SUMÁRIO: 1. Introdução: uma breve nota sobre a evolução da expressão "princípio jurídico"; 2. Critérios de distinção entre princípio e regra; 2.1. Estrutura: determinabilidade das regras vs. indeterminabilidade dos princípios; 2.1.1. Revisitando a tipicidade tributária; 2.2. Conteúdo: valor dos princípios vs. desvalor das regras; 2.3. Modo de aplicação: "tudo ou nada" vs. ponderação; 2.4. Critério dos efeitos; 3. Critérios de diferenciação; 4. Regras implícitas ou ponderação? Texto e norma; 5. O raciocínio jurídico e o ônus argumentativo; 6. Conclusão: Regras vs. Princípios?
1. Introdução: uma breve nota sobre a evolução da expressão "princípio jurídico"
Estabelecer critérios para a distinção entre princípios e regras, bem como descrever sucintamente o modo como se relacionam na atividade interpretativa, eis o objeto do presente trabalho. Antes de adentrar no exame desse tema propriamente dito, importante traçar um panorama da evolução pela qual passou o termo "princípio jurídico", visando com isso ofertar contornos ao presente objeto de pesquisa.
Princípio é termo plurissignificativo, tendo sentido comum de início, ou fundamento. Cabe aqui perquirir o seu sentido jurídico. Para tanto, útil uma observação histórica da evolução do termo.
Na concepção jusnaturalista, princípio é metafísico, externo, imutável, superior ao ordenamento, expressando os fundamentos da ordem jurídica.
Com a formação do Estado Moderno e a consequente afirmação do positivismo jurídico, critica-se essa concepção, pois algo que não é cognoscível não pode servir de fundamento, nem pode ser utilizado para resolver conflitos, de modo que, nessa concepção, o princípio era fonte supletiva do Direito, apenas incidindo em caso de lacuna no ordenamento jurídico (falta de regra), mas ainda assim devendo ser descoberto dentro do sistema (se várias regras tinham um mesmo espírito, induzir-se-ia daí um princípio geral, a ser usado caso inexistisse regra específica para um certo caso).
Mais recentemente, essa concepção positivista-formalista cede lugar ao reconhecimento da necessidade de incorporação, pelo ordenamento jurídico, dos valores prevalentes na sociedade, mas não através de uma simples volta ao jusnaturalismo, e sim por meio de uma nova concepção de legalidade, que tenha por base não apenas regras (a serem aplicadas segundo um silogismo mecanicista), senão estas somadas aos valores prevalentes numa dada sociedade e época, representados justamente pelos princípios.
Com efeito, são esses os veículos condensadores dos valores fundamentais de certa sociedade, e por meio deles tais valores são positivados. E mais, positivados no texto constitucional.
Realmente, o movimento no século XX foi de passagem dos princípios, dos Códigos para os textos das Constituições, deixando estes de ser fontes supletivas (em ausência das regras), para se transformarem em fontes primárias, verdadeiros vetores que devem conduzir o intérprete na tarefa de atribuir significados às regras.
Assim, os princípios ganham status jurídico-constitucional. E mais, passam a ser considerados as chaves do ordenamento, seu fundamento, sendo as mais importantes normas, de forma que todas as outras devem seguir seus passos e efetivá-las na práxis.
Desse modo, princípios viram normas. De metafísica incognoscível ou fonte supletiva, passam a normas constitucionais, e as mais importantes, dando sentido e coerência ao próprio ordenamento. [01]
Abrindo um parêntese, pode-se dizer que a antiga distinção jusnaturalismo-positivismo, ainda que academicamente presente e didaticamente útil, perdeu muito de seu sentido, já que a discussão valorativa do direito moderno atual é, também, uma discussão normativa, devido ao fato da positivação dos valores fundamentais por meio dos princípios constitucionais (a discussão sobre liberdade, igualdade, dignidade humana é normativa).
Luigi Ferrajoli assim também se posiciona sobre o tema, ao afirmar que o direito positivo tem incorporado grande parte dos valores de justiça elaborados pelo jusnaturalismo racionalista, através da colocação dos direitos naturais elaborados nos séculos XVII e XVIII nas modernas Constituições, sob a forma de princípios normativos fundamentais, de modo a ter perdido, em grande parte, o sentido do conflito entre positivismo jurídico e jusnaturalismo, ao terem sido mudados os termos da separação entre Direito e moral, entre validade e justiça, entre direito como é e direito como deve ser. [02]
Voltando ao tema, a distinção entre princípios e regras deve ser vista a partir do critério utilizado. Nesse trabalho, utilizar-se-á os critérios do conteúdo, valor e modo de aplicação, como instrumentos possibilitadores da análise, seguindo-se a linha traçada por Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos [03], complementando-a, ainda, com a crítica acerca do critério dos efeitos produzidos.
