compreender o Poder regulamentar significa compreender os limites da ação executiva. Para tanto, faz-se necessário destacar a doutrina da separação dos poderes, que delimita a função administrativa exercida pelo Poder Executivo e garante o controle do exercício dessa atividade estatal, o princípio da legalidade, que condiciona a atividade estatal ao disposto na lei e a hierarquia das normas jurídicas, que estabelece a supremacia da lei sobre os regulamentos.

Nesse sentido, o presente trabalho buscará revelar, de forma despretensiosa, os contornos do desenho dos regulamentos no sistema jurídico brasileiro, numa abordagem doutrinária e jurisprudencial, para que, definitivamente, o poder regulamentar seja compreendido na sua inteireza, na medida da lei.


2. Do Poder Regulamentar.

De acordo com a clássica teorização da separação dos poderes, desenvolvida por Charles de Montesquieu, em 1748, na obra De L’Espirit dês Lois, as funções estatais (executar, legislar e julgar) são atribuídas a três órgãos especializados (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário), harmônicos e independentes entre si, que passam a exercê-las com exclusividade.

Nessa divisão clássica de poderes não há qualquer expressão utilizada pelo filósofo iluminista que identifique uma separação absoluta de poderes; ao contrário, na obra "Espírito das Leis", verifica-se referência apenas a equilíbrio de poderes. Para Visscher [02], atribuir a Montesquieu a concepção absoluta dos poderes significa incorrer em verdadeira "escroquerie intelectual", assinalando ser uma completa deturpação de seu pensamento político.

Na doutrina da separação dos poderes, é inegável que, além de harmônicos e independentes, os poderes devem se limitar reciprocamente. Em outras palavras, é indiscutível a cooperação entre os órgãos especializados, o inter-relacionamento das atividades por eles desenvolvidas, a interpenetração de suas funções, para que o "poder limite o poder", num sistema de controles recíprocos ou, na expressão do direito anglo-saxão, de freios e contrapesos (checks and balances).

Alfredo Baracho sustenta:

A expressão separação de poderes não foi empregada por Montesquieu, nem entende que os órgãos investidos das três funções do Estado seriam representantes do soberano, acometidos de parte da soberania, absolutamente. Não está em Montesquieu qualquer explicação que leve ao entendimento de que uma teoria da separação de poderes implica separação absoluta dos órgãos que exercem a função executiva e a legislativa. Entendia que devia existir uma ação contínua dos dois poderes um sobre o outro, uma verdadeira colaboração [03].

No Brasil, o ordenamento jurídico constitucional adota a teoria da separação dos poderes no art. 2º da CF/88 (São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário). O Executivo, portanto, exerce função administrativa ou executiva, que consiste em aplicar a lei, de ofício, ao caso concreto, para realização dos fins públicos.

Para Lúcia Valle Figueiredo,

A função administrativa consiste no dever de o Estado ou de quem aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos comandos normativos, de maneira geral ou individual, para realização dos fins públicos, sob regime prevalecente de direitos públicos, por meio de atos e comportamentos controláveis internamente bem como externamente pelo Legislativo (com auxílio dos Tribunais de Contas), atos, estes revisíveis pelo Judiciário [04] .

Para Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano,

O Poder Executivo tem por principal desígnio constitucional a realização da função administrativa. Nesse sentido, sua tarefa consiste em aprimorar, em nível imediatamente infralegal, os comandos normativos. É um aplicador da lei, na gerência dos negócios públicos [05].

2.2. Poder normativo.

Para o melhor desempenho da função administrativa, o ordenamento jurídico confere ao Executivo um conjunto de prerrogativas, que são denominadas de "poderes administrativos" (poder normativo, poder hierárquico, poder de polícia e poder disciplinar). Para José dos Santos Carvalho Filho [06], poderes administrativos são "o conjunto de prerrogativas de direito público que o ordenamento jurídico confere aos agentes administrativos para o fim de permitir que o Estado alcance seus fins".

O Poder normativo confere ao Executivo a possibilidade de editar atos de caráter geral e abstrato, sem, contudo, inovar, de forma inicial, o ordenamento jurídico. O Poder normativo se expressa por meio de atos normativos, que são regulamentos, resoluções, instruções, portarias etc. Nota-se, portanto, que o Poder normativo do Executivo não se esgota na edição dos regulamentos.

Como esclarece Edmir Netto de Araújo,

O poder normativo (e não apenas regulamentar, que é uma de suas espécies), permite ao administrador (ou Administração) editar normas gerais e abstratas, observados o princípio da legalidade e as regras de competência [07].

