As Mesas da Câmara e do Senado promulgaram [01] no dia 23 de setembro a Emenda Constitucional nº 58, que aumenta em 7.709 o número de vereadores em todo o país. A nova Emenda, contudo, nasce [02] marcada pelo signo do caos e da inconstitucionalidade. Ao retroagir os seus efeitos ao processo eleitoral de 2008, a Emenda Constitucional nº 58 anula procedimentos, resultados e diplomas das eleições de 2008, bem como deliberações legislativas tomadas pelas Câmaras Municipais, violando assim o princípio fundamental da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da Constituição.
A Emenda Constitucional nº 58 estabelece 24 limites máximos para a composição das Câmaras Municipais (art. 1º), reduzindo, em contrapartida, os percentuais máximos do total de despesas dessas Casas (art. 2º). A EC nº 58 entra em vigor na data da sua promulgação, todavia, para retroagir às eleições de 2008, a Emenda preceitua que os novos limites máximos produzem efeitos a partir do processo eleitoral de 2008 (art. 3º, I), enquanto a redução dos percentuais das despesas produz efeitos a partir de janeiro do ano subsequente ao da promulgação da Emenda (art. 3º, II):
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:
Art. 1º O inciso IV do caput do art. 29 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 29. ........................................................................................................................
........................................................................................................................................
IV - para a composição das Câmaras Municipais, será observado o limite máximo de:
a) 9 (nove) Vereadores, nos Municípios de até 15.000 (quinze mil) habitantes;
b) 11 (onze) Vereadores, nos Municípios de mais de 15 (quinze mil) habitantes e de até 30.000 (trinta mil) habitantes;
c) 13 (treze) Vereadores, nos Municípios com mais de 30.000 (trinta mil) habitantes e de até 50.000 (cinqüenta mil) habitantes;
d) 15 (quinze) Vereadores, nos Municípios de mais de 50.000 (cinqüenta mil) habitantes e de até 80.000 (oitenta mil) habitantes;
e) 17 (dezessete) Vereadores, nos Municípios de mais de 80.000 (oitenta mil habitantes) e de até 120.000 (cento e vinte mil) habitantes;
f) 19 (dezenove) Vereadores, nos Municípios de mais de 120.000 (cento e vinte mil habitantes) e de até 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes;
g) 21 (vinte e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes e de até 300.000 (trezentos mil) habitantes;
h) 23 (vinte e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 300.000 (trezentos mil habitantes) e de até 450.000 (quatrocentos e cinqüenta mil) habitantes;
i) 25 (vinte e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 450.000 (quatrocentos e cinqüenta mil) habitantes e de até 600.000 (seiscentos mil habitantes);
j) 27 (vinte e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 600.000 (seiscentos mil) habitantes e de até 750.000 (setecentos e cinqüenta mil) habitantes;
k) 29 (vinte e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 750.000 (setecentos e cinqüenta mil) habitantes e de até 900.000 (novecentos mil) habitantes;
l) 31 (trinta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 900.000 (novecentos mil habitantes) e de até 1.050.000 (um milhão e cinqüenta mil) habitantes;
m) 33 (trinta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de um 1.050.000 (um milhão e cinqüenta mil habitantes) e de até 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) habitantes;
n) 35 (trinta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.200.000 (um milhão e duzentos mil habitantes) e de até 1.350.000 (um milhão e trezentos e cinqüenta mil) habitantes;
o) 37 (trinta e sete) Vereadores, nos Municípios de um 1.350.000 (milhão e trezentos e cinqüenta mil) habitantes e de até 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes;
p) 39 (trinta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes e de até 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes;
q) 41 (quarenta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes e de até 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil) habitantes;
r) 43 (quarenta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil) habitantes e de até 3.000.000 (três milhões) de habitantes;
s) 45 (quarenta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 3.000.000 (três milhões) de habitantes e de até 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes;
t) 47 (quarenta e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes e de até 5.000.000 (cinco milhões) de habitantes;
u) 49 (quarenta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 5.000.000 (cinco milhões) de habitantes e de até 6.000.000 (seis milhões) de habitantes;
v) 51 (cinqüenta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 6.000.000 (seis milhões) de habitantes e de até 7.000.000 (sete milhões) de habitantes;
w) 53 (cinqüenta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 7.000.000 (sete milhões) de habitantes e de até 8.000.000 (oito milhões) de habitantes; e
x) 55 (cinqüenta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 8.000.000 (oito milhões) de habitantes.