2. Critérios de distinção entre princípio e regra
vs. indeterminabilidade dos princípiosA estrutura suporte fáctico – preceito (para certos fatos atribuem-se certas consequências) está presente tanto nas regras, quanto nos princípios. Marcos Bernardes de Mello cita como exemplo o princípio da isonomia, segundo o qual, havendo duas ou mais pessoas na mesma situação (suporte fáctico), a norma incide trazendo como consequência (preceito) a vedação, ao Poder Público e ao Legislador, de estabelecer tratamento diferenciado, ou então, havendo pessoas em desigual situação, a proibição de tratá-lo com igualdade. [04]
Porém, por esse critério, as regras teriam suporte fáctico e preceito determinados, estabelecidos através de relatos objetivos, completos, precisos, perfeitamente identificáveis e claramente diferentes dos relatos de outras normas, é dizer, os elementos do suporte fáctico e as consequências atribuídas seriam precisamente descritos na regra legal; em oposição aos princípios, que possuiriam suporte fáctico e preceito indeterminados, ou seja, incompletos, com elementos descritos de forma imprecisa, apenas correlacionáveis entre si, requerendo uma tarefa complementadora e concretizadora por parte do aplicador.
Essa diferenciação baseada na estrutura pode ser melhor compreendida a partir da análise da tipicidade tributária, onde esse critério constitui elemento há bastante tempo utilizado e trabalhado.
O entendimento tradicional acerca da tipicidade foi feito com maestria por Alberto Xavier, [05] em clássica lição até hoje muito difundida, e que encontra suas notas distintivas nos elementos seletividade (cabe ao legislador escolher os fatos tributáveis, sendo vedado o recurso a cláusulas gerais etc.), taxatividade (a lei deve conter uma descrição rigorosa dos elementos constitutivos do tipo tributário, sendo esses taxativamente postos, é dizer, constituem um numerus clausus, o que implica uma descrição perfeita e plena dos elementos, incompatível com lacunas ou o uso de analogia), exclusivismo (os tipos tributários fazem uma valoração definitiva e completa dos seus elementos constitutivos, com exclusão de quaisquer outros) e determinação (os elementos do tipo devem ser expostos de forma extremamente precisa e determinada, de modo a excluir qualquer margem de apreciação subjetiva no caso concreto por parte do aplicador da lei, vedando-se os conceitos indeterminados).
Assim, em homenagem a uma absoluta previsibilidade da quantia a ser paga pelos cidadãos (que devem encontrar na lei todos os elementos necessários para a quantificação do débito, vedando-se margens de avaliação subjetiva ao aplicador), a legalidade tributária ganha reforço em relação a uma legalidade apenas formal, sendo tal reforço informado pela tipicidade, que encerra uma formulação legal extremamente rígida, onde os elementos constitutivos são taxativamente escolhidos pelo legislador, com exclusão de quaisquer outros, além de seus respectivos conteúdos serem determinados na própria lei, restando ao aplicador uma mera operação de subsunção autônoma. Eis o clássico conteúdo da estrita legalidade em matéria tributária.
Já Misabel Abreu Machado Derzi procedeu a uma atualização dessas lições, ao chamar a atenção para o fato de a acima denominada tipicidade tributária encerrar uma forma de pensar por meio de conceitos fechados, em oposição aos tipos abertos. Estes – os tipos – consistem numa ordem rica de notas referenciais ao objeto, porém renunciáveis, que se articulam numa estrutura aberta à realidade, flexível, gradual, decorrendo o sentido dessa totalidade, e onde os objetos se ordenam pelo método comparativo; enquanto aqueles – os conceitos fechados – denotam o objeto por meio de notas irrenunciáveis, fixas, rígidas, ordenadora dos objetos por meio da relação de exclusão (ou... ou), baseada na regra da identidade, empreendendo-se classificações dotadas de rigorosa separação entre as espécies. [06]
Por conseguinte, o tipo serve aos flexíveis princípios jurídicos, reforçando a funcionalidade e adequação da estrutura normativa às mutações socioeconômicas, em prejuízo da segurança jurídica, primazia da lei e uniformidade de tratamento dos casos, dando-se o contrário com o conceito fechado (reforço da segurança em detrimento da adequação normativa à realidade). Conclui a autora em comento que, à luz da Constituição, prevalecem, no direito tributário, os princípios de segurança, certeza e previsibilidade, devendo a lei primar pela precisão, definição e objetiva determinação, evitando a utilização de conceitos indeterminados, fluidos e transitivos.
