CAPÍTULO 2 – INCENTIVOS
Feitas nossas considerações sobre os créditos de carbono, passaremos a tratar do termo genérico incentivo, no escopo de qualificar os créditos de carbono como incentivo do Direito Internacional Ambiental. Importante salientar, desde logo, que o emprego do termo incentivo pode se dar nos mais variados campos da ciência e dos ramos de estudo. Todavia, de forma a não se distanciar do tema deste trabalho, focaremos a abordagem nos aspectos jurídicos, essencialmente no que se refere ao Direito Internacional Ambiental.
Pois bem. O vocábulo incentivo tem sua origem do latim incentivus, e, na definição do Dicionário Brasileiro Contemporâneo, é "aquilo que excita ou estimula; estimulante; s.m. estímulo; o que estimula" [22].
Uma outra definição, um tanto semelhante, trazida pelo Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, revela que incentivo é aquilo "que incentiva, que excita; s.m. aquilo que incentiva, que estimula; estímulo" [23].
Das definições se infere que a ideia de incentivo está intimamente ligada a estímulo, excitação. O incentivo, portanto, tem função de estimular, excitar alguma coisa. Não é sem motivo afirmar que o incentivo é capaz de modificar determinada situação, podendo levar dinamicidade ao que era estático. Da mesma forma, não é prejudicada a afirmação de que o incentivo é capaz de corrigir determinada situação de erro, desde que o estímulo seja no sentido de correção. Com isso, se antes não havia motivos – ou estímulos – para o sentido correto, agora há.
Ocorre que, muitas vezes, para que sejam alcançadas determinadas metas, ao invés de incentivos, são criadas sanções para o caso de descumprimento. Para tanto, ao invés de se estimular a correção, pune-se o erro. É o que se pode observar em algumas normas de Direito, na educação, no esporte, no comércio.
Em sua obra, Hans Kelsen observa: "conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes tipos – tipos ideais, não tipos médios. A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquier consequências. Também pode, porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar a esta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. No entanto, usualmente, designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal – a privação de certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos – a aplicar como consequência de uma determinada conduta, mas já não o prêmio ou a recompensa" [24].
Resta claro, pelo exposto, que há duas opções para o regramento das condutas: (i) punição para a conduta indesejada e (ii) incentivo à conduta desejada. Questionaremos, neste trabalho, a eficácia da aplicação de sanções no modelo kelseniano, principalmente no que concerne ao Direito Internacional Ambiental. Muito mais eficazes são as iniciativas de criação de incentivos pelo cumprimento dos acordos internacionais.
2.2.APLICAÇÃO NO DIREITO
Os incentivos, também denominados sanções premiais [25], têm função jurídica primordial no Estado de Direito. Isso porque, no âmbito interno do Estado, evitam que a máquina estatal exerça demasiadamente seu poder de polícia para o cumprimento das normas jurídicas.
Não se deixe de mencionar que a previsão de sanção exige fiscalização do Estado e, caso seja detectado o descumprimento, a aplicação da penalidade prescrita. É esse, justamente, o poder de polícia. Nesse sentido, Kelsen estabeleceu que "no domínio de uma ordem jurídica pode surgir uma situação – e de fato surgem tais situações [...] – em que uma determinada conduta humana, e, ao mesmo tempo, a conduta oposta, têm uma sanção como consequência" [26].
Os incentivos, por sua vez, dispensam o exercício estatal do poder de polícia, já que a consequência da conduta do particular fica em âmbito privado, qual seja, o benefício do incentivo. Isso gera, dentre outros fatores positivos, a redução dos gastos do Estado, além da diminuição da força coercitiva estatal perante a iniciativa privada.
Não por outro motivo, é cada vez mais notório o uso de incentivos nas previsões normativas de Direito, principalmente em matéria de meio ambiente. A título de exemplo, cite-se o Projeto de Lei n° 383/07 do Estado de São Paulo, que institui a Política Estadual sobre Mudança Global do Clima – PEMGC, pelo qual se prevê sanções premiais (incentivos, portanto) para aquele que complete o ciclo de proatividade ambiental, na forma de benefícios não-econômicos e reconhecimento público, dentre outros [27]. Também no âmbito das leis ambientais, é exemplo de incentivo jurídico o Projeto de Lei n° 494/07 do Estado de São Paulo, que cria incentivos fiscais a pessoas físicas e jurídicas que invistam em projetos de MDL [28].