............................................................................................................................." (NR)
Art. 2º O art. 29-A da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 29-A. ....................................................................................................................
I - 7% (sete por cento) para Municípios com população de até 100.000 (cem mil) habitantes;
II - 6% (seis por cento) para Municípios com população entre 100.000 (cem mil) e 300.000 (trezentos mil) habitantes;
III - 5% (cinco por cento) para Municípios com população entre 300.000 (trezentos mil) e 500.000 (quinhentos mil) habitantes;
IV – 4,5% (quatro inteiros e cinco décimos por cento) para Municípios com população entre 500.001 (quinhentos mil e um) e 3.000.000 (três milhões) de habitantes;
V - 4% (quatro por cento) para Municípios com população entre 3.000.001 (três milhões e um) e 8.000.000 (oito milhões) de habitantes;
VI - 3,5% (três inteiros e cinco décimos por cento) para Municípios com população acima de 8.000.001 (oito milhões e um) habitantes.
............................................................................................................................." (NR)
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua promulgação, produzindo efeitos:
I - o disposto no art. 1.º, a partir do processo eleitoral de 2008; e
II - o disposto no art. 2.º, a partir de 1.º de janeiro do ano subsequente ao da promulgação desta Emenda.
A Emenda Constitucional nº 58 provoca um verdadeiro caos eleitoral no regime democrático brasileiro. Quando determina que os 24 limites máximos para a composição das Câmaras Municipais retroagem ao processo eleitoral de 2008, a Emenda anula procedimentos, resultados e diplomas das eleições de 2008, invalidando ainda deliberações legislativas tomadas pelas Câmaras Municipais. Com isso, a EC nº 58 afronta o princípio da anterioridade eleitoral, consubstanciado no art. 16 da Constituição, que dispõe que "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".
Um caso pode ilustrar o caos e a inconstitucionalidade decorrentes da Emenda Constitucional nº 58. Nas eleições de 2008, o quociente eleitoral [03] no Município de Manacapuru (AM) foi de 4.288, resultado da divisão do número de votos válidos (42881) pelo número de vagas de vereador (10). A população de Manacapuru, segundo dados [04] de 2007, é de 82.309 habitantes. Aplicando a Emenda, o limite máximo para composição da sua Câmara aumenta para 17 vereadores. Como a EC nº 58 retroage os seus efeitos ao processo eleitoral de 2008, o quociente eleitoral passa a ser de 2.522, resultado da divisão do número de votos válidos (42881) pelo número de vagas de vereador (17). Ora, sendo o novo quociente eleitoral de 2.522, seis coligações [05] que não haviam obtido o quociente eleitoral conquistam com a Emenda ao menos uma vaga de vereador, alterando substancialmente o resultado das eleições.
O efeito imediato da retroação dos novos limites para a composição das Câmaras Municipais é a diminuição do quociente eleitoral e, em consequência, a realização de uma nova distribuição das vagas. Desse modo, candidatos não eleitos em 2008, com a Emenda Constitucional nº 58 ganham [06] o mandato de vereador. Outros, que foram eleitos em 2008, perdem o mandato. Em Manacapuru, seis coligações (PT/PSDC, PMN/PSB, PDT/PRB, PTB/PSL, PSDB/PHS/PRTB/DEM e PSOL/PPS) passam a participar da distribuição das vagas, elegendo oito candidatos. O PV, por sua vez, que em 2008 elegeu três candidatos, com a Emenda elege apenas dois, perdendo [07]assim um mandato de vereador em Manacapuru.
E as deliberações legislativas tomadas no período anterior à Emenda Constitucional nº 58? Tornam-se nulas, uma vez que a EC nº 58 não modulou os efeitos de suas disposições. Quando dispõe, sem ressalvas, que os novos limites máximos produzem efeitos a partir do processo eleitoral de 2008 (art. 3º, I), o quorum para legitimidade das deliberações também aumenta. Maioria absoluta, maioria simples e demais quoruns para proposição, discussão e votação devem ser calculados com base nos novos limites máximos estabelecidos pela Emenda. E esse cálculo para validade das deliberações deve ser ex tunc, isto é, retroativo às eleições de 2008. Se as deliberações anteriores à Emenda não observarem esses novos quoruns, tais deliberações perdem a legitimidade, tornando-se insubsistentes desde o momento que foram tomadas pelas Câmaras Municipais.