Desse modo, fecha-se a noção da estrita legalidade tal qual concebida tradicionalmente, como pedra angular da segurança jurídica, traduzida na garantia de que só a lei produzida pelo Parlamento e segundo o devido processo legislativo pode servir de veículo para intervenções na seara tributária, e mais, essa lei deve conter todos os elementos necessários à incidência descritos de forma rígida, taxativa, minudente, sem deixar margem de discricionariedade ao aplicador, configurando uma forma de delinear a tributação baseada em conceitos fechados, determinados, preconcebidos e impassíveis de mutação atualizadora.
2.1.1. Revisitando a tipicidade tributária
Como visto, a forma de pensar por meio de conceitos classificatórios, constituídos por um conjunto de elementos taxativa e exclusivamente selecionados e dispostos na lei, cujo conteúdo significativo deveria ser na própria lei determinado, de modo a suprimir qualquer margem de discricionariedade na atividade do aplicador-intérprete, consistiu (ou consiste?) na forma predominante de se pensar o direito tributário.
Todavia, é impossível falar-se em determinação absoluta dos conceitos legais, haja vista a necessária maleabilidade dos signos linguísticos quando postos diante de diferentes contextos fácticos. Isso para não falar que os princípios jurídicos não admitem essa forma de pensar do "tudo ou nada", mas, pelo contrário, requerem concretização harmonizadora, conciliadora de princípios em choque, sendo inevitável afirmar-se que referidos princípios também incidem no direito tributário, aliás, incidem até com mais frequência, haja vista a escolha de uma normatização analítica feita pela Carta Magna de 1988.
Nesse quadro, começa a surgir a necessidade de uma revisão desses conceitos, mas que deve ser norteada pelo cuidado para não se cair no realismo jurídico, no voluntarismo judicial antidemocrático, incontrolável e imprevisível.
Nessa linha, interessante trazer à tona as lições de Humberto Ávila, para quem a tradicional separação feita pela doutrina entre o conceito de classe – formado por "uma soma rígida de elementos distintivos à qual um conjunto de fatos deve ou não ser subsumido" [07] – e o conceito de tipo – que "representam uma totalidade graduável e aberta à qual um conjunto de fatos pode ser correlacionado em grau maior ou menor" [08] –, deve ser revista.
Com efeito, defende o citado autor a impossibilidade de se extrair uma significação plena de conceitos jurídicos abstratos, contidos na lei tributária, independentemente do contexto fáctico, bem como, por força dos princípios, que alguns elementos dos conceitos de tributo podem ser prescindíveis em certas situações, o que acaba por assemelhar o pensamento conceitual ao tipológico. Assim, a anterior diferenciação entre pensamento conceitual (identificado numa rígida relação de identidade) e pensamento tipológico (que funcionava numa gradual e aberta relação de semelhança, cujos diferentes graus podem ser maior ou menor) acaba sem utilidade prática, pois mesmo os conceitos não operam por uma rigorosa relação de "identidade" entre elementos do conceito e fatos ocorridos, senão por uma relação de correlação em grau o mais determinado possível. [09]
Conclui o autor em comento que "o tipo não representa nenhuma forma autônoma de pensamento que possa ser confrontada com o conceito", [10] sendo a discussão sobre conceito e tipo um problema aparente, fruto de uma anterior e já superada concepção da norma jurídica como texto geral e abstrato, cujo conteúdo seria previamente determinado em termos abstratos, independentemente da realidade fática subjacente. [11]
Se a distinção entre conceito de classe e tipo perdeu a utilidade prática, certo é dizer que a "determinação" dos elementos do conceito deve ser substituída pela "determinabilidade" no maior grau possível, pois:
A distinção é sutil, mas de grande importância, pois os resultados aqui encontrados mostram que, de um lado, uma exigência de determinação definitiva não pode ser cumprida pela linguagem, mas, de outro lado, o legislador deve inserir os elementos materiais da obrigação tributária com o maior detalhamento possível, por meio de
elementos distintivos determinados ao máximo, naquelas matérias que possam ser normativamente padronizadas e que, portanto, não digam respeito a prerrogativas técnicas da administração nem sejam incompatíveis com uma regulação com pretensão de permanência. O ‘dever ser’ é restringido pelo ‘ser’. [12]
Portanto, a mudança no conceito de "lei", que acompanha a evolução hermenêutica ocorrida desde a escola da exegese até os dias atuais, não passa imune ao direito tributário e à legalidade em particular, sendo certo que, especialmente diante dos princípios constitucionais tributários, faz-se impossível defender uma tipicidade fechada, formada por um somatório de elementos taxativos, exclusivos e determinados, [13] devendo tal noção ser atualizada por uma legalidade o mais determinada possível, onde os elementos do suporte fáctico da lei tributária sejam enumerados, mas sem perder de vista a insuperável margem de indeterminação dos signos (a serem objetivados numa atividade hermenêutica declaratória, mas não rígida, que leve em conta a variabilidade do sentido conforme a variabilidade dos fatos) e a possibilidade de graduação em cada um desses elementos (que vai da identidade com o fato real até o limite mais extremo, desde que não perca o núcleo significativo mínimo).
