3. Critérios de diferenciação
Como visto, o critério da estrutura – pelo qual as regras são descritas da forma mais determinada possível, em oposição à imprecisão e incompletude dos princípios –, até pode servir para identificar os casos típicos, porém nos casos limítrofes, extremos, ele não serve como instrumento identificador da diferenciação, haja vista também existirem regras imprecisas, sendo um certo grau de vagueza insuperável pela linguagem.
Quanto ao conteúdo – valorativo para os princípios, avalorativo para as regras –, quando se observa que as regras também possuem um valor, percebe-se a incorreção do seu uso como critério distintivo.
No que concerne ao modo de aplicação – incidência por subsunção para as regras, incidência conforme a ponderação no caso concreto para os princípios; conflitos entre regras resolvidos pela invalidade de uma delas ou pela criação de uma exceção, conflitos entre princípios resolvidos pela ponderação, atribuindo-se um maior peso a um deles naquela situação –, vê-se que regras e princípios possuem um idêntico mecanismo de incidência, bem como que também pode haver ponderação entre regras.
No tocante ao critério dos efeitos, ainda que correta a observação de que só os princípios funcionam como vetores interpretativos, além de só eles atuarem sobre vastos segmentos normativos, usar-se essa constatação como critério distintivo implica definir a causa justamente pelos efeitos que produz, atitude cientificamente contestável.
Diante dessas observações críticas, tem-se que buscar outro(s) critério(s) para servir de instrumento diferenciador. Nesse momento, útil ter-se em mira ser mais preciso falar-se em critérios distintivos, posto a soma destes indicar de modo mais preciso quando se está diante de uma regra ou princípio.
Nessa linha de pensamento, pode-se pensar em dois critérios, a serem cumulativamente usados: o tipo da relação valor/conduta específica e a completude/incompletude da descrição.
Pelo primeiro, observa-se o tipo da relação que se dá entre o valor que a norma busca realizar e a conduta específica, se a norma prevê explicitamente, contém, cristaliza um valor ou finalidade, determinando-se a realização de condutas inespecíficas frente a casos concretos, está-se diante de um princípio. Por outro giro, se a norma prevê a realização de condutas específicas para as situações nela reguladas, condutas esta que, por sua vez, referem-se à realização de valores ou finalidades nela (norma) implicitamente contidos, está-se diante de uma regra. Um exemplo:
O princípio da isonomia vem descrito numa norma que contém um valor fundamental (a cristalina opção constitucional por se tratar com igualdade os iguais, e de forma desigual os desiguais), indicando uma conduta inespecífica a ser seguida para realizar este valor, porém, a efetivação dessa conduta em situações concretas depende de outras normas que lhes especifiquem as condutas específicas. Desse modo, quando se lê o art. 5º da CF, percebe-se estar diante de um princípio; quando se lê a norma legal que cria uma isenção tributária em favor dos mais pobres (relativa a certo tributo, como o imposto de renda), está-se diante de uma regra que densifica esse princípio, pois atribui uma conduta específica (proíbe a tributação de certas pessoas) realizadora de um valor previsto num princípio a que esta norma busca dar eficácia.
Esclareça-se apenas que todas as normas, incluindo os princípios, fazem menção a uma conduta tida como obrigatória, permitida ou proibida, contudo, no caso dos princípios essa conduta é inespecífica para regular casos concretos, daí requerer outras normas que lhes complementem a especificidade frente a certas situações. Ou seja, princípios e regras prevêem condutas, sendo que naqueles esta conduta é inespecífica para regular situações concretas, enquanto nestes ela é específica (da forma a mais detalhada possível).
O segundo critério – completude/incompletude –, refere-se à observação de que as regras têm pretensão de serem completas, contendo todos os elementos necessários a regular as condutas nelas previstas da forma a mais específica possível, enquanto os princípios funcionam de forma diversa, requerendo outras normas (só regras, ou até outros princípios e regras) que lhes densifiquem diante de casos concretos.
Nesse ponto, já identificados os critérios distintivos, e sendo facilmente perceptível essa relação no caso das regras explícitas, previstas através de textos escritos e detalhados, resta analisar como se dá essa relação diante de casos onde não existe esse texto expresso, ou onde a aplicação do sentido comum atribuído à regra, frente a certo caso, acaba contrariando os valores que a própria regra pretende realizar.
4. Regras implícitas ou ponderação? Texto e norma
Ausente regra lega expressa, pode-se estar diante de uma regra legal implícita, ou seja, assim como são possíveis os princípios implícitos, também são possíveis as regras implícitas, a serem descobertas pelo aplicador para certos casos concretos, onde estão presentes valores tutelados por determinados princípios.
