INTRODUÇÃO
A história tem nos mostrado com clareza que as inovações legislativas, de forma geral, causam sem número de dúvidas e interpretações, por vezes fundamentadas em vertentes doutrinárias, outras pela incauta opção dos legisladores. Esta, creio, deve ser a razão das mais variadas críticas que jorram entre os operadores do direito, mesmo na perfunctória análise do texto em vigor. Algumas se mostram tão somente relacionadas a temas de mera política criminal, enquanto outras se apegam aos equívocos legislativos, que talvez não ocorressem caso houvesse revisão técnica ou mesmo de mais profundidade no conhecimento jurídico-penal. Assim, em breve estudo, ainda sem digerir por completo a inovação, podemos traçar alguns comentários que entendemos de interesse, posto que essa nomorragia modifica substancialmente a adequação dos comportamentos que passam a ser típicos.
I – Quanto aos tipos abertos.
Entendem-se como abertos os tipos em que para fixação do injusto há necessidade de certo esforço intelectual que vai além da mera interpretação objetiva, autêntica ou literal do contido no dispositivo. Ferem um dos componentes reitores da reserva legal, denominada taxatividade. Com efeito, nesses tipos, a conduta não encontra adequação típica, se não após um exercício de livre convencimento por parte do intérprete, do que seja o elemento em que se possa firmar, não só a ilicitude do ato, mas seu amolde perfeito na fórmula com que pretende a lei punir. Esses tipos, ao contrário do que vem sendo observado, deveriam ser extintos de nosso ordenamento, quer por gerar insegurança naquele encarregado de aplicar a lei, quer por levar à interpretação excessivamente influenciada pelo subjetivo em seu juízo de valor. Amiúde, tais dispositivos se tornam letra morta na aplicação no caso concreto. Assim ocorre com expressões tais como "corromper", que grosso modo, significa agir sobre o puro de modo que o deixe de ser. Isso é fácil quando se analisa água potável, mas tremendamente insinuante quando está em jogo a personalidade, caráter e outros elementos desses âmbitos metafísicos.
A nova lei não se isenta desses tipos abertos. Basta atentar à reiteração o tipo da Corrupção de menores, com a edição do art. 244-B, incluído no Estatuto da Criança e do Adolescente, revogando a vetusta Lei nº. 2.252/54, quase esquecida diante da extrema dificuldade em demonstrar que a vítima não era corrompida antes do fato. Se se entende que a ameaça de punição é desestimulante, por que não punir, objetivamente, aquele que pratica infração penal na companhia de menores, admitindo por abstração o perigo de tê-los corrompidos? Assim entendeu o novíssimo diploma ao afastar a presunção de violência e punir, pura e simplesmente, quem pratica ato sexual com pessoa menor de 14 anos, afrontando o hodierno entendimento jurisprudencial já sedimentado quanto ao relativismo do discernimento nessa faixa etária.
De outro lado, a exemplo concreto de uma vítima embriagada, percebemos a dificuldade em estabelecer a relevância penal do "outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima", do artigo 215, sem confundi-lo, em suas nuanças, com "por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência" do artigo 217-A, § 2º., sem o necessário estabelecimento do grau de embriaguez.
II. Equívocos
O artigo 229, agora ampliando em seu alcance moral, segue como exemplar kantiano. A catapulta legislativa arremessa o dispositivo da espécie "prostituição" para o gênero "exploração sexual", certamente visando alcançar casas de massagem, de stripteases, shows eróticos. e outros exemplares de apelos carnais. O arremesso, entretanto, se surtir efeito, torna inexorável a clandestinidade desses estabelecimentos. É bom que se frise que as casas de prostituição sempre existiram, independente da maior ou menor repressão policial e a despeito da vigência do anterior artigo 229. Certamente, a inovação dá azo a novos espaços para corrupção. No plano deontológico, tanto é reprovável manter o estabelecimento como participar dos eventos ali praticados. Entretanto, pune-se quem os mantém, não importando saber do fato de um ser a razão da existência do outro. Causa interesse que o tipo básico não exige o emprego de violência, ameaça ou fraude. Será que enfim a humanidade terá êxito em expurgar a mais antiga das profissões? Estaríamos diante da tutela estatal travestida de desvelos paternalistas, em que se presume serem os profissionais do sexo carentes de proteção/punição jurídico-penal? O princípio da fragmentariedade foi olvidado nesta parte. E é nessa insistência legislativa que muitos são levados a confundir política criminal e neokantismo.
E, quanto ao artigo 217, a sistemática imposta pela inovação remete à outra dúvida: a vítima menor de 18 anos é vulnerável? À primeira impressão, entende-se que não. Entretanto, o legislador compara o menor de 18 anos à pessoa enferma ou deficiente mental no artigo 218-B e esta à pessoa com menos de 14 anos, no artigo 217. Assim, por adição comutativa, chegamos ao resultado paradoxal. Com efeito (deletério, diga-se), o dispositivo generaliza menores de 18 anos, sem especificar o menor de 14 anos e consta na rubrica "favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (grifo nosso). Destarte, ao incluir os menores de 18 anos nesse mesmo dispositivo, por consequência, atribui-lhe essa qualidade, por força da interpretação de acordo com a rubrica, da mesma forma que entendemos ser comercial a correspondência mencionada no artigo 152, que se repete no artigo 217, quanto a ser vulnerável a pessoa menor de 14 anos. Ou, à falta de outra interpretação, entende-se um ou outro como exceção à regra. E, ademais, ferindo o princípio da proporcionalidade, equipara o menor de 18 ao menor de 14 anos, conflitando explicitamente com o que parece ser o escopo da inovação, ou seja, punir com mais severidade os crimes sexuais motivados pela pedofilia.