Essa análise, ainda que mais intensa no direito tributário, é extensível aos outros ramos, podendo servir como interpretação geral, para fins de esclarecer a extrema dificuldade de se editar regras totalmente determinadas, cujos elementos sejam perfeitamente identificáveis, completos, precisos, haja vista todo signo linguístico possuir uma margem de indeterminação, bem como a possibilidade de graduação em seus elementos (um núcleo significativo central que serve para os casos típicos, e pode ser estendido até que se percam seus elementos característicos, hipótese em que se estará diante de outro signo).
Portanto, as regras são descritas da forma mais determinada possível, pois uma certa margem de indeterminação é característica intransponível à linguagem, bem como uma certa vagueza dos signos linguísticos em particular; ao contrário dos princípios, que não têm essa pretensão à determinação, sendo caracteristicamente indeterminados. Contudo, tal critério pode até servir para caracterizar muitas regras – aquelas mais comuns, mais facilmente perceptíveis, como às relacionadas a limites de tempo –, mas não é suficiente para a generalidade dos casos, ou seja, não serve para as regras que também são descritas de forma indeterminada, ainda que em grau menos impreciso do que nos princípios.
Assim, a diferença é didaticamente útil caso entendida como uma forma de pensar as regras como normas descritas do modo "o mais determinado possível", em oposição aos princípios, normas descritas de forma indeterminada, requisitando um maior esforço exegético do aplicador na tarefa de descrever seus suportes fácticos e preceitos.
Todavia, percebe-se não ser possível, nos casos extremos, ter-se esse critério como suficiente para fins de se diferençar uma regra de um princípio, posto haver regras que também têm um conteúdo de imprecisão. Ou seja, ainda que o critério sirva para os casos típicos – uma norma que preveja certo limite de idade como elemento do suporte fáctico, como nos casos de maioridade ou aposentadoria compulsória –, existem hipóteses de regras cujos suportes fácticos e preceitos não são tão precisos e completos assim (ex: auferir renda, transexualidade para fins de mudança de sexo etc.).
2.2. Conteúdo: valor dos princípios vs. desvalor das regras
É comum se utilizar o critério do conteúdo normativo para se diferençar os princípios das regras. Os princípios corresponderiam às normas com forte conteúdo valorativo, indicativas das opções políticas fundamentais e das finalidades a serem perseguidas, enquanto as regras apenas indicariam condutas especificamente determinadas, sem maiores indagações quanto ao aspecto valorativo.
Linhas acima, já se adiantou que um positivismo formalista, distanciado dos valores e finalidades vigentes em certa sociedade e época, não mais atende às necessidades do mundo moderno, especialmente após os horrores da Segunda Guerra Mundial, donde esses valores passarem progressivamente a fazer parte de normas jurídicas, sobretudo por força dos princípios constitucionais. Quer dizer, os princípios realmente são normas que carregam forte conteúdo valorativo.
O problema está em se pegar essa afirmativa e utilizá-la como critério para a distinção entre princípios e regras, sobretudo por se negar conteúdo valorativo às regras. Com efeito, as regras densificam, pormenorizam, detalham perante situações concretas, enfim, descrevem com pretensão de completude e definitividade, valores contidos nos princípios.
Elas – as regras – densificam perante as situações nelas descritas os valores contidos nos princípios. Elas – as regras – também contêm valores, justamente os valores peculiares aos princípios a que elas buscam dar efetividade. Parece incorreto negar caráter valorativo às regras, pois estas representam opções valorativas que buscam descrever para certos casos os valores acolhidos em certos princípios. O raciocínio indutivo ajuda na compreensão do fenômeno:
A proteção à maternidade é um valor acolhido pela sociedade brasileira e normatizado no art. 6º da CF, correspondendo a um princípio que prescreve ser dever do Estado e da sociedade proteger a gestação e a primeira-infância (por meio de condutas que não são desde logo especificadas). Licença-maternidade, preferência em filas etc. são regras que densificam o princípio, descrevendo condutas que buscam realizar o valor nele contido.
