4 O PAPEL DA CONVENÇÃO N. 158 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO FRENTE AO FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO
O neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais se pode assinalar:
"(i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos, resultou um processo extenso e profundo da constitucionalização do Direito". (BARROSO, 2007: 216)
Inobstante a locução "constitucionalização do Direito" comportar múltiplos sentidos, privilegia-se aquele associado ao efeito expansivo das normas constitucionais,
" (...) cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional ". (BARROSO, 2007: 217)
No caso brasileiro, verifica-se que, embora tardio se comparado com as nações europeias, o renascimento do direito constitucional ocorreu no contexto do advento da Constituição de 1988, posto que nesta se percebe a "verdadeira viragem de Copérnico do Direito Constitucional", tendo em vista que "todo o ordenamento jurídico passaria a girar sob o eixo gravitacional da dignidade humana". (SCHIER, 2007: 262)
Nestes moldes, encontra-se a premissa maior desse fenômeno no âmbito nacional: a Carta Magna funciona como vetor de interpretação de todas as normas do sistema. Logo, toda interpretação jurídica é, também, constitucional, por aplicar direta ou indiretamente o diploma constitucional.
Por sua vez, como premissa menor, a Constituição de 1988 serve como parâmetro de validade para a norma infraconstitucional, de tal maneira que todos os demais ramos do direito devem realizar a "filtragem constitucional", ou seja, reinterpretar seus institutos sob a ótica constitucional.
Por conseguinte, o fenômeno da constitucionalização do Direito repercute sobre a atuação dos três Poderes, bem como nas suas relações com os particulares, e, ainda, nas relações entre particulares.
Em relação aos particulares, estabelece limitações à sua autonomia da vontade, subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais.
No tocante ao Poder Legislativo, além de fiscalizar, cabe também produzir leis que coloquem em prática os direitos fundamentais que abstratamente integram a base constitucional do País.
Quanto ao Poder Executivo, principalmente respeitar os direitos de defesa e desenvolver políticas públicas necessárias à satisfação dos direitos prestacionais.
No que tange ao Poder Judiciário, além de servir como parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado, de forma brilhante, o jurista Luis Roberto Barroso realça o papel a ser cumprido pelo Judiciário:
"resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o deficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, o que ocorrerá se atuar abusivamente, exercendo, preferências políticas em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional." (BARROSO, 2007:248)
Nos últimos anos, não se pode negar, verifica-se no País uma virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário, que busca judicializar as questões políticas e sociais.
Nos recentes julgamentos do STF constata-se, embora de forma tímida, a interpretação consoante à moderna hermenêutica constitucional, principalmente naqueles que conferiram efetividade ao direito de greve dos servidores públicos civis (MI N. 670-ES, MI N. 708-DF e MI N. 712-PA) - ao aplicar a lei que disciplina os movimentos grevistas no âmbito do setor privado e efeito supralegal (RE 466.343-1 SP) - para as regras internacionais sobre direitos humanos, ao declarar inconstitucional a prisão civil do depositário infiel, bem como o que salientou a "juridicização do processo decisório" (ADPF N. 45 MC/DF).
Contudo, alerta-se: o Brasil ainda não atingiu o ponto de equilíbrio entre a supremacia da Constituição, interpretação constitucional pelo Judiciário e processo político majoritário. Neste sentido, argumenta-se:
"o texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo tornam a tarefa complexa. Os diversos outros ingredientes da vivência brasileira espantam os riscos do tédio ou do marasmo, embora provoquem sustos paralisantes. A difícil tarefa de construir as instituições de um país que se atrasou na história exige energia, idealismo e imunização contra a amargura. Não adianta: ninguém escapa do seu próprio tempo". (BARROSO, 2007:249)
Tendo em vista que a Lei Maior cumpriu o seu papel de positivar os direitos que garantam condições mínimas a todos e se manteve aberta à superveniência de outros, em caso de omissão ou descumprimento desses direitos pelos Poderes competentes, há violação dos próprios preceitos constitucionais, o que é banido pelo ordenamento brasileiro, principalmente pelo Princípio da Vedação ao Retrocesso.
Assim, a preocupação central dos intérpretes do Direito de distintas esferas jurídicas, especialmente do Poder Judiciário, reside na efetivação desses direitos, posto que, de forma contrária, a inefetividade resultaria na própria crise do Estado Democrático de Direito.
