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Poder regulamentar no sistema jurídico brasileiro

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09/07/2009 às 00:00
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4. Tipos de Regulamentos na Constituição de 88.

O regulamento que o sistema constitucional brasileiro admite no inciso IV do art. 84 da Constituição de 88, como expressão do Poder regulamentar, é o de execução. Assim, no direito brasileiro, o regulamento executivo exige a existência de lei, porque contém normas para sua fiel execução. Como observa Victor Nunes Leal [37], "para expedir os regulamentos executivos, não necessita o poder executivo de cláusula legislativa especial que lho autorize. Trata-se de competência constitucional genérica e originária".

Os regulamentos executivos, na expressão de Pimenta Bueno [38],

[...]são, pois atos do poder executivo, disposições gerais revestidas de certas formas, que determinam os detalhes, os meios, as providências necessárias para que as leis tenham fiel execução em toda a extensão do Estado. São medidas que regulam a própria ação do poder executivo, de seus agentes, dos executores, no desempenho de sua missão; são atos, não de legislação, sim, de pura execução, e dominados pela lei.

4.2. Regulamento autônomo e a ECnº32/01.

O art. 84, inciso VI, da Constituição Federal de 88, alterado pela EC n°32/01, estabelece que, compete privativamente ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre "a)organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, b)extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos".

Indaga-se, na doutrina, a respeito da natureza jurídica desse decreto inserto no texto constitucional. Seria regulamento autônomo?

Como ensina Celso Bastos [39], os regulamentos autônomos independem de lei que os fundamente, extraem validade diretamente da Constituição, são realizados pelo Executivo, para a expressão de sua competência sobre matéria não reservada à lei e inovam a ordem jurídica, equivalendo-se a uma lei baixada pela Administração.

No sentido de que regulamentos são verdadeiras leis, dispõe Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,

Os regulamentos independentes ou autônomos, na verdade, são verdadeiras leis, e assim chamados tão-somente porque emanados pelo Poder Executivo, pois não constituem desenvolvimento de qualquer lei ordinária, mas correspondem ao exercício da prerrogativa de legislar a ele reconhecida com base no Direito Constitucional [40].

Importante destacar o sistema jurídico francês, que consagrou, definitivamente, na Constituição de 1958, os regulamentos autônomos ou independentes. Na França, o ordenamento constitucional disciplina, em numerus clausus, as matérias privativas de lei (art. 34) e deixa as demais para os regulamentos (art. 36). Em outras palavras, o texto da Constituição francesa autoriza, expressamente, o Executivo a expedir regulamentos autônomos em matérias excluídas das atribuições do Parlamento. Como observa Couto e Silva [41], "não será exagero afirmar que, nesse contexto e no quadro geral das normas jurídicas, os regulamentos passaram a ser regra e as leis a exceção".

No Brasil, publicistas como Diógenes Gasparini, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e, recentemente, Eros Grau, sustentam a existência de regulamentos autônomos no ordenamento constitucional, a partir da EC nº32/01.

A respeito da previsão dos regulamentos autônomos, dispõe Diógenes Gasparini,

Esses regulamentos, entre nós, ora existiram, ora não. Desapareceram com a Constituição Federal de 1988, mas parecem retornar na medida em que a Emenda Constitucional n.32/01 deu nova redação ao inc. VI do art. 84 dessa Lei Maior e lhe acrescentou as alíneas a e b [42].

Como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

No direito brasileiro, excluída a hipótese do art. 84, VI, com redação dada pela EC nº32, só existe o regulamento de execução, hierarquicamente subordinado a uma lei prévia, sendo ato de competência privativa do Poder Executivo [43] .

Eros Grau, utilizando-se da classificação material das funções estatais (função normativa, função administrativa e função jurisdicional) admite, de forma implícita, os regulamentos autônomos na ordem jurídica, porque decorrentes da função normativa, que consiste na produção de normas jurídicas. Para ele:

Regulamentos autônomos ou independentes são os que, decorrendo de atribuição do exercício de função normativa implícita no texto constitucional, importam exercício de função pelo Executivo para o fim de viabilizar a atuação, dele, no desenvolvimento de função administrativa de sua competência: envolvem, quando necessário, inclusive, a criação de obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa [44].

Vale destacar opinião de Hely Lopes Meirelles, que sempre defendeu, antes mesmo da EC nº32/01, a existência de regulamentos autônomos praeter legem, que visam suprir omissão do legislador (lacuna legal), a respeito de matérias de reserva da Administração, desde que não invadam a reserva da lei. Por reserva da Administração deve-se entender, na expressão de Canotilho, o núcleo funcional da administração resistente à lei, ou seja, um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento.