Sâo cabíveis, ainda, muitos outros exemplos de criação de incentivos no âmbito estadual e nacional. No entanto, o presente trabalho volta-se mais propriamente ao âmbito internacional, razão pela qual passaremos a tratar dos incentivos do Direito Internacional Ambiental.
Ao de logo, cumpre mencionar que será abordado no item 5 do Capítulo 3 a nova forma da engenharia normativa do Direito Internacional Ambiental, pela qual foram criadas técnicas jurídicas que, dentre outras características, trouxeram mecanismos de incentivo ao cumprimento dos tratados internacionais. Como de praxe, restringiremos nossa abordagem aos tratados internacionais de cunho ambiental, que mereçam o devido destaque.
Citamos, primeiramente, a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, que trouxe a possibilidade de serem constituídos direitos sobre os recursos genéticos (propriedade intelectual), como forma de equilibrar a relação entre os países detentores de biotecnologia e os países detentores de biodiversidade. Os objetivos principais da Convenção eram, nos termos do art. 1°, "a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado" [29].
Seria possível, nos moldes tradicionais, que a mencionada Convenção delimitasse seus objetivos e estabelecesse sanções, caso não houvesse cumprimento. No entanto, demonstrando a evolução do Direito Internacional Ambiental, em busca da eficácia das normas jurídicas internacionais de proteção aos direitos difusos, o tratado internacional criou incentivos.
Um dos incentivos que merece destaque é a possibilidade de obtenção de patentes – e, com isso, rendimentos econômicos com os royalties – sobre determinados recursos genéticos. Com isso, é incentivada a pesquisa e, respeitados os preceitos do tratado, é possível uma repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos da utilização dos recursos genéticos.
Note-se que, em relação à eficácia do uso da propriedade intelectual em âmbito internacional, a Professora Maristela Basso já ressaltou que "o aumento da proteção do direito de propriedade intelectual e a certeza da proteção ensejaram o aumento do poder de mercado e o desenvolvimento do comércio internacional" [30]. E ensina: "a propriedade intelectual não conhece barreiras, já que os limites não foram feitos para as criações da inteligência (criações imateriais). Essas, pela sua própria natureza, não se submetem a contenções e têm uma tendência irresistível a cruzar fronteiras" [31].
Em continuidade, ainda no âmbito internacional, passaremos a tratar do incentivo previsto na Convenção do Clima, que após ser contemplada com o Protocolo de Quioto, passou a prever o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – e, consequentemente, os créditos de carbono – como intentivo ao cumprimento das metas de reduções de emissões de GEE.
2.3.CRÉDITOS DE CARBONO COMO INCENTIVO
Como trazida no item 1 do Capítulo 1 deste trabalho, nossa definição de crédito de carbono, nos termos do Protocolo de Quioto, é: a unidade padrão de redução de emissão de gases de efeito estufa (GEE), a qual corresponde a uma tonelada métrica de dióxido de carbono (CO2) equivalente, comercializável de acordo com as regras internacionais e nacionais de cada Parte, no escopo comum de reduzir e estabilizar as emissões de GEE em níveis tais que garantam a sadia qualidade de vida das gerações futuras.
Lembramos, mais uma vez, que o termo crédito de carbono aqui empregado refere-se às RCEs, que são oriundas da certificação das reduções de emissões de GEE por projetos de MDL.
Pois bem. Ainda em menção ao que já foi exposto neste trabalho, destacamos que a Convenção do Clima previu como objetivo principal, em seu art. 2°, "alcançar a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático".
Tal não foi, por óbvio, o único objetivo da Convenção. Entretanto, como dito, foi o objetivo principal. Bem por isso, as partes signatárias, a partir da ratificação, deveriam reduzir – lembre-se que, em alguns casos, foi permitido aumento das emissões, como no caso dos países menos desenvolvidos – suas emissões.
Neste raciocínio, uma vez assinado e ratificado o acordo, todas as Partes da Convenção deveriam ter suas emissões controladas, nos termos do que foi definido, sob pena de descumprimento do tratado. Ocorre que, por certo, não é simples a alteração do funcionamento de todo um parque industrial, de uma política ambiental doméstica, de um sistema agropecuário, do tratamento do lixo, da eficiência energética, dentre outras mudanças possíveis e necessárias para uma redução nas emissões de GEE. Dessa forma, devido ao alto custo das mudanças e à sua complexidade, haveria um risco considerável de que o objetivo da Convenção não fosse alcançado.
