Foi com alívio que os defensores do novo Direito Falimentar receberam a decisão do Supremo Tribunal Federal repelindo recurso pela inconstitucionalidade da Lei de Recuperação de Empresas, a Lei 11.101/05. O autor desse recurso foi um partido político, o PDT, único a tomar essa iniciativa. O recurso causou estranheza nos meios jurídicos e parlamentares, uma vez que o nosso Judiciário, por decisões diversas, tem aplicado a lei de forma eficaz e já existe jurisprudência sedimentada a respeito da legitimidade dessa lei. Se o Supremo tivesse acolhido esse recurso teria afrontado as decisões judiciais e jurisprudenciais de todos os Estados do Brasil.
Desde que a Lei de Recuperação de Empresas foi sancionada, proliferaram as críticas estampadas na imprensa, mormente pelos bem conhecidos juristas frequentemente ouvidos em qualquer novidade jurídica. Nós, defensores do novo sistema falimentar, procuramos esclarecer os órgãos de comunicação que publicaram as críticas quanto às falhas da interpretação, mas não obtivemos qualquer resposta. As publicações dos órgãos da imprensa que continham críticas à nova lei encontraram ampla guarida, mas a defesa foi amplamente repelida. Não conseguimos, até agora, identificar quais forças vêm influindo nas reações adversas à novel lei.
Falemos, porém, nos argumentos do PDT para fundamentar seu recurso para a declaração de inconstitucionalidade da nova lei. A argumentação básica é a de que a lei veio para tutelar os interesses dos banqueiros contra os dos trabalhadores. As próprias expressões utilizadas revelam o ranço demagógico próprio dos políticos: trabalhador e banqueiro. Nem a LRE (Lei 11.101/05) nem outras leis, nem mesmo a CLT, usam essas palavras. Não são termos jurídicos e a Suprema Corte deveria ter inicialmente pedido ao recorrente que esclarecesse em que sentido utilizou os termos trabalhador e banqueiro.
Vamos analisar os termos em questão, embora saibamos, de antemão, o sentido que lhes empresta o recorrente. Em princípio, trabalhador é toda pessoa que trabalha, qualquer que seja sua profissão ou cargo que ocupa. Todo aquele que exerce uma atividade profissional obreira é um trabalhador. Pode ser um operário, um faxineiro, um advogado, um médico e até mesmo um político ou um funcionário público. Não é, contudo, nesse sentido que o PDT utiliza esse termo. Ele quer dar a entender que seja uma pessoa magra, pálida, esquálida, maltrapilha, de sandália havaiana, com uma bermuda rota, sem camisa, e que sobrevive de parcos recursos do seu trabalho a sol e chuva. Procura atrair assim a comiseração, a piedade para com aquele infeliz que trabalha numa fábrica horas a fio por um salário mínimo. É uma caricatura vista frequentemente.
No lado oposto do trabalhador está o banqueiro, também alvo de caricaturas, um indivíduo gordo, barrigudo, de cartola e fraque, com charuto na boca, sentado a uma mesa com sacos de dinheiro. Essa é a imagem do banqueiro, como se vê em inúmeras ilustrações.
O ataque contra a Lei de Recuperação de Empresas é nesse fundamento: ele procura tutelar os interesses do potentado banqueiro contra o pobre trabalhador que vive de seu parco salário. Esses aspectos conceituais revelam demagogia barata e vontade de desviar a discussão do problema para o campo político, tendo-se em vista ainda que o recorrente é um partido político com veleidades de defensor das massas. Querem projetar a imagem de defensor dos direitos da gente pobre e obreira, elevando seu nível de vida. Aliás, há vários anos muitos desfraldaram a bandeira de protetores dos trabalhadores. Todos estão dispostos à luta sem quartel pelos trabalhadores; estão dispostos até a irem à forca – desde que seja com o pescoço do vizinho.
Desde que a luta pró-trabalhador se iniciou, mormente por parte dos partidos políticos, a classe trabalhadora vem sendo massacrada, mormente os aposentados. A miséria, a fome a exploração rondam os lares dos que trabalham no campo e nas fábricas, e a culpa é da Lei de Recuperação de Empresas. Os banqueiros, por sua vez, se locupletam. O autor desse desequilíbrio é o novo sistema falimentar.