Para o autor,

Regulamento autônomo ou independente é o que dispõe sobre matéria ainda não regulada especificamente em lei. A doutrina aceita esses provimentos administrativos praeter legem para suprir a omissão do legislador, desde que não invadam as reservas da lei, isto é, as matérias que só por lei podem ser reguladas [45].

Em posição diametralmente contrária aos regulamentos autônomos, discorre Geraldo Ataliba,

É até ridículo que um brasileiro, tratando da faculdade regulamentar, à luz do nosso direito, abra um tópico sob tal designação. Tão ridículo como seria criar um capítulo sobre a inspiração de Alah a ação dos seus delegados-governantes. Nos dois casos, a finalidade de menção seria afirmar o não cabimento do próprio estudo, pela inexistência de reconhecimento constitucional e esses institutos [46].

Nesse contexto, Almiro do Couto e Silva sustenta:

[...]notadamente, sob a Constituição de 1988, é claríssima sua repulsa a outra modalidade, espécie ou tipo de regulamente que não seja o de execução das leis. Não há, em nenhuma hipótese ou circunstância, lugar para o poder regulamentar geral, ao estilo francês, para os regulamentos autônomos, ou para fonte originária do direito que não seja a lei [47].

Não obstante, numa análise apurada das hipóteses previstas no art. 84, inciso VI da Constituição Federal de 88, reconhecemos a existência de regulamentos autônomos apenas na alínea "a" do referido dispositivo, porém sem os contornos do direito europeu. É que o ordenamento jurídico não admite a competência normativa autônoma do Executivo que inova, de forma inicial, a ordem jurídica. O que se verifica é uma "criação intra muros" do Executivo, respeitada, portanto, a legislação existente.

Nos termos da alínea "a" do inciso VI, do art. 84 da Constituição Federal de 88, os regulamentos autônomos prestam a reger o funcionamento interno da Administração Pública, naquilo que Celso Antônio Bandeira de Mello denomina de "arranjo intestino" dos órgãos e competências já criados por lei. O novo dispositivo constitucional, introduzido pela EC 32/01, confere poderes restritos ao Presidente da República, limitados à organização e funcionamento dos órgãos da administração pública por decreto, já que a criação e extinção deles dependem de lei, o que não ofende o princípio da legalidade.

Nesse sentido, perquire Celso Antônio Bandeira de Mello:

Se o Chefe do Executivo não pode nem criar nem extinguir órgãos, nem determinar qualquer coisa que implique aumento de despesa, que pode ele, então, fazer, a título de dispor sobre organização e funcionamento da Administração Federal? Unicamente transpor uma unidade orgânica menor que esteja encartada em unidade orgânica maior para outra destas unidades maiores – como, por exemplo, passar um departamento de um dado Ministério para outro Ministério ou para uma autarquia, e vice-versa [...] [48].

Por outro lado, a alínea "b", do inciso VI, do art. 84 da Constituição Federal de 88, definitivamente, não traduz competência regulamentar autônoma do Executivo. A extinção de funções ou cargos públicos vagos implica, na verdade, na produção de ato de efeitos concretos, que não se coaduna com a natureza normativa do regulamento, de estabelecimento de normas sobre a matéria.

Sustenta, com acerto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

A competência, quanto a alínea a, limita-se à organização e funcionamento, pois a criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública continua a depender de lei, conforme art. 88, alterado pela Emenda Constitucional nº32. Quanto à alínea b, não se trata de função regulamentar, mas típico ‘ato de efeitos concretos’, porque a competência do Presidente da República se limitará a extinguir cargos ou funções, quando vagos, e não estabelecer normas sobre matéria. [49].

Vale destacar que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, nas ADI 2857-0 e ADI 3254-2, reconhece a iniciativa do chefe do Poder Executivo, mediante decreto, apenas na elaboração de normas que remodelem as atribuições de órgãos pertencentes à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação, tal como prevê a alínea "a" do inciso VI do art. 84 da Constituição Federal de 88.

[...}Vale dizer, a criação e extinção de órgãos da administração pública depende de Lei, de iniciativa do Poder Executivo. E, uma vez criado o órgão, sua organização e funcionamento será regulado por Decreto (art. 84, VI) (ADI 3254-2, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 2-12-05).

Inclusive, na ADI 3232-1, reconhece que o decreto previsto na alínea "a" do inciso VI, do art. 84 da Constituição Federal, tem natureza de ato normativo derivado, que não inova, de forma inicial, a ordem jurídica. Dispõe o Min. relator Cezar Peluso,

Ora, escusa advertir que decreto expedido no exercício de competência regulamentar do chefe do Poder Executivo não é lei em sentido formal, nem ato normativo originário ou independente, mas derivado, cuja eventual inovação necessária na ordem jurídica não pode implicar criação de direitos nem de obrigações, objeto de competência legiferante privativa da Constituição ou da lei, pois se preordenada a prever normas tendentes a viabilizar as formas de execução desta ou daquela por parte do Executivo (ADI 3232-1/TO, rel. Min. César Peluso, DJE 3-10-08).