Os atos normativos possuem pontos de contato com a lei, mas não se confundem com ela. Como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro [08], "os atos pelos quais a Administração exerce seu poder normativo têm em comum com a lei o fato de emanarem normas, ou seja, atos com efeitos gerais e abstratos". São distintos da lei, porque os regulamentos não têm o condão de inovar, de forma primária, a ordem jurídica, enfim, de criar o direito novo.

2.3. Poder regulamentar.

O Poder regulamentar é, na verdade, espécie do poder normativo. Confere ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de editar atos gerais e abstratos, complementares à lei, sem inovar, de forma original, a ordem jurídica. Expressa-se por regulamentos.

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De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o poder regulamentar é considerado "uma das formas pelas quais se expressa a função normativa do Poder Executivo", definindo-se como "o que cabe ao chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas complementares à lei, para sua fiel [09] execução" [10].

Para Geraldo Ataliba,

Consiste o chamado poder regulamentar na faculdade que ao Presidente da República – ou chefe do Poder Executivo, em geral, Governador e Prefeito – a Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la [11].

O Poder regulamentar, no Brasil, é considerado inerente ao Poder Executivo, em razão da doutrina da separação dos poderes: se ao legislativo cabe fazer leis, ao executivo, cumpre executá-las. Nesse sentido, afirma Pontes de Miranda: "Legislar e regulamentar leis são funções que a Constituição pôs em regras de competência de um e outro poder".

Ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,

Se examinar a questão tendo em vista a classificação dos sistemas de órgãos fundamentais do Estado-poder em Legislativo, Executivo e Judiciário, a indagação circunscreve-se a qual deles cabe a faculdade regulamentar, e a resposta, em princípio, há de ser ao Executivo, uma vez que a ele incumbe, primacialmente, dar execução às leis, e o regulamento constitui o primeiro momento para essa execução [12].

Nesse sentido, assevera Canotilho,

O regulamento é norma emanada pela administração no exercício da função administrativa e, regra geral, com caráter executivo e/ou de complementar a lei. É um acto normativo, mas não um acto normativo com valor legislativo. Como se disse, os regulamentos não constituem uma manifestação da função legislativa, antes se revelam produtos da função administrativa [13].

No sistema constitucional brasileiro, o Poder regulamentar tem previsão no inciso IV, do art. 84, da Constituição Federal de 88, que confere ao Presidente da República a competência privativa para "sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução".

A Constituição do Império de 1824 (art. 102, XII) previu, dentre as principais atribuições do Imperador, a competência para expedir decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis. A Constituição Republicana de 1891 (art. 48, 1º), por sua vez, estabeleceu para o Presidente da República a competência para expedir decretos, instruções e regulamentos para sua fiel execução. Idêntica disposição apresentou a Constituição de 1934 (art. 56, §1º), a Carta de 37 (art. 74, a), a Constituição de 1946 (art. 87, I), a Constituição de 1967 (art.83, II) e a EC nº1/69 (art. 81, III), apenas com a supressão da expressão "instrução".

Importante notar que as disposições de todas as Constituições anteriores reproduzem o texto do inciso IV do art. 84 da Constituição Federal de 88, o que evidencia uma tradição, no sistema constitucional brasileiro, de subordinação do poder regulamentar ao disposto na lei.

A expressão "expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução" quer significar que "aquele é gênero veiculador desta espécie", e que constitui prerrogativa do chefe do Poder Executivo fazer uso de regulamentos para, fielmente, executar a lei, numa atitude restritiva, portanto, vinculada ao mandamento legal.

Decreto é a forma que se revestem todos os atos do chefe do Poder Executivo. Em outras palavras, o decreto é fórmula em que o chefe do Poder Executivo emana atos normativos e concretos. Nas lições de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, "os que expressam regras jurídicas gerais e abstratas, de caráter impessoal, de denominam regulamentares; e os que expressam regras jurídicas especiais e concretas, de caráter pessoal, se denominam decretos simplesmente [14]".

O regulamento deve, necessariamente, ser veiculado por decreto. Na expressão de Geraldo Ataliba [15], "decreto é a forma, o continente; regulamento, a matéria, o conteúdo". Para Victor Nunes Leal [16], o decreto é, portanto, a denominação genérica do ato praticado pelo chefe do poder executivo. A forma tradicional é redigir o regulamento em texto separado e baixar-se um decreto que o aprova, mas nada impede que o texto seja um só, isto é, que os preceitos do regulamento estejam consubstanciados no próprio decreto.