Na verdade, toda norma, quer regra, quer princípio, representa o significado atribuído a partir de certo texto legal, sendo esse significado objetivável, capaz de influir no comportamento dos seus destinatários. Contudo, a práxis jurídica dá exemplos de casos onde não existe um texto legal expresso, capaz de determinar a conduta específica a ser seguida. Nessas hipóteses, costuma-se recorrer a casos semelhantes já apreciados (analogia), e quando nem estes são encontrados retira-se eficácia direta dos princípios, dizendo que naquela situação tal princípio tem maior peso e incide diretamente dessa ou daquela forma.
Nessas situações, parece mais correto defender-se que o aplicador finda encontrando uma regra que existe de forma implícita no ordenamento. Essa regra, que busca dar eficácia a certo(s) princípio(s), especifica certas condutas em certos casos. Com isso, evita-se dizer que o aplicador (juiz, procurador etc.) cria a regra do caso, válida apenas para aquele caso, o que ofenderia a própria separação de poderes, pois o que acontece é que o aplicador descobre uma regra para todos os casos semelhantes àquele, tendo o próprio sistema meios de unificar esse sentido para todos os casos onde isso aconteça, cabendo aos Tribunais Superiores essa tarefa de uniformizar o sentido das normas legais e/ou constitucionais (o mandado de injunção é exemplo de mecanismo processual que permite ao Judiciário descobrir regras implícitas, frente à omissão do Legislativo acerca de determinado tema).
Voltando-se a atenção para a pergunta-título do presente item (regras implícitas ou ponderação?), tem-se que a ponderação acaba descobrindo uma regra implícita, donde não haver uma relação de adversidade ou confronto, mais sim de causa-efeito.
Anote-se ainda que o ônus argumentativo necessário para a aplicação de uma regra implícita é muito maior do que àquele exigido para a simples aplicação de uma regra explícita, a exemplo do que ocorre com as regras de exceção.
De outra banda, importante anotar que a expressão "norma jurídica" muita vez é confundida com o texto dos diplomas legais, ou até mesmo com um artigo em especial. Na realidade, um único artigo pode conter várias normas, ou uma norma pode resultar da conjugação de vários artigos, como esclarece Pietro Perlingieri ao afirmar ser a noção de artigo somente técnica, servindo para expor uma complexa narrativa, às vezes extremamente concisa, outras mais diferenciadas, mas não coincidirem as noções de artigo e norma, já que "cada artigo apenas raramente encerra uma completa previsão normativa. Todavia, um mesmo artigo pode também conter mais de uma norma". [22]
5. O raciocínio jurídico e o ônus argumentativo
Na atividade interpretativa o aplicador, diante de certo caso concreto, inicialmente procura a regra específica para aquela situação, bem como o(s) princípio(s) que essa regra busca densificar. Caso exista a regra, extraída a partir de texto legal expresso, contribuindo esta para a realização do(s) respectivo(s) princípio(s), resta declarar a incidência e atribuir as consequências previstas no preceito normativo.
Agora, se existe a regra, com conteúdo especificado para os fatos típicos, mas diante do caso concreto o aplicador percebe que a sua aplicação contrariaria os princípios que a própria regra busca efetivar, ou então contrariaria outro(s) princípio(s) com forte carga valorativa para aquele caso, cabe ou a declaração de invalidade da regra, ou a declaração de haver uma regra de exceção aplicável a todos os casos semelhantes àquele.
Ademais, inexistente regra específica explícita, o aplicador descobre o(s) princípio(s) envolvido(s) com o caso concreto, e com base neste(s) declara haver uma regra implícita aplicável a todos os casos semelhantes.
Nessas duas últimas hipóteses o ônus argumentativo é muito maior, exigindo a perfeita descrição dos fatos, o que os diferencia da situação típica, qual(is) o(s) outro(s) princípio(s) em jogo, porque tem(êm) maior peso naquele caso, quais os exatos conteúdo e estrutura da respectiva regra (implícita ou de exceção) aplicável àquela situação.
Dito isso, importante salientar que as decisões jurídicas tomam por base normas, quer princípios, quer regras, positivadas, que atribuem consequências a certos fatos, donde outros tantos fatos simplesmente não serem normatizados, ficando à margem do direito [23]. O esclarecimento é útil para reforçar a necessidade de se estabelecer limites à atividade exegética, evitando-se que, diante da vagueza e indeterminação dos princípios, o aplicador caia na tentação de ver a incidência dos princípios sobre todo e qualquer fato, consoante o seu interesse pessoal.
Por outras palavras, fatos pertencentes ao universo de outros processos de adaptação social (religião, moda, moral, etiqueta etc.), caso não se encontrem, também, previstos em alguma regra jurídica explícita, são normalmente tidos por não juridicizados (por exemplo, o simples namoro), e só excepcionalmente vão constar de regras implícitas, nas hipóteses onde estes fatos contribuírem de forma expressiva para a efetivação de certo(s) princípio(s), sendo o ônus argumentativo exigido nessas hipóteses muito forte.