Essas regras (licença-maternidade etc.), ao densificarem o valor contido no princípio, acabam, elas também, tendo um valor, buscando realizar uma opção valorativa – proteger à maternidade, ao invés de tratá-la de forma indiferente ou mesmo prejudicial –, ainda que com eficácia restrita apenas às situações nela previstas.
Nesse sentido, as regras também buscam realizar um valor, não sendo, portanto, avalorativas. Tanto assim que, na hipótese de surgir, num caso concreto, uma forte razão contrária à realização do valor previsto na regra, pode-se deixar de aplicá-la, utilizando-se, em seu lugar, outra norma-regra de exceção, ou então se declarando a sua invalidade.
De outra banda, os princípios também se referem a condutas a serem realizadas – eles se dirigem às autoridades e particulares, determinando, proibindo ou permitindo certos comportamentos, carecedores de uma complementação mais especificadora diante dos casos concretos –, ainda quando as prescrevem de forma parcial e indeterminada, requisitando um estado ideal de comportamentos a serem implementados, especialmente por força de regras mais específicas.
Nessa linha de pensamento, é comum a afirmação de que, numa situação concreta contrária aos valores perseguidos por determinado princípio e onde inexiste uma regra específica, pode o aplicador ditar o comportamento retirando sua eficácia diretamente do princípio em questão. É dizer que os princípios podem incidir diretamente sobre uma situação concreta, mesmo diante da ausência de regra-legal expressa, de modo que eles também se referem a condutas (ainda que de forma "normalmente" inespecífica). Ressalve-se apenas que, nesses casos, parece ser mais correto defender que o aplicador descobre uma regra existente de forma implícita no ordenamento, construindo a sua argumentação a partir da análise do(s) princípio(s) envolvido(s) na situação.
O próprio sistema prevê mecanismos, a exemplo do mandado de injunção, que possibilitam ao aplicador, diante da ausência de regras-legais específicas, estabelecer condutas retirando sua eficácia diretamente de princípios.
Dito isso, parece correto afirmar que o critério do conteúdo não é cientificamente imune a críticas, pois tanto as regras também contêm valores, como os princípios também se referem a condutas, ainda que seja didaticamente útil, por reforçar a ideia de que princípios se referem a valores – inicial e preferencialmente, mas não exclusivamente –, e regras se referem a condutas – inicial e preferencialmente, mas não exclusivamente.
A diferença parece residir na qualidade da relação conduta/valor, cabendo aos princípios primeiramente acolher o valor, e secundariamente prescreverem condutas indeterminadas tendentes à sua realização, enquanto as regras primeiramente prescrevem condutas específicas, que por sua vez visam realizar o(s) valor (es) contido(s) em certo(s) princípio(s).
2.3. Modo de Aplicação: "tudo ou nada" vs. ponderação
Por esse critério, lastreados nas premissas teóricas desenvolvidas por Dworkin [14] e Alexy [15], as regras seriam aplicadas por "subsunção", de modo que acontecendo os fatos nelas descritos se dá a incidência e consequente produção dos efeitos previstos ("tudo ou nada"), e em caso de conflito entre regras igualmente em vigor, só uma pode ser aplicada, de modo a se expurgar a outra do ordenamento ou se usar uma exceção, resolvendo-se a questão pelo uso dos critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade [16].
Enquanto os princípios prevêem fatos e estabelecem consequências que devem ser realizadas da forma mais intensa possível, de acordo com as possibilidades jurídicas existentes (são verdadeiros mandados de otimização), e havendo conflito entre princípios este dever resolvido pela ponderação, atribuindo-se um sistema de pesos em face da situação concreta, de modo a não se retirar um dos princípios do ordenamento, mas apenas aplicá-lo naquele caso concreto por possuir maior peso, podendo se dá o contrário diante de outra situação real em particular (aplicar-se o outro princípio).
O critério é amplamente difundido, porém é necessário pensá-lo de forma crítica. Com efeito, tanto regras, quanto princípios, atribuem consequências aos fatos neles previstos (possuem a mesma estrutura suporte fáctico – preceito), assim como sempre incidem uma vez concretizados no mundo real os seus respectivos suportes fácticos abstratos. Quer dizer, uma vez concretizado o seu suporte fáctico, todo princípio irá incidir – nisso não há diferença com relação às regras.
A distinção deve ser analisada quanto à eficácia, pois os princípios requerem complementação especificadora – necessitam de regras complementando-os de forma a torná-los efetivos perante os casos concretos –, enquanto as regras prescindem disso – já contém, em si, o comportamento normativamente buscado para certa situação concreta.
Portanto, parece correto criticar-se a afirmativa de que as regras sempre incidem, na forma do "tudo ou nada", enquanto os princípios são dependentes do caso concreto, pois às vezes podem incidir, outras vezes não. Parece mais correto defender-se que ambos, princípios e regras, sempre incidem uma vez concretizados os seus suportes fácticos, diferindo apenas quanto aos efeitos, pois os princípios precisam de regras complementares que os densifiquem perante os casos concretos.
De outra banda, regras densificam princípios, já são, portanto, frutos da incidência de princípios. Regras já são os resultados da ponderação feita pelo legislador (ou pelo aplicador, caso não exista uma regra-legal específica). Frequentemente, a regra já é o produto do conflito entre princípios, já é a solução harmonizadora para certa situação fáctica. Por essa razão, pode-se deixar de aplicá-la, caso numa situação concreta os efeitos sejam contrários aos princípios que ela densifica.
Regras e princípios são usados na mesma atividade interpretativa, diante dos casos concretos, onde se procura o significado dos dispositivos normativos que aparentemente regem aquela específica situação. As regras não são aplicadas apenas em algumas situações, enquanto os princípios em outras, pelo contrário, ambos, princípios e regras, interligam-se e são aplicados pelo intérprete para se poder extrair o sentido da norma que rege o caso concreto.
Um conflito entre regras pode muito bem ser, também, um conflito entre princípios, caso em que haveria ponderação entre regras. Uma regra proíbe a entrada de cachorros em ônibus, outra permite aos deficientes visuais entrar com cães-guias em locais públicos, tendo ambas os mesmos âmbitos de validade espacial, pessoal, material e temporal, o conflito daí surgido não se dá apenas entre regras, nem apenas entre princípios, envolve regras e princípios.
Desse modo, como as regras densificam princípios, em caso de conflito entre regras, ponderando-se os princípios em choque acaba-se por se ponderar as respectivas regras, sendo o critério do modo de aplicação insuficiente para explicar a diferenciação nessas situações.
Por outro lado, havendo conflito entre regra e princípio é bastante comum a conclusão – quase automática –, da prevalência do princípio, muitas vezes usando-se nesse raciocínio o célebre argumento de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual princípio "é mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência", e mais adiante "violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade." [17](Grifo nosso).
Primeiramente, é importante desmistificar a ideia de que todo princípio é constitucional. De fato, ainda que seja muito comum a colocação dos princípios no texto constitucional – até pelo fato de ser a Constituição o local adequado à positivação das escolhas político-valorativas fundamentais –, estes podem vir expressos em diplomas infraconstitucionais (ex: o art. 970 do Código Civil prevê o tratamento favorecido ao empresário rural). Nesses casos, pode haver conflito entre princípio legal e regra constitucional, sendo óbvia a prevalência desta, por ser norma de hierarquia superior.
Mas ainda nos demais casos, útil ter-se na retentiva que regras densificam princípios, contendo valores, apenas especificados para situações particulares, sendo, portanto, o resultado do processo de ponderação legislativa acerca dos fatos que pretendem disciplinar. Princípios orientam a formulação das regras, pelo Legislador, e auxiliam na sua compreensão, pelo aplicador. As regras representam disciplinamentos de condutas relativas a certas situações que buscam efetivar certos princípios, são detalhamentos de princípios aplicados às situações mais específicas.
Ora, em caso de confronto entre um princípio e uma regra, sendo esta última o resultado mais detalhado da aplicação de um outro princípio a uma certa situação, parece mais correto concluir-se pela prevalência da regra. Defender-se o contrário significa advogar-se pela prevalência do geral em face do especial, numa argumentação baseada no conteúdo avalorativo das regras, premissa que já se demonstrou equivocada.
Como as regras têm pretensão de completude e especificidade, densificando princípios frente a casos particulares, resulta patente ser a solução antecipadamente escolhida para aquele caso, devendo, assim, prevalecer sobre um genérico e incompleto princípio. Elas realizam um valor de forma específica e mais detalhada, enquanto o princípio contrário não passa de uma previsão geral e que ainda requer normas complementares para poder ser aplicado a situações concretas (em geral, excetuando-se aqui os casos de ausência de regra-legal).