No Brasil, o poder regulamentar é exercido pelo chefe do Poder Executivo, sem delegação a outra autoridade, conforme se deduz da leitura do parágrafo único do art. 84 da Constituição de 88 (O Presidente poderá delegar atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estados, ao Procurador Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações).


3. Regulamento.

No Brasil, regulamento é expressão do Poder regulamentar. Constitui ato normativo, de competência privativa do chefe do Poder Executivo, para expedição de normas gerais complementares de lei, no sentido de torná-las operativa, sem, contudo, inovar, originariamente, o ordenamento jurídico. O regulamento, portanto, é ato de natureza infralegal, meramente ancilar e secundário, pois limitado aos comandos da lei.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, regulamento é:

Ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei cuja aplicação demanda atuação da Administração Pública [17].

De acordo com Annna Cândida da Cunha Ferraz, regulamentos são "prescrições práticas que têm por fim preparar a execução das leis, completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar, todavia, nem o texto, nem o espírito" [18].

Vale destacar as lições de Geraldo Ataliba,

Regulamento é ato administrativo normativo, veiculado por decreto, expedido no exercício da função regulamentar, contendo disposições, dirigidas aos subordinados do editor, regulando (disciplinando) o modo de aplicação das leis administrativas, cuja execução lhe incumbe [19].

O regulamento não deve ser confundido com os demais atos normativos (resoluções, instruções, portarias), porque aquele é elaborado pelo chefe do Poder Executivo e esses, por autoridades de escalão mais abaixo, investidas de poderes menores. Para Irene Nohara,

O poder normativo engloba o poder regulamentar, mas não se esgota nele, pois, além do decreto regulamentar, há outras formas de expressão de sua competência normativa, tais como resoluções, portarias, deliberações, instruções etc. Todavia, os efeitos destes últimos atos, diferente do regulamento, se restringem ao âmbito de atuação do órgão que os expede. Além do alcance mais limitado, estes atos normativos não são editados pelo chefe do Poder Executivo [20].

3.2. Pressupostos do regulamento.

Nem toda lei é regulamentada. Para que o regulamento seja válido é preciso que haja, previamente, uma lei que comporte regulamentação. As leis auto-executáveis, que são aplicadas diretamente, como as que "conferem poderes, estabelecem garantias e prescrevem proibições", não são passíveis de regulamentação.

Para Geraldo Ataliba,

A expressão do poder regulamentar – que a Constituição confere ao Presidente da República – é o regulamento, ato administrativo normativo, tendo por pressuposto a existência da lei e cabimento técnico desta regulamentação. É a lei, pois, um prius necessário e insubstituível. Mas, não basta sua simples existência, para que se justifique o exercício desta faculdade. É ainda exigido que a lei comporte ou exija regulamentação [21].

Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,

Há leis que independem de regulamentos para a sua aplicação. Diz-se leis auto-executáveis. Salvo disposição em contrario, nesta categoria estão as que conferem poderes, estabelecem garantias e prescrevem proibições. Outras, no entanto, necessitam de regulamento, para tornar possível a sua aplicação [22].

Além disso, é importante que a lei a ser regulamentada disponha sobre matéria relacionada às atribuições do chefe do Poder Executivo. O chefe do Poder Executivo, como liderança, comando e chefia do aparelho administrativo do Estado, não poderá regulamentar leis que não lhe cabe executar. Então, somente se admite regulamentação das leis administrativas que digam respeito à administração, cuja execução incumbe, precipuamente, ao chefe do Poder Executivo.

Já dizia Marcello Caetano, regulamento é uma "norma jurídica de caráter geral e execução permanente, dimanada de uma autoridade administrativa, sobre matéria própria de sua competência [23]".

Como esclarece Geraldo Ataliba,

Ora, nada tem o Presidente da República, examine-se sistematicamente suas atribuições e competências – quer com a execução das leis processuais, quer com a correta execução das leis comerciais e civis, por exemplo.

[...] Pelas mesmas razões, nada tem a ver com as relações, mesmo administrativas, que estabelecem entre Estados, Municípios e seus administrados, ainda que com fundamento em lei do Congresso – neste caso, lei nacional. Por isso não pode regulamentar estas espécies legais [24].

A respeito dos pressupostos do regulamento, conclui o autor:

O regulamento (sempre veiculado por decreto) só existe quando haja lei prévia, exigente de regulamentação. Em segundo lugar, conforme o conteúdo desta, pode não haver matéria nenhuma a ser regulamentada [25].

3.3. Destinatários do regulamento.

Na organização do aparelho administrativo do Estado, o Presidente da República edita atos de caráter geral e abstrato, dirigidos diretamente a todos os seus subordinados, que são os órgãos e os agentes integrantes da Administração Pública. Para o perfeito funcionamento do organismo administrativo, o chefe do Poder Executivo se vale, então, do seu principal veículo normativo - o regulamento, dirigido aos seus subordinados. Nessa medida, o regulamento constitui importante ato normativo do "poder de instrução" do chefe do Poder Executivo.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

O chefe do Poder Executivo, exercendo o seu poder hierárquico, restringe os comportamentos possíveis de seus subordinados e especifica para os agentes da Administração, a maneira de proceder. Destarte, uniformiza, processual e materialmente, os comportamentos a serem adotados em face dos critérios que elege e das pautas que estabelece para os órgãos e agentes administrativos [26] .

Os destinatários dos regulamentos são, portanto, os subordinados do editor. Vale dizer, o regulamento emanado do Presidente da República obriga, a priori, apenas os servidores da União, e não dos Estados e Municípios, em razão do princípio da hierarquia.

Contudo, não só os órgãos e agentes públicos são atingidos pelo regulamento. Os administrados, não subordinados hierarquicamente ao editor, podem ser colhidos, indiretamente, pelos preceitos regulamentares, quando a lei os obrigar a se relacionar com os órgãos e os agentes que integram a Administração Pública. Mas só nessa medida.

A respeito dos administrados, esclarece Geraldo Ataliba,

Os precípuos destinatários dos regulamentos são os subordinados do editor, que sobre eles tem poder hierárquico. Os administrados só são sujeitos aos preceitos regulamentares, na medida em que, pela lei, devem tratar com os servidores públicos, e só nessa medida. Os administrados não são subordinados ao chefe do Poder Executivo. Não devem acatamento às suas ordens [27].

3.4. Alcance do regulamento.

O regulamento não se limita a reproduzir, literalmente, os termos da lei. Seria inútil, se assim fosse entendido. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, o regulamento pode estabelecer regras orgânicas e processuais para órgãos e agentes administrativos, elucidar, com base em critérios técnicos, os fatos, as situações ou os comportamentos enunciados na lei de forma vaga, e, inclusive, explicar didaticamente o conteúdo da lei.

Há leis que demandam regramento do aparelho administrativo para melhor execução do texto legal. Nesse caso, os regulamentos estabelecerão as regras orgânicas e processuais a serem observadas por órgãos e agentes administrativos, com especificação do "modo de proceder", no sentido de estabelecer uma uniformidade de procedimentos, para fins de disciplinar a discrição administrativa. É a Administração vinculando a si própria.

Esse padrão de conduta pode ser notado nos regulamentos do imposto de renda, que estabelecem o modus procedendi para tornar praticável a lei instituidora do imposto federal. No regulamento constarão as especificações sobre os formulários das declarações, o lugar, prazo e horário para entrega das declarações, o modo de apresentação dos lançamentos tributários etc.

Nesse sentido, assevera Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,

Regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado, enquanto Poder Público. [...] Assim, os regulamentos hão de ter por conteúdo regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes de lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ela circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinada [28].

Outras leis, por sua vez, demandam um regramento esclarecer, elucidar, com exatidão, os fatos, situações ou comportamentos enunciados de forma vaga na lei, no sentido de limitar a discrição administrativa dos órgãos e agentes administrativos, com uniformidade de averiguações técnicas. Essa produção normativa de caracteres de exatidão exigirá aplicação de regras próprias de ramos do saber científico, como a medicina, a química, a economia etc.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

Sirvam de exemplo – para referir hipóteses lembradas por Geraldo Ataliba – regulamentos que caracterizam certas drogas como prejudiciais à saúde ou medicamentos como potencialmente perigosos; os que a bem da salubridade pública, delimitam o teor admissível de certos componentes em tais ou quais produtos; os que especificam as condições de segurança mínima nos veículos automotores e que estabelecem condições de defesa contra fogo nos edifícios [29].

Por fim, há leis que demandam apenas uma explicação didática do seu texto, uma enunciação analítica do enunciado na lei, sem qualquer restrição à discrição administrativa. É o que ocorre com os regulamentos que exemplificam quais são os servidores remunerados por subsídios, para melhor aplicação da lei que apenas fixou impedimento a eles.