De forma didática, evidenciam-se três obstáculos, que têm se reiterado nos últimos 20 anos, a serem superados pela comunidade jurídica:
"(...) de um lado, o ainda renitente (e injustificável) manejo, após 1988, de ultrapassada vertente tradicional, que nega eficácia jurídica a grande parte das regras da Constituição (tidas como não autoexecutáveis); ou, alternativamente, o manejo impróprio da teorização proposta pela vertente moderna, de maneira a suprimir, na prática, qualquer mínima eficácia jurídica a normas tidas como de eficácia contida ou de eficácia limitada. De outro lado, a recusa a conferir efeitos jurídicos reais à função normativa dos princípios jurídicos, e, em conseqüência, dos vários e decisivos princípios constitucionais. (...) Finalmente, a lacuna na construção e sedimentação (...) de uma permanente e reiterada jurisprudência de valores constitucionais, de natureza e direção essencialmente sociais, na linha de princípios, regras, fundamentos e valores que melhor caracterizam a Carta Magna". (DELGADO, 2009:140/141)
Reitere-se, o Judiciário também tem como missão a busca da efetividade material dos direitos fundamentais, de tal maneira que não pode se furtar de apreciar a desobediência a quaisquer modalidades de direitos fundamentais se devidamente provocado.
Por fim, destaca-se neste panorama, o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade do Poder Judiciário implementar políticas públicas:
"É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado." (ADPF nº 45 MC/DF)
4.2 A Convenção n. 158 da OIT sob à ótica da dignidade da pessoa humana
Embora a constitucionalização do Direito do Trabalho tenha se iniciado ao final da segunda década do século XX, foi após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento das constituições democráticas da França, Alemanha, Itália, e, em seguida, Portugal e Espanha, que a noção de direitos fundamentais do trabalho consolidou-se na seara constitucional, sendo que em todas elas o princípio da dignidade da pessoa humana revelou-se como núcleo de afirmação dos demais direitos. (DELGADO, 2006*)
No Brasil, esta nova miragem hermenêutica imposta ao Direito do Trabalho encontra o seu ápice na Constituição de 1988, que incorporou, de maneira absolutamente atual, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em seu núcleo, conferindo-lhe status multifuncional, sem prejuízo de combinar unilateralmente todas as suas funções: fundamento, princípio e objetivo. Assegurou-lhe abrangência a todo o sistema jurídico, político e social, bem como lhe garantiu amplitude de conceito em favor de uma dimensão social e comunitária de afirmação da dignidade humana, de forma a ultrapassar a visão estritamente privada, atada em valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. (DELGADO, 2006*)
Nestes moldes, para ser alcançada a dignidade do ser humano, como ser social, a Carta Magna e os tratados/convenções internacionais ratificados pelo Brasil (art. 5, §2º da CF/88) devem ser cumpridos, para que seja garantido ao indivíduo a intangibilidade de valores individuais básicos e um mínimo de possibilidade de afirmação no plano social circundante. Na medida desta afirmação social "é que desponta o trabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade mais bem elaborada, o emprego". (DELGADO, 2006*:155)
Conforme se percebe, o fenômeno de constitucionalização no ramo juslaboral é tão enfático que o conceito de direito fundamental ao emprego confunde-se com o próprio Direito do Trabalho, posto que neste assegura-se "o mais elevado padrão de afirmação do valor-trabalho e da dignidade do ser humano em contextos de contratação laborativa pela mais ampla maioria dos trabalhadores na sociedade capitalista". (DELGADO, 2006*:156)
Seguindo essa linha, destaca-se o Enunciado nº 2, da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, apontada a interpretação constitucional como caminho para efetivar a realização da proteção ao emprego em face da dispensa arbitrária.
Portanto, pugnar pela vigência da Convenção n. 158 da OIT é abolir a tradição abstracionista e excludente da cultura juspolítica brasileira, o que repercute, diretamente, na concretização do art. 7º, I da CF/88, no respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e na garantia de real efetividade do Direito do Trabalho no Brasil.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se que o cenário fático-jurídico hoje vivenciado representa uma verdadeira alienação ao fenômeno da constitucionalização do direito.
A defesa pela absoluta vigência da Convenção n. 158 da OIT é assunto de extrema relevância, posto que a sua repercussão não se atrela somente ao âmbito jurídico, como também incide em toda a sociedade, já que se percebe uma realidade em que há a banalização da dispensa injusta, e, por consequência, o empregado é tratado como produto defeituoso do capitalismo (pouco importando a sua individualidade nas relações familiares e sociais), no qual ocorre excesso de rotatividade de empregados, multiplicação de contratações precárias, ausência de formalidade na prestação de serviços pelo trabalhador e, se não bastasse, desemprego.
Inobstante a compreensão de que por meio da moderna interpretação constitucional "já seria possível banir as dispensas arbitrárias – seja com base nos direitos humanos em geral, nos princípios constitucionais, na norma do inciso I do art. 7º da CF, ou mesmo nos princípios do Código Civil", torna-se necessário o pleno vigor da Convenção n. 158 da OIT, por se reconhecer que "a sua utilidade prática é evidente". (VIANA, 2007:244).
Por todo o exposto, aplicar a Convenção n. 158 da OIT é reconhecer/respeitar o fenômeno da constitucionalização do Direito do Trabalho, "em que o princípio da dignidade da pessoa humana revelou-se como núcleo de afirmação dos demais direitos". (DELGADO, 2007:67-87)
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