Como se não bastassem a redução do quociente eleitoral e a inovação na distribuição das vagas, a Emenda Constitucional nº 58, ao aumentar o número de vereadores de cada Câmara Municipal, anula também os procedimentos dos registros dos candidatos. Com efeito, elevado o número máximo de vereadores, o número de candidatos a que cada partido ou coligação poderia registrar também aumenta (vide art. 10 da Lei nº 9.504/1997). No Município de Manacapuru, para concorrer as 17 vagas de vereador disponíveis com a Emenda, cada partido ou coligação poderia registrar, respectivamente, até 25 ou 34 candidatos, e não apenas 15 ou 20, como aconteceu em 2008, quando eram apenas 10 vagas.
A partir do momento que a Emenda retroage seus efeitos ao processo eleitoral de 2008, esse processo eleitoral deve ser alterado para se adequar às disposições da Emenda. Se a Emenda prescreve 24 novos limites máximos para a composição das Câmaras Municipais, com efeitos retroativos ao processo eleitoral de 2008, esse processo eleitoral deve se ajustar aos novos números máximos. E isso em todos os 5.565 Municípios brasileiros. Por isso a nulidade dos procedimentos, resultados, diplomas e deliberações anteriores à Emenda.
A Emenda Constitucional nº 58 repercute tanto nas fases de registro dos candidatos como nas de definição do quociente eleitoral, de distribuição das vagas e de proclamação e diplomação dos eleitos em 2008. Isso significa que a Emenda não apenas altera, mas desconstitui quase por inteiro o processo eleitoral de 2008, criando um caos eleitoral que, a toda evidência, viola o princípio constitucional da anterioridade eleitoral.
O art. 16 da Constituição dispõe que "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência". Na ADI 3.685 [08], Relatora Ministra Ellen Gracie, RTJ 199/957, o Supremo Tribunal Federal assentou que o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da Constituição, "representa uma garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e a ‘quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral’ (ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello)".
Sendo uma garantia fundamental, o princípio da anterioridade eleitoral é uma cláusula pétrea e, por força dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, da Constituição, oponível [09] até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, que pode muito, mas não pode modificar o núcleo essencial da Constituição. Com isso, ao violar o art. 16 da Constituição, a Emenda Constitucional nº 58 viola também os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), conforme decidido na ADI 3.685:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF.
1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo.
2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal.
3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).
4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).
5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.
7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência.
(ADI 3685, Relatora Ministra Ellen Gracie, RTJ 199/957)
Há de se salientar, invocando o voto que o Ministro Gilmar Mendes proferiu na ADI 3.685, que a Constituição de 1988 garante ao cidadão-eleitor o devido processo eleitoral, ou seja, o direito a que o resultado das eleições seja consequência de um processo eleitoral incólume, protegido contra fraudes e casuísmos, regido por um sistema de regras que concretize, na sua máxima efetividade, o direito fundamental ao voto:
Ao cidadão-eleitor é garantido pela Constituição de 1988 o devido processo eleitoral, ou seja, o direito a que o resultado das eleições seja conseqüência de um processo eleitoral incólume, protegido contra fraudes e casuísmos, regido por um sistema de regras que concretize, na sua máxima efetividade, o direito fundamental ao voto.
O devido processo eleitoral guarda íntima relação com o devido processo legal substantivo, sendo expressão anteriormente já utilizada pelo Min. Sepúlveda Pertence em seu voto vencido no julgamento da ADI 2.628-3/PFL (DJ de 5-3-2004). Na ocasião, o Ministro Sepúlveda Pertence, referindo-se ao art. 16 da CF/88, colocou-o como uma expressão do devido processo eleitoral, nos seguintes termos:
"(...) por força do art. 16 da Constituição, inovação salutar inspirada na preocupação da qualificada estabilidade e lealdade do devido processo eleitoral: nele a preocupação é especialmente de evitar que se mudem as regras do jogo que já começou, como era freqüente, com os sucessivos "casuísmos", no regime autoritário.
A norma constitucional - malgrado dirigida ao legislador - contém princípio que deve levar a Justiça Eleitoral a moderar eventuais impulsos de viradas jurisprudenciais súbitas, no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações na estratégia para o pleito das forças partidárias" (ADI 2.628/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 5-3-04).
Registre-se que o âmbito de proteção do devido processo legal vem ganhando, também no Brasil, significativa ampliação, ao ser reconhecido, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, como o direito à proteção efetiva do próprio bem jurídico fundamental por ele tutelado. Conforme anota Maria Rosynete Lima: "É preciso que a atividade estatal restritiva de direitos fundamentais atue de forma a resguardar o núcleo essencial do direito tutelado, sendo norteada pelo devido processo legal substantivo, o qual se faz atuar por meio dos preceitos de razoabilidade e proporcionalidade" (LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal, Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999, p. 218).
(ADI 3.685, Ministro Gilmar Mendes, RTJ 199/999)
Nesse contexto, o princípio constitucional da anterioridade eleitoral integra o devido processo eleitoral, cujos elementos são concebidos, de um lado, para viabilizar a igual competitividade entre os candidatos e respectivas agremiações partidárias, e, de outro, para assegurar, em favor dos cidadãos-eleitores, a certeza da estabilidade das regras do jogo eleitoral, como declarou o Ministro Celso de Mello na ADI 3.685:
Reconheço, desse modo, Senhor Presidente, que a garantia da anterioridade eleitoral ganha relevo e assume aspecto de fundamentalidade, subsumindo-se ao âmbito de proteção das cláusulas pétreas, cujo domínio - a partir de exigências inafastáveis fundadas no princípio da segurança jurídica e apoiadas no postulado que consagra a proteção da confiança do cidadão no Estado - impede que qualquer ato estatal, ainda que se trate de emenda à Constituição (como sucede na espécie), descaracterize o sentido e comprometa a própria razão de ser do postulado inscrito no art. 16 da Constituição da República.
Há a considerar, pois, no contexto em exame, uma garantia básica, impregnada de caráter fundamental, que se mostra amparada, por isso mesmo, pelas cláusulas pétreas e cuja incidência importa, como aqui já se enfatizou, em clara limitação material ao exercício, pelo Congresso Nacional, de seu poder de reforma.
Refiro-me à garantia do devido processo eleitoral, cujos elementos - concebidos para viabilizar a igual competitividade entre os candidatos e respectivas agremiações partidárias, de um lado, e projetados para assegurar, em favor dos cidadãos eleitores, a certeza da estabilidade das regras do jogo eleitoral, de outro - objetivam, em última análise, dar sentido e efetividade a um valor essencial, fundado na segurança jurídica e que visa, no plano das eleições, a preservar a confiança que deve sempre prevalecer na esfera das relações entre os indivíduos e o Estado, para que a mudança abrupta da disciplina normativa do processo eleitoral não se transforme em instrumento vulnerador de princípios constitucionais cuja supremacia se impõe, até mesmo, ao Congresso Nacional, ainda que no exercício de seu poder de reforma.
Já se disse, nesta Suprema Corte, que o Congresso Nacional, em matéria constitucional, pode muito, mas não pode tudo, pois, acima do poder que se reconhece ao Legislativo, situa-se a autoridade incontrastável da Constituição da República, cujo art. 60, § 4º, estabelece incontornáveis limitações materiais explícitas ao poder reformador daquele órgão da soberania nacional, a significar que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não podem transgredir, como o fizeram no caso em exame, o núcleo da Constituição, sob pena de tais Casas legislativas perpetrarem lesão gravíssima aos postulados que refletem o espírito e que permitem preservar a própria identidade do texto constitucional.
(ADI 3.685, Ministro Celso de Mello, RTJ 199/1.018)
A Emenda Constitucional nº 58, retroagindo seus efeitos ao processo eleitoral de 2008, atenta contra o art. 16 da Constituição, norma fundamental "enunciada pelo constituinte com o declarado propósito de impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romperem a igualdade de participação dos que nele atuem como protagonistas principais: as agremiações partidárias e os próprios candidatos" (RTJ 144/696-697, Relator Ministro Celso de Mello).
Como escreveu [10] a Ministra Cármen Lúcia, "O que contraria a Constituição é inconstitucional. O que é inconstitucional não pode valer. O que não vale - não tem valor - não pode subsistir". A Emenda Constitucional nº 58 vulnera gravemente o princípio fundamental da anterioridade eleitoral, contrariando o art. 16 da Constituição. Por isso, sendo inconstitucional, tal Emenda não pode valer, não pode subsistir. Que os Juízes do Supremo Tribunal Federal, quando instados [11], declarem a inconstitucionalidade [12] da Emenda Constitucional nº 58, ou a ela deem interpretação conforme para declarar que os novos limites máximos para composição das Câmaras Municipais (art. 1º) não se aplicam nas eleições de 2008, mas apenas nas eleições que se realizarem um ano após a data da sua promulgação.