Nesse sentido a lição de Humberto Ávila:
Descumprir o que se sabe dever cumprir é mais grave do que descumprir uma norma cujo conteúdo ainda carecia de maior complementação. Ou dito diretamente: descumprir uma regra é mais grave do que descumprir um princípio. No caso das regras, o grau de pretensão de decidibilidade é muito maior do que aquele presente no caso dos princípios, tendo em vista ser a regra uma espécie de proposta de solução para um conflito de interesses conhecido ou antecipável pelo poder Legislativo. [18]
Agora, em caso de conflito entre regra e princípio, dizer que, normalmente, a regra deve prevalecer, não significa dizer que a regra sempre deve prevalecer. Realmente, existem hipóteses onde a prevalência da regra – em seu sentido usual –, diante de um caso concreto, pode implicar grave violação a certo(s) princípio(s), donde a necessidade de se declarar a inconstitucionalidade dessa regra, ou então se produzir uma regra de exceção, aplicável àquelas específicas situações. Dois exemplos podem auxiliar na compreensão do raciocínio.
Determinada regra, hipotética, permitiria a qualquer mulher grávida matriculada em curso de ensino superior ser transferida para qualquer outra faculdade – pública ou privada, independentemente da prévia existência de vagas e de concurso interno –, dentro do território nacional, desde que naquela cidade residissem seus parentes mais próximos. A regra visaria efetivar o princípio da proteção à maternidade, permitindo às gestantes que estudassem em cidades distantes do seu domicílio original ficar junto às suas respectivas famílias durante a gestação. Caso contestada a sua constitucionalidade, seria forte a probabilidade do Judiciário declará-la inconstitucional por ofensa ao princípio da isonomia, já que a regra teria criado uma discriminação arbitrária e injustificável. Nesse caso, como o princípio da proteção à maternidade teria sido densificado por uma regra contrária à isonomia, a própria regra seria afastada do ordenamento, devido ao vício material.
Veja-se outro caso, desta feita real. O art. 13 do Novo Código Civil traz uma regra que busca efetivar o princípio da integridade física da pessoa humana, tendo o legislador ordinário feito uma valoração sobre o fato da disposição do próprio corpo (desde que importe diminuição permanente da integridade física, ou contrarie os bons costumes), para dizer ser isso impossível, salvo por exigência médica. [19]
Diante dessa regra legal, bem como do princípio da proteção à integridade física da pessoa natural, parece não restar dúvida de que, caso alguém requeira autorização judicial para mutilar de forma permanente o próprio corpo (cortar uma orelha, por exemplo), imotivadamente, esse pedido seria negado por qualquer juiz deste país (sentido incontroverso). Contudo, caso haja mudança na situação fática concreta, tal mudança pode importar na alteração do sentido atribuído ao mesmo texto legal.
Tome-se o exemplo de um transexual (pessoa que rejeita a sua própria identidade genética, identificando-se com o sexo oposto) requerer a mutilação do seu órgão genital. Nesse caso, pode-se defender que se está diante de um confronto entre a proteção à integridade física e a dignidade humana (já que aquela pessoa melhor desenvolveria as suas potencialidades caso não tivesse o órgão genital masculino), de forma a ponderar-se os princípios em choque e decidir-se pela prevalência da dignidade humana, ressalvada a necessidade de prévio acompanhamento médico-psiquiátrico a fim de diagnosticar a transexualidade e o real desejo da pessoa. Haveria aí o descobrimento de uma nova regra a partir do mesmo dispositivo legal, sendo esta mais restrita do que a regra geral, ou seja, estar-se-ia diante de uma regra de exceção, aplicável a um subgrupo dos fatos previstos no suporte fáctico da regra geral.
Em ambos os casos – inconstitucionalidade da regra frente ao princípio, ou descoberta de uma regra de exceção a partir do mesmo dispositivo normativo –, tem-se a não aplicação da regra aos casos concretos. Isso é possível, entretanto, o ônus argumentativo necessário para se deixar de aplicar uma regra, seja em face da sua inconstitucionalidade, seja em face da descoberta de uma regra de exceção, é muito maior do que aquele exigido para sua simples aplicação a casos concretos previstos em seu suporte fáctico. Mais uma vez, tome-se a lição de Humberto Ávila, para quem "o ônus de superar uma regra é maior do que aquele exigido para superar um princípio." [20]
Como não se pode afirmar que em caso de conflito prevalece uma das espécies, princípio ou regra, essa peculiaridade de ser o ônus argumentativo para superação da regra maior do que o necessário para se superar o princípio, não serve como critério de diferenciação, inclusive por ser muito tênue a linha divisória em certos casos.