Para que isso não ocorresse, valendo-se dos moldes tradicionais dos tratados internacionais, poderiam ser criadas sanções, a serem aplicadas coercitivamente contra os países que descumprissem o acordo. Questiona-se, neste aspecto, se seria eficaz – ou mesmo possível – o uso da força contra as Partes que descumpriram o acordo, já que, necessariamente, os países que deveriam reduzir suas emissões são grandes potências mundiais.
Já foi dito que os países em desenvolvimento, em sua maior parte, não tinham metas de redução. Pelo contrário, em alguns casos foi prevista a possibilidade de aumento do índice de emissões, fundamentado no princípio da responsabilidade comum porém diferenciada [32]. Com isso, cria-se um cenário em que, mesmo se tratando de direitos difusos – direito ao meio ambiente equilibrado, direito à sadia qualidade de vida, dentre outros – há grandes possibilidades de descumprimento por parte dos países desenvolvidos, pelos motivos aqui já expostos. Junte-se a este cenário o fato de que, em havendo previsão no tratado, as sanções seriam aplicadas - ou suscitadas – pelos países em desenvolvimento.
Por óbvio, restariam prejudicados os termos do acordo internacional, e pífios seriam os resultados alcançados. Buscou-se, por este e outros motivos, na tendência evolutiva do Direito Internacional Ambiental, a criação de um outro mecanismo em vista ao cumprimento dos termos do tratado internacional. O resultado foi a previsão de incentivos para as reduções de emissões de GEE.
Um destes incentivos é tema deste trabalho, qual seja, o crédito de carbono, que foi apresentado ao mundo jurídico após a assinatura, na terceira Conferência das Partes, do Protocolo de Quioto. Este instrumento assumiu diversas formas jurídicas, sendo comercializado em todo o mundo das mais variadas maneiras, mantendo, entretanto, a característica de significar reduções de emissões de GEE.
Apresentando-se como RCEs, os créditos de carbono têm origem nas reduções de emissões de GEE por projetos de MDL e, nos termos do arts. 12.2 e 12.3 [33] do Protocolo de Quioto, podem ser utilizados para a contabilização das reduções de emissões dos países do Anexo I. Em outras palavras, da mesma forma em que os países do Anexo I devem modificar seu parque industrial, suas atividades agropecuárias, o tratamento do lixo e demais outros ramos de atividades para alcançar a redução de emissões, poderão comprar créditos de carbono de países não-Anexo I para contabilizar suas reduções.
A possibilidade de comercialização dos créditos de carbono tem favorecido aqueles países desenvolvidos que têm uma política ambiental restritiva, à exemplo da Alemanha, em que já se buscava, mesmo antes da assinatura dos tratados internacionais ambientais, o respeito à fragilidade do meio ambiente. Em tais casos, é ainda mais penosa a transformação das atividades para reduzir os índices de emissão – as emissões já estão num nível baixo.
Saliente-se, também, a facilidade com que os créditos de carbono são comercializados, sendo disponíveis em inúmeras bolsas por todo o mundo. Sendo assim, numa simples operação de venda e compra, uma parcela do compromisso de redução de emissões da parte compradora já está cumprida.
Mencione-se, ainda, que é favorecida a transferência de recursos e tecnologia dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, já que muitas vezes o projeto de MDL é financiado pela parte compradora e tem tecnologia de país desenvolvido. Ou seja, a obtenção de créditos de carbono pôde ser acompanhada (i) da transferência de recursos pelo investimento na elaboração do projeto de MDL, (ii) da transferência de tecnologia, a ser empregada no projeto e (iii) da transferência de recursos após a operação de venda e compra dos créditos.
Portanto, os créditos de carbono mostram-se como incentivo ao alcance da estabilização das emissões de GEE em níveis que não comprometam o sistema climático, objetivo da Convenção do Clima. E, sendo a Convenção uma fonte do Direito Internacional, apresentam-se os créditos de carbono como incentivo no âmbito do Direito Internacional Ambiental.