5.Conclusão.

No Brasil, de acordo com o sistema de hierarquia das normas, sempre se entendeu que os regulamentos e, pois, também os demais atos normativos infralegais, como portarias, circulares, resoluções, estão condicionados pela lei. Como observa Almiro do Couto e Silva [50], desde a Constituição do Império não se modificou, substancialmente, no quadro da hierarquia das normas e dos vínculos de supremacia e subordinação entre elas estabelecidos, as posições ocupadas pelas leis e pelos atos normativos infralegais, dentre os quais se destacam os regulamentos.

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Assim, assevera Victor Nunes Leal,

Há, pois, nos regimes de constituição rígida, ou melhor, nos regimes de supremacia da Constituição sôbre as leis, uma hierarquia das normas obrigatórias vigentes no Estado. Essa hierarquia, como é sabido, tem três graus: a) constituição; b) leis; c)regulamento. Nessa gradação, a generalidade acompanha a obrigatoriedade. A Constituição é mais genérica do que a lei e prima sobre ela; a lei é mais genérica do que o regulamento, e está em plano superior ao dêste [51].   

O regulamento, como ato normativo infralegal, não pode estabelecer normas contra ou ultra legem. Não pode inovar, de forma inicial, a ordem jurídica, como a lei o faz. Não pode criar direitos, obrigações, proibições, nem medidas punitivas. Afinal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei (art. 5º, II). O regulamento, ao contrário, tem que se limitar a estabelecer as normas sobre a forma como a lei será cumprida pela Administração Pública, sob pena de sofrer controle dos excessos.

O Executivo exorbita do Poder Regulamentar sempre que contraria a lei. Para Almiro de Couto e Silva [52], a contrariedade da lei ocorre "tanto quando o regulamento dispuser de forma distinta do que dispõe a lei, criando, por exemplo, direitos e obrigações que ela não previu, como, quando, na ausência ou no silêncio da lei, editar regras jurídicas novas. Nas duas hipóteses tem o Congresso Nacional a faculdade de sustar os atos normativos do Poder Executivo".

O art. 49, inciso V da Constituição Federal de 88, outorga competência exclusiva ao Congresso Nacional para "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar". Por sustar deve-se entender "suspender". Trata-se de controle político, que será exercido diretamente pelo Legislativo, não podendo ir além da sustação da eficácia do ato normativo, pois a declaração da nulidade competirá ao Judiciário fazê-la. .

Como esclarece Manoel Gonçalves Ferreira Filho [53], "o preceito em exame confere ao Congresso Nacional competência para, por meio de decreto legislativo, suspender a eficácia de atos normativos do Poder Executivo. Ato este que há de ser normativo, ou seja, que estabeleça normas gerais, suscetíveis de aplicação a uma generalidade de casos. Ato individual, portanto, não pode ser sustado pelo Congresso Nacional".

A respeito do controle político exercido pelo Poder Legislativo sobre a Administração, leciona Di Pietro,

[...]essa atribuição, prevista no art. 49, inciso V, constitui inovação da Constituição de 1988, da maior relevância, porque permitirá ao Poder Legislativo controlar, mediante provocação ou por iniciativa própria, a legalidade dos atos normativos do Poder Executivo, sustando os seus efeitos independente de prévia manifestação do Poder Judiciário [54].

Na doutrina, não há dúvidas com relação ao controle judicial de constitucionalidade e legalidade do regulamento que contraria lei. Contudo, o Supremo Tribunal Federal [55] fixou entendimento de que o regulamento executivo que, a pretexto de complementar determinada matéria legal, vier a extrapolar o seu âmbito de incidência, incidirá apenas em ilegalidade, afastando a análise de constitucionalidade que a questão poderia dar ensejo.

Dentro do contexto, dispôs o relator Min. Celso Mello:

"Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha permanecido citra legem, que, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata" (ADI 996-6-DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ 06-05-94).

No sistema jurídico brasileiro, os regulamentos são, indiscutivelmente, normas de hierarquia inferior à lei. Nesse sentido, o primeiro confronto há de ser em relação à lei, e não à Constituição, ainda que se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, potencial violação a Carta Magna. O regulamento executivo que inova ou contraria disposição legal, para o Supremo Tribunal Federal, hoje, é considerado ilegal, e não inconstitucional, inviabilizando a utilização da fiscalização normativa abstrata.

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Sobre a autora
Ivana Mussi Gabriel

advogada em São José do Rio Preto (SP), professora universitária, especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestranda na ITE/Bauru.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABRIEL, Ivana Mussi. Poder regulamentar no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2199, 9 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13119. Acesso em: 5 nov. 2024.

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