Dispõe Celso Antônio Bandeira de Mello:

Aqui, ainda é mais evidente sua função interpretativa, que será, no que a isto concerne, exclusivamente interpretativa, cumprindo meramente a função de explicitar o que consta da norma legal ou explicar didaticamente seus termos, de modo a ‘facilitar a execução da lei’, expressões, estas, encontráveis, habitualmente, nos conceitos doutrinários correntes sobre regulamento [30].

3.5. Regulamento e atos administrativos executivos.

Deve-se tomar cuidado com os "supostos" regulamentos que, na verdade, são atos administrativos executivos. Regulamentos são atos normativos, portanto, de caráter geral e abstrato, expedidos pelo chefe do Poder Executivo, para fiel execução da lei. Regulamentos de efeitos concretos, com destinatários e situações de aplicação determinados, não podem ser considerados, propriamente, regulamentos, mas atos administrativos executivos, ainda que emanados na forma de decreto.

Na expressão de Enterría e Fernández, os atos administrativos executivos são "algo ordenado e não ordenamental".

Dispõem os autores:

La distinción más obvia entre el Reglamento y el acto es que aquél forma parte del ordenamiento jurídicio, en tanto que el acto es algo "ordenado", producido en el seno del ordenamiento y por éste previsto como simple aplicación del mismo. La distinción es normalmente visible por si misma, especialmente porque la individualización de la norma que cumpre el acto se traduce en que éste suele presentarse com um destinatario concreto (la sanción administrativa se impone a uma persona determinada, la licencia se otorga a un peticionario concreto, el nombramiento o la jubilación de un funcionario se disciernen em favor de alguien com su nombre y apellidos), en tanto que los Reglamentos, como las normas por lo común, suelen hablar um lenguaje impersonal y abstracto [31].

Nesse sentido, demonstra Jorge Manuel Coutinho de Abreu que a administração pode produzir "actos gerais e abstractos, actos gerais mas concretos, e actos abstractos mas individuais (além, é claro, de actos individuais e concretos) [32]". Contudo, apenas os primeiros podem ser regulamentos; os demais, não passam de meros atos administrativos executivos.

3.6. Diferenças entre lei e regulamento.

Para Victor Nunes Leal, não há diferença substancial entre regulamento e lei, pois o regulamento, exatamente como a lei, possui natureza normativa, de conteúdo genérico e aplicação geral. A distinção reside no aspecto formal, na subordinação do regulamento à lei. Dentro do sistema de hierarquia das normas, o regulamento é ato secundário, inferior, de aplicação, que dá disposições administrativas tendentes à fiel execução da lei.

A distinção ente o critério formal e critério material é fértil para o jurista, porque a hierarquia existente entre lei e regulamento, assim como entre constituição e lei, é só de natureza formal. Para que o regulamento seja invalidado é preciso que contrarie disposições de uma lei formal; para que as leis deixem de ser aplicadas, é necessário que ofendam disposições do texto constitucional [33].

Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho [34] assevera que o "regulamento é um ato normativo. Estabelece normas gerais e impessoais, motivo porque é materialmente uma lei. Entretanto, é um ato normativo secundário, no sentido de que sua força não provém diretamente da Constituição e sim da lei já subordinada à Constituição".

A respeito dos regulamentos, explica José Cretella Júnior:

Na hierarquia das normas, representam os regulamentos o grau mais alto na esfera administrativa, logo abaixo das normas legais, sendo a complementação destas. Pelo nosso sistema constitucional são os regulamentos aprovados por decreto executivo e a sua amplitude só encontra limites nos textos legais regulamentados [35].

Vale destacar, como critério de distinção entre lei e regulamento o caráter inovador e inaugural da lei, conforme observa Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...]não é apenas a posição de supremacia da lei ao regulamento que os discrimina. Essa característica faz com que o regulamento não possa contrariar a lei e firma seu caráter subordinado em relação a ela, mas não basta para esgotar a disseptação entre ambos no Direito brasileiro. Há outro ponto diferencial e que possui relevo máximo e consiste em que – conforme averbação precisa do Prof. O. A. Bandeira de Mello – só a lei inova em caráter inicial na ordem jurídica [36].

Sobre a autora
Ivana Mussi Gabriel

advogada em São José do Rio Preto (SP), professora universitária, especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestranda na ITE/Bauru.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABRIEL, Ivana Mussi. Poder regulamentar no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2199, 9 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13119. Acesso em: 5 nov. 2024.

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