Notas
- "As Mesas Diretoras do Senado e da Câmara realizaram na noite de ontem uma sessão solene para promulgar a PEC (proposta de emenda constitucional) que aumenta em 7.709 o número de cadeiras nas Câmaras de Vereadores em todo o país" - Um dia depois, emenda já é promulgada, Folha de São Paulo, p. A-6, edição de 24 de setembro de 2009.
- Emenda Constitucional nº 58, promulgada em 23 de setembro de 2009, publicada no Diário Oficial da União, Seção 1, edição de 24 de setembro de 2009, pp. 2 e 3.
- Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Câmara dos Deputados.
- Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
- No ano de 2008, os partidos e coligações que disputaram as eleições em Manacapuru tiveram as seguintes votações: PRP/PMDB/PSC: 9.397 votos; PV: 5.624 votos; PCdoB/PR: 4.942 votos; PT/PSDC: 4.281 votos; PMN/PSB: 4.145 votos; PDT/PRB: 3.524 votos; PTB/PSL: 3.455 votos; PSDB/PHS/PRTB/DEM: 3.199 votos; PSOL/PPS: 3.173 votos; PP: 1.141 votos. Com a Emenda nº 58, que diminui o quociente eleitoral de 4.288 para 2.522, apenas o PP não atinge o novo quociente eleitoral, permanecendo excluído da distribuição das vagas.
- "Em uma sessão solene, acompanhada por suplentes de vereadores de 50 municípios de Goiás, tomaram posse na Câmara de Bela Vista de Goiás (GO), anteontem, os dois primeiros suplentes que foram beneficiados pela emenda constitucional que aumentou o número de cadeiras nos Legislativos municipais" - Primeiros suplentes beneficiados por PEC tomam posse em GO, Folha de São Paulo, p. A-11, edição de 27 de setembro de 2009.
- Nas eleições de 2008, as 10 vagas em Manacapuru foram assim distribuídas: PRP/PMDB/PSC: 5 vagas; PV: 3 vagas; PCdoB/PR: 2 vagas. Com a Emenda Constitucional nº 58, as 17 vagas de vereador são assim distribuídas: PRP/PMDB/PSC: 5 vagas; PV: 2 vagas; PCdoB/PR: 2 vagas; PT/PSDC: 2 vagas; PMN/PSB: 2 vagas; PDT/PRB: 1 vaga; PTB/PSL: 1 vaga; PSDB/PHS/PRTB/DEM: 1 vaga; PSOL/PPS: 1 vaga.
- Na ADI 3.685, os Ministros do STF deram interpretação conforme à Emenda Constitucional nº 52 para declarar que a inovação disposta no seu art. 1º, que pôs fim à obrigatoriedade da verticalização das coligações, não se aplicaria nas eleições de 2006, mas somente nas eleições que ocorressem um ano após a data da sua vigência.
- "(...) Ora, se as emendas constitucionais, conforme expressamente previsto na Constituição, são produtos gerados na existência de um processo legislativo, também elas podem, com muito mais gravidade, servir como instrumento de abusos e casuísmos capazes de desestabilizar a normalidade ou a própria legitimidade do processo eleitoral. É forçoso concluir que, em termos de impacto no contexto dinâmico de uma eleição que se aproxima, tanto faz que a alteração se dê por emenda, lei complementar ou lei ordinária, pois a equação das forças políticas que desaguariam, sob a vigência de certas normas, na vitória desta ou daquela possível candidatura poderá sofrer, por fator alheio à vontade popular, completa reformulação" - ADI 3.685, Relatora Ministra Ellen Gracie, RTJ 199/968.
- ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 165.
- "Por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4307), o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) o artigo 3º, inciso I, da Emenda Constitucional nº 58/09, que pode acarretar o preenchimento imediato de aproximadamente 7 mil vagas criadas com a aprovação da PEC dos Vereadores. A ação foi distribuída para a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha" - PGR contesta no Supremo dispositivo de emenda constitucional que altera número de vereadores, Noticias STF, edição de 29 de setembro de 2009, http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=113845.
- Dentre outros fundamentos, poder-se-ia argumentar, por exemplo, que a cláusula de proporcionalidade contida na redação original do inciso IV do art. 29 da Constituição seria uma cláusula pétrea. Ou que, por força do devido processo legal, no seu aspecto substantivo, o legislador constituinte derivado não poderia reformar a Constituição senão em casos excepcionais de necessidade. Ou que, devido aos novos limites máximos, a Justiça Eleitoral deveria realizar novas eleições para vereador, considerando a alteração do processo eleitoral de 2008.