A forma pela qual a nova lei concorre para a marginalização dos trabalhadores é o limite de 150 salários mínimos para o pagamento prioritário, ficando o restante como crédito quirografário, segundo o art. 83 da lei. Assim sendo, o salário mínimo em São Paulo, no ano de 2009 é na base de R$ 500,00 e o empregado tem a preferência assegurada na distribuição do que ficar da massa falida só até R$ 75.000,00; o restante ficará para o pagamento final aos demais credores.
Essa limitação tem sólida explicação, que o PDT não procurou analisar ou se informar. Veio em benefício e garantia dos empregados da empresa na falência desta. Raramente esse limite é atingido pelo empregado comum, razão pela qual ele não ficará prejudicado. Os direitos dos funcionários da empresa ficam garantidos até esse limite, para que sejam pagos de forma prioritária, ou seja, no primeiro pagamento feito pela massa falida eles receberão seus créditos. O que ultrapassar o limite de 150 salários mínimos será pago como crédito quirografário, isto é, junto com os demais credores.
O que essa limitação procurou atingir é o crédito trabalhista fraudulento, preparado pelos patrões com o intuito de lesar os verdadeiros funcionários da empresa falida, os autênticos trabalhadores. Como se perpretava essa fraude? Quando os dirigentes da empresa sentem que ela vai soçobrar, registram seus filhos, sobrinhos e apaniguados com elevado salário e, normalmente, com data bem anterior. No momento da falência, esses apaniguados acumulam alto crédito fictício e ficarão com os frutos da massa falida, ficando os verdadeiros empregados a ver navios. O limite imposto a esses créditos fictícios visam, antes de tudo, a proteger o direito dos trabalhadores.
Há outro fundamento na pretensa defesa dos trabalhadores contra os banqueiros, invocada pelo PDT. A nova lei autoriza a venda de ativos da empresa falida ou em recuperação judicial de forma desvinculada das dívidas. O patrimônio ativo da empresa é sempre garantia dos credores e a venda deles desfalca essa garantia. Pensando calmamente sobre essa venda, podemos notar que não haverá qualquer lesão aos direitos dos funcionários da empresa falida. A venda do patrimônio pressupõe pagamento do preço dele, e, portanto, haverá a substituição do ativo material por dinheiro, que entrará para os cofres da massa falida. Foi o que aconteceu com a VARIG: o patrimônio dela foi vendido e com o preço dele foi pago parcialmente o débito para com os empregados, no valor de 10%.
Muitos disseram: 10% do débito é quase nada! Realmente, mas não cabe culpa à lei. Se uma empresa vai à falência é porque seu patrimônio não cobre seus débitos e não consegue fazer frente ao passivo com seu ativo. Além disso, a falência sucateia o patrimônio da empresa falida. No regime da antiga Lei Falimentar, de 1945, empregado algum viu a satisfação de seu crédito.
Todavia, a restrição à lei vai bem além disso. É quanto à sucessão das dívidas, ou seja, quem comprar em leilão os bens de massa falida deve herdar também os débitos que esses bens garantiam. Convenhamos: se o ativo de uma massa falida ficar atrelado à suas dívidas, quem iria se aventurar a comprar esse patrimônio, geralmente muito inferior ao valor das dívidas? Só quem tiver longa atuação na área falimentar consegue compreender os difíceis problemas da massa falida. E todos sabemos da triste condição dos empregados de empresas falidas no regime da antiga lei falimentar.
Falemos agora do outro lado: dos banqueiros. A nova lei não faz qualquer referência a banqueiro e nenhum banqueiro figurou como credor de massa falida. O que o PDT quis dizer é que certas inovações privilegiam os bancos e por sinédoque ele se refere a banqueiros. Nos dias de hoje, o que se entende por bancos é um complexo de entidades. Há diversos tipos de bancos: de varejo como o Bradesco e o Itaú, de investimentos, de financiamento, de crédito imobiliário, de crédito agrário e outros mais. Existem ainda outras entidades equiparadas, como companhias de investimentos, de financiamento e outras. Digamos então que existam estabelecimentos de crédito. É a eles que os detratores da LRE se referem como banqueiros. A tutela que a Lei dá a eles, no dizer do PDT, aumenta o desprezo que ela devota aos trabalhadores.