De tudo quanto exposto, pode-se dizer que: não há peculiaridades quanto à incidência de regras e princípios, ainda que as haja quanto à eficácia – dependente de complementação nestes, para poder reger diretamente os casos concretos; as regras também podem ser ponderadas, não constituindo a forma de conflito entre regras e entre princípios critério correto para fins de diferenciação dessas espécies normativas; o conflito entre princípio e regra também não oferece nenhum instrumento capaz de servir como critério de diferenciação, ainda que ofereça uma característica quanto ao ônus argumentativo necessário para a superação de cada uma das espécies normativas diante dos casos concretos.
2.4. Critério dos efeitos
Paulo de Barros Carvalho destaca utilizar-se o termo "princípio" para denotar os preceitos normativos fortemente carregados de valor e que, graças ao seu papel sintático no conjunto normativo, acabam influenciando grandes porções do ordenamento, informando o vetor de compreensão de múltiplos segmentos, além de o termo também significar normas que fixam importantes critérios objetivos. Assim, os princípios servem como linhas diretivas hábeis a influir na compreensão de setores normativos, por servirem de fator de agregação num certo conjunto de normas, a quem acabam por conferir caráter de unidade relativa. Saliente-se ainda que esses tanto podem constar de preceitos expressos, postos pelo legislador de forma clara e determinada, como de preceitos implícitos, dependentes de esforço indutivo para percebê-los e isolá-los, sem que haja relação de supremacia entre eles (princípios implícitos e explícitos). [21]
Nesse sentido, os princípios, quer explícitos, quer implícitos, consistem em suportes fácticos que têm expressiva carga valorativa, de forma a servirem de vetor de interpretação (fixam a linha a ser seguida) de outras normas, operando como mecanismos propulsores da unidade e harmonização do sistema em que estão inseridos, além de fixarem critérios limitativos objetivos (que limitam a atividade dos legisladores ou aplicadores do Direito).
Assim, são normas tanto os princípios como as regras, diferindo as espécies em virtude da carga axiológica e da função que exercem (pois só os princípios possuem expressiva carga valorativa, de modo a influenciarem na compreensão de várias outras normas).
Quanto aos limites objetivos, inclinam-se a ter natureza de regras, ainda quando derivadas de um mesmo dispositivo (o princípio e a regra, extraídos a partir do mesmo dispositivo), pois normalmente possuem uma específica determinação de comportamentos nas situações neles previstas, em caráter primário e completo, ficando o valor como algo subjacente e secundário. Obviamente, caso um aparente limite objetivo, no exame concreto, não seja tão objetivo assim, contendo uma conduta inespecífica e incompleta, estar-se-á diante de um princípio. É dizer, aqueles princípios tidos como limites objetivos, normalmente, são regras, quando não, podem ser enquadrados na categoria princípios (por sua inespecificidade e incompletude), sem necessidade de uma terceira espécie normativa.
No tocante ao valor, linhas acima já se fixou o entendimento de que as regras também contêm valores, diferindo dos princípios apenas na qualidade dessa relação. Dizer que a diferença estaria nos princípios expressarem valores mais importantes (a diferença seria de grau) parece fixar o critério em linha muito tênue, mutável conforme o intérprete. Ainda que a afirmação seja correta, ela é muito difícil de ser aplicada, tornando-se insuficiente para servir de critério distintivo.
Agora, quanto aos efeitos, parece correta a descrição em comento, porém não soa cientificamente inconteste definir-se a causa justamente pelo efeito que produz, ou seja, usar-se o critério dos efeitos produzidos pelos princípios como forma de identificá-los não é a atitude cientificamente mais correta.
Todavia, compreender os efeitos produzidos pelos princípios é importante para a sua utilização prática, bem como serve de instrumento para uma melhor compreensão aproximativa dos limites e características dessa espécie normativa. Desse modo, só os princípios têm função de servir como vetores de interpretação, ajudando na extração do sentido de várias regras. O princípio influencia o Legislador no momento da elaboração do veículo introdutor de normas jurídicas, e influencia o intérprete no momento da aplicação, bem como só ele tem esse efeito de atuar sobre todo um segmento normativo, é dizer, sobre várias regras e mesmo sobre outros princípios mais específicos (chama-se de sobreprincípio o princípio mais genérico, contendo um valor fundamental, que influencia outros princípios), enquanto as regras dirigem-se apenas às particulares situações fáticas nelas descritas.