5. Questões documentais
A Lei não define com precisão quais são os documentos que podem provar a situação de clandestinidade. O Decreto refere-se somente a "III - comprovante de entrada no Brasil ou qualquer outro documento válido que permita à Administração atestar o ingresso do estrangeiro no território nacional até 1o de fevereiro de 2009." Essa prova poderá ser difícil de ser mensurada. Relatos indicam que interessados tentam provar seu ingresso por contratos de aluguel de imóvel ou de veículo automotor, mas há rejeição pela Polícia Federal. Certo é que documentos particulares e unilaterais não podem provar o ingresso no território nacional. A melhor prova será, neste caso, a certidão de inscrição consular ou declaração do cônsul do país de origem do estrangeiro, quando possível, afirmando o comparecimento ao consulado do país do interessado em data anterior a 1º de fevereiro de 2009.
A apresentação do passaporte não é necessária. A dispensa é justificada pela possibilidade de ingresso regular no Brasil, com dispensa de visto, para os cidadãos originários e países com os quais o Brasil mantém acordo para dispensa de visto e apresentação de documento de viagem, como é o caso dos países do Mercosul, embora o acordo ainda não esteja vigente. [21] Porém, a falta do passaporte obriga o estrangeiro a buscar prova segura de seu ingresso no território nacional antes da data limite, recaindo no mesmo problema acima abordado sobre os clandestinos.
Quanto à tradução juramentada dos documentos, cumpre fazer menção ao Acordo de dispensa de tradução do Mercosul. Este tratado, já vigente, dispensa os cidadãos do Mercosul de traduzirem passaportes, certidões negativas de antecedentes criminais, certidões de nascimento e casamento e cédulas de identidade (artigo 2º). [22] Então, para os originários dos países do Mercosul, não vale a exigência de tradução juramentada da certidão de nascimento constante do artigo 1º, §2º, do Decreto 6.893/09.
6. Transformação em residência permanente
Não se pode deixar de registrar num comentário analítico da Lei o direito instituído ao estrangeiro anistiado de obter residência permanente no País, na forma do artigo 7º:
No prazo de 90 (noventa) dias anteriores ao término da validade da CIE, o estrangeiro poderá requerer sua transformação em permanente, na forma do regulamento, devendo comprovar: I - exercício de profissão ou emprego lícito ou a propriedade de bens suficientes à manutenção própria e da sua família; II - inexistência de débitos fiscais e de antecedentes criminais no Brasil e no exterior; e III - não ter se ausentado do território nacional por prazo superior a 90 (noventa) dias consecutivos durante o período de residência provisória.
O último requisito deve ser objeto de elevada atenção pelo estrangeiro anistiado que quiser obter a autorização de permanência. Não é clara, neste aspecto, a possibilidade de valer-se dos argumentos expostos acima para a situação do estrangeiro que saiu do País entre a data limite para ingresso no território nacional e a verificação de sua situação de irregularidade. O motivo é simples: neste caso, a Lei foi taxativa ao fixar a exigência de não haver longa ausência. Havendo justificativa, poderá o estrangeiro pleitear a residência permanente com recurso ao procedimento instituído pela Secretaria Nacional de Justiça para casos omissos e especiais.
Considerações Finais
Em seus aspectos técnicos, não obstante uma sequência de ponderações técnicas relacionada às possibilidades hermenêuticas de suas normas, a Lei tem condições de realizar amplamente seu mister, abrangendo estrangeiros nas mais diversas situações de irregularidade, tenham ou não se ausentado do território nacional, desde que mantenham ânimo de aqui fixar residência.
No nosso sentir, o mais apropriado é promover uma interpretação extensiva dos dispositivos legais, admitindo como anistiadas pessoas que se enquadram no escopo maior da Lei que é o de o País reafirmar sua vocação como país multicultural, multiétnico e de acolhimento. Este é o ensinamento do ex-Ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, exarado noutro contexto, mas que bem se aplica por revelar interpretação da vocação brasileira:
Devemos ter presente que a sociedade brasileira é fundamentalmente pluralista em sua origem, permanece pluralista em seu presente, e tem como vis directiva ser pluralista em seu futuro. [23]
Não é demais lembrar, para finalizar, que a anistia, ampla e irrestrita, realiza propósitos constitucionais, insculpidos nos artigos 3º, inciso IV, - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, e 4º, inciso II, - reger-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Esperamos que a anistia abra a via da revisão das normas sobre estrangeiros no País, para que possamos, nesse tema, rumar para uma sociedade cosmopolita, plural, multicultural, aberta e harmônica.