Não houve análise serena desta questão, como não houve de nenhuma outra. Há revolta contra as garantias que o crédito dessas entidades detém. Os estabelecimentos de crédito normalmente só concedem empréstimos mediante sólidas garantias; se o devedor falir, essas garantias cobrem o empréstimo. Por exemplo: um banco empresta dinheiro a uma empresa, com garantia da hipoteca de um imóvel. Se a empresa devedora falir, esse imóvel será vendido em leilão e o valor de sua arrematação ficará vinculado ao pagamento do empréstimo que ele garantiu. Contra essa vinculação rebelam-se os defensores dos trabalhadores: eles acham que, com a falência deve cessar a garantia e o imóvel deve garantir os débitos trabalhistas.
Vamos então esclarecer que a manutenção das garantias na falência já constava na antiga Lei Falimentar de 1945 e também nas leis falimentares anteriores, não sendo inovação da nova lei. É de flagrante injustiça a acusação de que a nova Lei Falimentar brasileira tenha estabelecido essa medida e, ainda mais, para proteger o banqueiro contra o trabalhador. O autor deste artigo foi também o autor do anteprojeto inicial de que resultou a nova Lei de Recuperação de Empresas, em cima do qual a comissão elaboradora trabalhou para apresentação do projeto ao Congresso Nacional.
O anteprojeto era quase uma cópia da lei francesa, com algumas adaptações, e na lei francesa estava sedimentada a manutenção das garantias após a falência do devedor. Na lei italiana predominava o mesmo critério e na legislação de vários países desenvolvidos ele permanece.
Poderia alguém justificar, de forma jurídica lógica e plausível por que as garantias reais ao crédito, como a hipoteca e o penhor, devam perder a eficácia só porque o devedor teve sua falência decretada? Se o mundo todo consagra a garantia ao crédito por que o Brasil deva ser diferente? Os créditos com garantia real são privativos dos estabelecimentos de crédito ou qualquer credor pode pedir garantias pelo crédito que conceder? Se nossa Magna Corte tivesse optado pela inconstitucionalidade da Lei 11.101/05 seria conveniente voltarmos ao regime falimentar da Lei de 1945? Seria conveniente para os trabalhadores o retrocesso ao regime arcaico e superado?
Há uma informação que deveria chegar ao PDT e demais partidos políticos. A nova Lei confere aos empregados da empresa falida ou em recuperação judicial elevados poderes de decisão nos procedimentos concursais. Forma-se o Quadro Geral de Credores, formado por representantes de três tipos de credores: trabalhistas, com garantias e quirografários. Os empregados da empresa falida, que o PDT chama de trabalhadores, podem defender seus direitos e se ombreiam em poderes com os banqueiros e demais credores. E, entretanto, jamais eles foram respeitados no regime de 1945, o regime que tinha sido criado pela Indústria de Falências.
Foi a falida Indústria de Falências que alimentou os numerosos ataques à Lei de Recuperação de Empresas e quando ela surgiu e depois se foi amainando até desaparecer, e agora retorna com o recurso do PDT ao Supremo, estimulado, talvez, pela Indústria de Falências, que durante décadas atormentou o Brasil e lhe causou vultosos prejuízos.
Ainda há um aspecto que merece ser lembrado. Durante doze anos o projeto na nova Lei Falimentar tramitou pelo Congresso Nacional. A comissão encarregada de analisar o projeto foi sendo reestruturada após cada eleição, e por ela passou grande número de deputados, inclusive um do PDT. Foi depois aprovada pelo Senado e promulgada pelo Presidente da República. Ninguém levantou objeções contra essas disposições da lei. Por que só agora, quatro anos após da promulgação da lei, o PDT investe contra ela?