6. Conclusão: Regras
Analisando-se os critérios normalmente utilizados para fazer a diferenciação entre regras e princípios, pode-se dizer que:
O da estrutura – pelo qual as regras são descritas da forma a mais determinada possível, em oposição à imprecisão e incompletude dos princípios –, até pode servir para identificar os casos típicos, porém nos casos limítrofes, extremos, ele não serve como instrumento identificador da diferenciação, haja vista também existirem regras imprecisas, sendo um certo grau de vagueza insuperável pela linguagem.
Quanto ao do conteúdo – valorativo para os princípios, avalorativo para as regras –, quando se observa que as regras também possuem um valor, percebe-se a incorreção do seu uso como critério distintivo.
No que concerne ao do modo de aplicação – incidência por subsunção para as regras, incidência conforme a ponderação no caso concreto para os princípios; conflitos entre regras resolvidos pela invalidade de uma delas ou pela criação de uma exceção, conflitos entre princípios resolvidos pela ponderação, atribuindo-se um maior peso a um deles naquela situação –, vê-se que regras e princípios possuem um idêntico mecanismo de incidência, bem como que também pode haver ponderação entre regras.
No tocante ao critério dos efeitos, ainda que correta a observação de que só os princípios funcionam como vetores interpretativos, além de só eles atuarem sobre vastos segmentos normativos, usar-se essa constatação como critério distintivo implica definir-se a causa justamente pelos efeitos que produz, atitude cientificamente contestável.
Nessa linha de pensamento, pode-se pensar em dois critérios, a serem cumulativamente usados: o tipo da relação valor/conduta específica e a completude/incompletude da descrição.
Pelo primeiro, observa-se o tipo da relação que se dá entre o valor que a norma busca realizar e a conduta específica, se a norma prevê explicitamente, contém, cristaliza um valor ou finalidade, determinando-se a realização de condutas inespecíficas frente a casos concretos, está-se diante de um princípio. Por outro giro, se a norma prevê a realização de condutas específicas para as situações nela reguladas, condutas esta que, por sua vez, referem-se à realização de valores ou finalidades nela (norma) implicitamente contidos, está-se diante de uma regra.
O segundo critério – completude/incompletude – refere-se à observação de que as regras têm pretensão de serem completas, contendo todos os elementos necessários a regular as condutas nelas previstas da forma a mais específica possível, enquanto os princípios funcionam de forma diversa, requerendo outras normas (só regras, ou até outros princípios e regras) que lhes densifiquem diante de casos concretos.
Estabelecidos os critérios, cabe dizer que na atividade interpretativa o aplicador, diante de certo caso concreto, inicialmente procura a regra específica para aquela situação, bem como o(s) princípio(s) que essa regra busca densificar. Caso exista a regra, extraída a partir de texto legal expresso, contribuindo esta para a realização do(s) respectivo(s) princípio(s), resta declarar a incidência e atribuir as consequências previstas no preceito normativo.
Agora, se existe a regra, com conteúdo especificado para os fatos típicos, mas diante do caso concreto o aplicador percebe que a sua aplicação contrariaria os princípios que a própria regra busca efetivar, ou então contrariaria outro(s) princípio(s) com forte carga valorativa para aquele caso, cabe ou a declaração de invalidade da regra, ou a declaração de haver uma regra de exceção aplicável a todos os casos semelhantes àquele.
Ademais, inexistente regra específica explícita, o aplicador descobre o(s) princípio(s) envolvido(s) com o caso concreto, e com base neste(s) declara haver uma regra implícita aplicável a todos os casos semelhantes.
Nessas duas últimas hipóteses o ônus argumentativo é muito maior, exigindo a perfeita descrição dos fatos, o que os diferencia da situação típica, qual (is) o(s) outro(s) princípio(s) em jogo, porque tem(êm) maior peso naquele caso, quais os exatos conteúdo e estrutura da respectiva regra (implícita ou de exceção) aplicável àquela situação.
Em face de tudo quanto exposto, retornando-se ao título do trabalho (regras vs. princípios?), pode-se concluir dizendo que as regras e os princípios são as espécies do gênero norma jurídica, espécies estas que não são contrapostas, mas, pelo contrário, complementam-se na atividade hermenêutica, visando a mais precisa possível determinação das condutas e realização dos valores e finalidades objetivados pelo Estado Democrático de Direito, sendo o confronto entre as espécies excepcional e dependente da ponderação no caso concreto – entre a regra e o(s) princípio(s) que densifica vs. o(s) princípio(s) contraposto(s) –, para se poder extrair a solução adequada, ainda que o ônus argumentativo exigido para deixar de se aplicar a regra seja muito maior.