Notas
- BRASIL. Lei nº 11.961, de 2 de julho de 2009. Dispõe sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional e dá outras providências. DOU de 3.7.2009. BRASIL. Decreto nº 6.893, de 2 de julho de 2009. Regulamenta a Lei no 11.961, de 2 de julho de 2009, que dispõe sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional, e dá outras providências. DOU de 3.7.2009.
- BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. D.O.U. de 21.8.1980. Republicada pela determinação do artigo 11, da Lei nº 6.964, de 09.12.1981.
- BRASIL. Decreto n. 86.715, de 10.12.1981. Regulamenta a Lei n. 6.815, de 19.08.1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências. DOU, 11.12.1981.
- Outras situações poderiam ser aventadas, em especial as dos artigos 107 do Estatuto do Estrangeiro. Porém, nas vedações à aquisição proprietária previstas no artigo 106 e também aquelas referentes às zonas de fronteira, entendemos que as normas se dirigem sobremaneira aos órgãos de classe, à Junta Comercial e ao Oficial dos Registros Públicos e outras autoridades que devem cuidar para evitar a infração a esse dispositivo. Trata-se mais de nulidade da aquisição ou do registro do que de "situação migratória irregular". Doutra banda, o artigo 107, ao proibir exercício de atividade política ou interferência nos negócios públicos do Brasil, fá-lo sob pena de expulsão (artigo 65 do mesmo diploma legal) e, nesta condição, não pode se beneficiar da anistia.
- Vide notas e abaixo.
- MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Portaria n. 2.231, de 3 de julho de 2009. Estabelece as atribuições da Secretaria Nacional de Justiça e do Departamento de Polícia Federal no procedimento de concessão de residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional a que alude o Decreto nº 6.893, de 2 de julho de 2009. DOU, n. 126, Seção I, de 6.7.2009. p. 30. Dispõe o artigo 2º da Portaria: "Art. 2º Cabe à Secretaria Nacional de Justiça orientar e decidir os casos omissos e especiais advindos dos pedidos referidos no artigo 1º. Parágrafo único. Os casos omissos e especiais referido no caput poderão ser protocolizados na Central de Atendimento da Secretaria Nacional de Justiça ou em uma unidade do Departamento da Polícia Federal." O procedimento foi regulamentado pela SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria n. 22, de 7 de julho de 2009. Disciplina o procedimento para análise dos casos omissos ou especiais para concessão de residência no País conforme dispõe a Lei nº 11.961, regulamentada por meio do Decreto nº 6.893, ambos de 2 de julho de 2009. DOU, n. 129, 9 de julho de 2009, p. 48.
- TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO (TRF4). Apelação Cível n. 1999.72.00.010281-9. Rel. Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior - 4ª Turma Julgamento de 10.10.2000. A decisão foi mantida no STJ. Recurso Especial nº 371.100 - SC (2001/0158655-4). Relator Ministro Garcia Vieira, Decisão monocrática de 6.12.2001.
- TRF4. REO 1999.04.01.071230-2. Quarta Turma, Relator Valdemar Capeletti, DJ 24/11/1999,
- TRF4. REO 1999.04.01.087584-7. Quarta Turma, Relator Valdemar Capeletti, DJ 22/03/2000.
- TRF4. AMS 1999.04.01.083486-9. Terceira Turma, Relator Teori Albino Zavascki, DJ 01/03/2000.
- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp 278.461/SC. Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. julgado em 03/05/2001, DJ 20/08/2001. p. 354.
- STJ. REsp 278.461/SC. Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. julgado em 03/05/2001, DJ 20/08/2001. p. 354.
- STJ. AgRg no Ag 927.461/SP. Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 21/08/2008, DJe 23/10/2008.
- STJ. REsp 290.684/PR. Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, julgado em 03.06.2003, DJ 08.09.2003 p. 269. Sem grifo no original.
- MINISTÉRIOS DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES E DA JUSTIÇA. Portaria Interministerial de 28 de agosto de 2006. Dá execução ao Acordo, por troca de Notas, entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, para Implementação entre si do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e seu anexo. Diário Oficial da União, Seção I, Nº 166, terça-feira, 29 de agosto de 2006, p. 66-67. O Acordo do Mercosul ainda não está em vigor, faltando duas ratificações (Argentina e Paraguai), justificando o Acordo Operativo para dar-lhe vigência entre dois de seus Membros. Acordo semelhante que inclui Chile e Bolívia está na mesma situação. O Brasil já promulgou ambos os acordos. MERCOSUR. Acuerdo sobre Regularización Migratoria Interna de Ciudadanos del MERCOSUR. Brasilia, 5 de diciembre de 2002. Disponível em: